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sexta-feira, 15 de maio de 2020

Suzete está de volta!


Meu querido André,

há um bom tempo não nos comunicamos mas nunca deixei de pensar em você e arrisco dizer que o mesmo acontece com você que nunca deixou de pensar em mim. Pretensão minha? Acho que não, você até publicou no blog meu encontro com Ramos, o jornalista.
            Estive ocupada mesmo, verdade, mudei-me para F. com o plano de investir em um Instituto de Beleza, e está dando certo, pode acreditar, a clientela logo aprovou o lugar, tornou-se fiel, às vezes é duro aguentar essas madames metidas a besta com rei na barriga e bosta na cabeça, mas elas me pagam bem e posso pagar bem minhas funcionárias, de modo que vou vivendo com certo conforto, carrinho novo, pagando prestações da casa própria, curtindo a tranquilidade da cidade de interior... até que BUUUMMM, a pandemia! 
            (Estou cumprindo à risca o isolamento social, o salão fechado. Às vezes vou em casa de um cliente, cobro caro.)
            Aproveito o tempo para ler e escrever um pouco. Uma grata surpresa foi o aparecimento de um tal de Moisés em seu blog, André! O rapaz escreve microcontos como ninguém. Adorei um que diz “Justamente agora que as câmaras estão por toda parte, os discos voadores resolveram abandonar a terra.” Bela observação!
Parece que você gosta dele, um novo amigo é sempre uma festa na vida da gente. Perder um amigo é sempre trágico na vida da gente. 
            Notícia boa também foi a publicação do livro de poemas do Paulo Sergio, seu irmão, com lindo título, Esmo, a capa belíssima, fiquei louca para comprar; como fazer, André?; arruma um para mim, por favor. Com dedicatória, tá! (Suzete com Z.)
            Mas ando tristíssima com essa tragédia do corona-vírus, a televisão todos os dias anunciando o aumento do número de mortos, os mortos enterrados em valas comuns sem que os familiares possam se despedir, mortos mortos mortos escreveria você, que gosta de repetir as palavras, era o caso de escrever horror horror horror, e não sabemos onde isso vai parar. Não quero esticar esse assunto. Quero apenas dizer que estou muito triste.
Ler ajuda, escrever ajuda, mas sinto falta de conversar com os poucos amigos que tenho, abraçar eles, sair com eles para um barzinho e tomar vinho tinto para esquentar o coração nessas noites frias de fim de outono.
Escrever a você ajuda muito, querido André. Responda, por favor.
Da sempre sua,

                                               Suzete.
            

sábado, 2 de maio de 2020

O jornalista Ramos


Diante do rumoroso sucesso da crônica E daí?, do jornalista Ramos, publicada no Diário de Notícias da cidade de F., penso que Francisco de Oliveira Ramos, ou apenas Ramos, merece ser apresentado aos leitores deste blog.
            E merece apresentação por duplo motivo. Primeiro porque se trata de pessoa interessante, solteirão bem conservado em seus 50, homem culto, amante da literatura e das artes em geral, casmurro na maior parte dos dias, revelando às vezes certa instabilidade emocional, sujeito a pequenos surtos, como todos nós, o que explica a explosiva paródia da citada crônica. O que não empalha o brilho de suas contribuições para o jornal.
            Ramos vive modestamente, com minguado salário do Diário; às vezes publica em uma ou outra revista de variedades, o que lhe rende dinheirinho extra, reservado para viagens de trabalho – ele gosta do jornalismo investigativo, fã incondicional de Truman Capote, daí o toque literário de seus textos. Mora numa casa modesta, em pequena chácara na periferia de F., em companhia de seus cães, onde cultiva hortaliças, colhe algumas frutas, desfruta do silêncio necessário para ouvir boa música, ler seus autores prediletos.
            O segundo motivo para apresentá-lo aqui é mesmo surpreendente! São “as voltas que o mundo dão”, bem o disse Guimarães Rosa. Coisas da vida, de um vida sobre a qual não exercemos qualquer controle, a nossa nem a dos outros, todos personagens de um romance sem pé nem cabeça, escrito no livro non sense da vida cotidiana, a ponto de gente sabida como Jorge Luis Borges afirmar que realidade e ficção são a mesma coisa.
            Ramos foi cortar o cabelo e conheceu Suzete!
            Suzete mudou-se para F. há dois anos e meio, onde abriu salão de beleza com secção de cabeleireiro para homens e mulheres, maquiagem, manicure e pedicure – só para mulheres, que os homens de F. não fazem as unhas –, massagem, drenagem linfática, coisa fina, empreendimento de alta rentabilidade a serviço da fina flor da sociedade de F..
            Quando Ramos entrou no amplo salão e pediu para cortar o cabelo, foi Suzete quem se apresentou, ela que adora cortar cabelo de homem. Instalado em confortável cadeira, nem bem iniciou o corte, Ramos notou junto a pentes, escovas, pinceis e outros petrechos da cabeleireira, volumoso livro cujo título não conseguia ler. Desculpe perguntar, que livro é este sobre a mesa, é você quem está lendo, Quem mais poderia ser, por acaso uma cabeleireira não pode gostar de ler, Claro que pode, me desculpe o jeito de perguntar, Está desculpado, reconheço que não é mesmo comum, E o tijolo afinal, o que é, As irmãs Makioka, de Jun’Ichiro Tanizaki, e Ramos, perplexo, disparou De onde você desenterrou isso, ouvindo em seguida sonora gargalhada de Suzete, que aproveitou para esnobar o jornalista, É autor japonês de renome, já li três livros dele, o senhor não conhece, tudo indicações que encontro no blog Louco por Cachorros, não vá me dizer que o senhor também não conhece o blog, ah! e também gosto de escrever, está vendo aquele caderno ali, tem crônicas, contos, até um poeminha eu arrisco de vez em quando.
Ramos, atônito, não sabia o que pensar diante da fala articulada, culta, de senso crítico apurado da cabeleireira (passou-lhe uma sombra pela cabeça, pois pensou mesmo foi... de uma simples cabeleireira). Ele não conhecia o livro nem o autor, muito menos o blog de nome esquisito, Louco por cachorros? Que diabo era aquilo? Haveria de pesquisar, poderia até dar um bom artigo para o jornal. Cabeleireira que gosta de ler e escrever? Se bobear, vai parar no Fantástico!
Findo o serviço, Suzete espanou alguns fios de cabelo que porventura houvessem caído na camisa do cliente, recebeu o pagamento e os agradecimentos devidos, Meu nome é Ramos, sou jornalista, muito prazer, Eu me chamo Suzete, volte sempre.
          Ao deixar o salão Ramos murmurou consigo mesmo, Como sou preconceituoso! Quinze dias depois lá estava ele de volta ao salão, apenas para aparar o cabelo sobre as orelhas...

terça-feira, 30 de julho de 2019

O encontro - Parte I


André e Suzete não se viam desde os tempos em que ela frequentava a oficina de escrita coordenada por ele e destinada a um grupo de psicanalistas em formação, ela, cabeleireira, convidada especial. Depois de tantos anos, se encontraram na cidade de ***.
            Para aqueles que não se lembram, eles se conheceram em um salão de beleza, onde André fora cortar cabelo em momento delicado de sua vida. Lá estava Suzete, que só cortava cabelo de homem, embora trabalhasse em salão feminino. O episódio está belamente relatado em Folhetim
http://loucoporcachorros.blogspot.com/search/label/Folhetim.
            Ambos gostam de literatura, adoram escrever cartas, gênero fora de moda, diga-se de passagem; a correspondência entre ambos prosperou, já são perto de 40 cartas, e a amizade também. De repente surgiu o desejo de se encontrarem, de falar um ao outro, de ouvir a voz do outro, de calar e apenas ouvir, de rir, até de chorar se fosse o caso. Daí o tão esperado encontro, tanta coisa para conversar.
            Abraçaram-se longamente na pequena rodoviária da cidade, trocaram palavras de carinho mútuo e saudade, hospedaram-se em modesto hotel na serra da Mantiqueira, em quartos separados. Jantaram no próprio hotel, beberam uma garrafa de vinho tinto de qualidade mediana, conversaram até tarde. 
            – Bom dia, Suzete! Dormiu bem?
            – Como uma santa, André. E você?
            – Acordei apenas uma vez durante a noite, espantado com o que acabava de sonhar. Antes de dormir, peguei a ler o Amós Oz, livrinho gostoso com o título Do que é feita a maçã, uma conversa com a editora Shira Hadad. Vou ler para você o trechinho que me interessou:

“Quando foram publicadas minhas primeiras histórias, há mais de cinquenta anos, fui até a secretaria do kibutz e disse: peço um dia por semana para escrever. Irrompeu ali uma discussão muito grande e muito dura. Não foi uma discussão entre pessoas ruins e pessoas boas, ou entre pessoas esclarecidas e pessoas obtusas. Os que se opuseram ao meu pedido tinham dois argumentos: um, todo mundo pode dizer que é artista. E quem vai ordenhar as vacas? Um vai querer fotografar, outra vai querer dançar, outro mais vai querer esculpir, e outra mais vai querer fazer filmes de cinema, e quem vai ordenhar as vacas?”
            
            – Suzete, adorei a pergunta “quem vai ordenhar as vacas?”
            – Também gostei, André. Quando uma menina começar a fazer corpo-mole no salão, agora vou logo dizendo, E quem vai ordenhar as vacas?
            A paixão de ambos pela literatura fez com que ela surgisse logo no café da manhã. Começou bem, com Amós Oz.
            – Suzete, você não sabe o mais interessante da história.
            – Me conte.
            – Dormi com o livro do Amós nas mãos, e sonhei com ele. Sonhei que ele estava deitado em uma cama muito simples, dessas de hospital, encostada na parede. Embora doente, mostrava largo sorriso, alegre, amável, gentil para comigo. Ajudei-o a vestir uma blusa de lã vermelha, ele sentado na cama. Acordei feliz, Suzete. Fechei o livro e voltei a dormir.
            – Que sonho lindo, André. A blusa era vermelha!
            – Isso mesmo, havia cor no sonho, havia vida no sonho. Sinto profundo afeto por Amós Oz, e vou lamentar sempre que ele não tivesse ganhado o Nobel.
            Terminado o café da manhã tomaram um taxi e foram conhecer o belo parque no limite da cidade, no alto da serra, com linda vista para todo o Vale do Paraíba. A impressionante cachoeira com o tradicional nome Véu de noiva não podia faltar.
            Suzete contou algumas novidades sobre seu novo salão – agora era proprietária –, falou das dificuldades em lidar com empregados, do aperto financeiro; mantinha, é claro, o hábito de só cortar cabelo de homem. André ouvia tudo com muita atenção. 
Demorou pouco e a conversa recaiu sobre a escrita. Suzete reclamou da dificuldade para melhorar a própria escrita.
– Sabe, André, não posso mais continuar copiando seu estilo, que gosto muito, mas é o seu estilo. Preciso adquirir o meu próprio estilo, e isso é difícil pra caramba. Meu sonho era publicar um livrinho com histórias acontecidas no salão de beleza. O que você acha? Muita pretensão para uma cabeleireira?
– Acho ótima ideia! O fato de ser cabeleireira conta a seu favor, Suzete, as experiências são suas e ninguém melhor para relatar elas. Sossegue, ajudo você na empreitada. Se tem o desejo, é o que basta: escrever é preciso. Faça como o nosso Amós Oz, peça um dia para escrever!

Fim da Parte I

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Parabéns a Suzete


Querida Suzete,

releve meu silêncio. Ainda abatido com a morte de minhas amadas Falena e Juliette, ando sem ânimo para escrever, remoendo o luto. Porém, escrever a você me ajuda a recuperar a alma, é terapêutico – repito sempre. (Procuro outro cão de guarda, pessoa que imponha respeito, que meta medo e afaste malfeitores. Mais que isso, que seja meu amigo.)
            Preciso comentar sua última carta. (http://loucoporcachorros.blogspot.com/2019/05/suzete-vai-outro-mundo-e-volta.html)  Foi a mais bem escrita que jamais me enviou, Suzete! E o mote – Estamos A Falar De Outro Mundo – nem era tão bom assim, mas você foi longe. Você é uma escritora e merece meus parabéns pelo dia de hoje, Dia do Escritor. Continue escrevendo, faz bem à saúde.
            Procuro cuidar da minha saúde mental, PRECISO cuidar da minha saúde mental. Outro dia um grande amigo, irmão mesmo, disse que estou ficando intolerante. Aquilo me abalou, me abalou porque eu já sabia disso, mas ouvir assim na lata foi uma porrada, custei a digerir, porque sei que se trata da reafirmação inequívoca do processo de envelhecimento cerebral, a acentuação de traços preexitentes. O traço intensificado, ampliado, surge sem que eu possa controlá-lo. Pedir desculpas não resolve. Às vezes penso que o silêncio é a solução, porém até manter-se em silêncio é difícil em determinadas situações, especialmente quando tenho alguma opinião formada sobre o assunto, como: Crianças Precisam Ir À Escola. Melhor não ter opiniões formadas...
            O que, de certa forma, sugere que estou vivo, isso de me abalar com uma porrada. (Sem que tenha o desejo de retribuí-la.)
            Manter o Loucoporcachorros sempre atualizado é outra forma de me sentir vivo. Notícias comentadas, meus quadros favoritos, mais recentemente a Galeria de Família, com pequenos textos a ilustrar as fotografias antigas, as fotografias do jardim acompanhadas de sofríveis haicais (que, penalizado, meu irmão elogia), e suas cartas, Suzete, que fazem sempre enorme sucesso.
            E la nave va.
            De repente, uma surpresa. Encontrei um novo amigo! Conversamos conversamos conversamos, sobre tudo, às vezes sobre nada, passa o tempo, o tempo voa, anoitece, nem damos conta, Moisés é de uma docilidade ímpar, e nem um pouco intolerante, um espírito superior. Faz-me bem.
            Pronto, aqui está minha resposta, querida Suzete, na expectativa de uma sempre adorável resposta sua.
            Do amigo de sempre, com saudade,

                                                           andré

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Suzete vai a outro mundo e volta


Meu querido André


li ontem em seu blog, na postagem sobre Antônio Meneses e Luiz Amorim, dois artistas, uma frase que continua martelando martelando martelando na minha cabeça como um fantasma assustador provocando o surgimento de tantas outras ideias aos borbotões, tantas que preciso escrever a você para tentar colocar em ordem todos esses pensamentos que estão a assombrar a vida de uma pobre cabeleireira.
            (Antes de mais nada devo confessar que precisei ir ao Dicionário Informal, que gosto muito, para saber o significado da palavra luthier. Aprendi. Aprendi também repetir as palavras sem vírgula, a mesma palavra, para reforçar o que desejo exprimir. Acho lindo.)
            Vamos à tal frase: “Estamos a falar de outro mundo.”
            André, vivo enfurnada nesta cidade pequena, em meio a este povo pacóvio, sufocada num salão de beleza, cortando cabelo de homem, ouvindo abobrinha o dia inteiro, porque em salão masculino ou feminino só se fala abobrinha mesmo, este é meu mundo, e quando leio que há quem viva em outro mundo, isso me deixa tonta, perturbada, desacorçoada, esmorecida de tudo. Perco a esperança. Percebo que nunca hei de sair desta arapuca em que me meti.
            Fiquei pensando em que conversavam Antônio Meneses e Luiz Amorim, na delicadeza das ideias deles, falavam de instrumentos musicais, da afinação de um violoncelo, da construção de um novo violoncelo para Antônio, embora ele já tenha um ótimo instrumento! Falavam desde a origem da madeira até o acabamento final! Coisa mais linda, sem contar que depois da afinação Antônio podia tocar Bach, Villa-Lobos, uma bachiana, já pensou? 
            Não falavam da reforma da previdência, da ameaça de novo desmoronamento de barragem em Minas, dos tais laranjas, das declarações estapafúrdias do presidente & filhos, dos políticos presos & soltos, dos ministros da Educação – vontade de chorar –,
 e o pior de tudo, do desemprego assustador em nosso país. Como é possível viver desempregado, André?  
Pois não é que dei uma volta completa em torno de meus miolos, verdadeira cambalhota, e cheguei ao ponto de partida, ao meu salão de beleza, onde corto cabelo de homem e ganho meu pão honestamente. Como poderia viver sem isso, sem poder comprar um livro, sem ir ao cinema de vez em quando? Como, André?
É bom saber que existe um outro mundo, onde as conversas são delicadas, os assuntos amenos (agora escrevi bonito!), as pessoas educadas, pois como você gosta de dizer, “tudo é uma questão de educação”, não é mesmo? Sabe onde encontro isso, André, nos livros que leio; enquanto leio, voo para outro mundo. (As pessoas que não leem só podem mesmo falar borracha, que é a mesma coisa que abobrinha.)
Estes são os borbotões que me vieram à mente a partir da sua frase, André. Me fez pensar, a sua frase. Escrever sobre meus pensamentos me ajudou a dar a volta completa. Obrigada.
Beijo.
Da sempre sua,

                                    Suzete.
            

domingo, 19 de maio de 2019

Devo uma resposta a Suzete


Minha querida Suzete,

há mais de mês que não recebo cartinha sua e não posso reclamar, minhas respostas tardam, falta-me assunto, aparvalhado que me encontro com a enlouquecida política nacional, desanimado com nossos políticos, descrente do futuro de um país que se ainda não é uma Venezuela, já se parece muito com a decadente Argentina. 
Escrevo com esforço, portanto não espere grande coisa desse meu texto, apenas a manifestação de saudade de você e vontade de saber notícias suas. (Você merecia coisa melhor, depois de sua última cartinha contendo a brilhante crítica a um certo microconto.)
Salva-me a música e a literatura. Pois escrevo para lhe recomendar um belo livro, O verão tardio, de Luiz Ruffato (Companhia das Letras, 2019). O autor já ganhou fama nacional, com diversos livros publicados, entre eles o divertido Estive em Lisboa e me lembrei de você, e o monumental Inferno provisório!
O verão tardioconta a experiência vivida pelo protagonista durante seis dias, de terça-feira a domingo, em seu retorno a Cataguases – sempre Cataguases – 20 anos depois de ter deixado a cidade natal. Porém, o que me cativou mesmo no livro foi a forma, o fluxo de consciência a prender a atenção do leitor, desde as banalidades do cotidiano até a marcante posição política de Ruffato, um escritor de oposição, crítico da política do governo atual. 
Eis uma pequena amostra, Suzete, para ver se você se anima a ler o livro:

“[ ]
acordo com o barulho do portão de ferro – abrindo ou fechando? Fechando! Passei por uma madorna. Deve ter sido a Rosana saindo para o trabalho. Os passarinhos em algazarra. Barulho de carros lá fora. Ponho os óculos. Levanto. Minha cabeça dói. Vou até o mancebo, recolho a calça e a camisa, visto. Sento na cama, boto as meias, calço o tênis. Pego a escova de dentes na mochila. Colo os ouvidos à porta, nenhum movimento. Atravesso o corredor, penetro no banheiro, tranco a porta. Urino. Lavo o rosto, escovo os dentes. Dou descarga. Deixo o banheiro, entro rapidamente no quarto, guardo a escova na mochila. Coloco o boné na cabeça. Tomo fôlego, alcanço sorrateiro a cozinha, consulto o relógio de carrilhão, mas ele não marca a hora certa, alcanço a garagem, contorno o Honda Fit, puxo a porta lateral, ganho a rua. E então aspiro com força o ar quente da manhã ensolarada.”

            Não que eu seja fã da escrita de frases curtas, que a gente lê como se estivesse soluçando. Mas o ritmo alucinante de Ruffato é diferente, penso eu.
            Espero que compre o livro e goste, Suzete. A capa é bem bonita, veja.


            (O inusitado de se escrever uma carta pela Internet, seja enviada por e-mail, postada no blog ou por qualquer outra via virtual, é que podemos acrescentar imagens, como a capa do livro em questão. Não é fantástico isso, Suzete?)
            Ainda a respeito da escrita do Ruffato, encontrei em Manoel de Barros (Poesia Completa, Leya, 2010), uma frase que bem se aplica:

“A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.”

            Ruffato desarruma a linguagem!
            Fico por aqui, com forte abraço e um beijo à amiga.
            Do sempre seu,

                                               andré
            


quinta-feira, 4 de abril de 2019

Suzete disseca um microconto


André, meu querido

você deve estar muito ocupado e por isso tarda a responder minhas pobres cartinhas. Não me importo, apenas sinto falta de ler o que você escreve só para mim. Para consolo meu, sigo o Louco por Cachorros religiosamente, fonte de inspiração para muitos pensamentos e ideias. Aqui vão algumas delas, elaboradas recentemente.
            Você publicou um microconto incrível, com uma frase que não me sai da cabeça! E ainda por cima em colaboração com seu médico!! Que coisa! Você precisa explicar melhor esta parceria. Transmita meus parabéns a ele. O título que você deu foi Aguda sensibilidade, muito bom por sinal. Reproduzo o microconto:

“O patrão pediu a opinião dele sobre o novo capataz. Simples e analfabeto, foi taxativo:
– Doutor, não vejo ninguém naquela pessoa.”

            Entendi que o tal empregado, simples e analfabeto, embora em posição inferior em relação ao capataz, é pessoa de confiança do doutor, que provavelmente está acostumado a se aconselhar com ele. A despeito da simplicidade, é homem de aguda sensibilidade, o doutor sabe disso.
            Então vem a magnífica frase: “não vejo ninguém naquela pessoa.”
            Olhar para alguém e não ver ninguém, eis a questão! 
            Tem gente tão desenxabida, tão insossa, tão sem-graça nessa vida, que a gente olha e não vê mesmo ninguém. Transparentes, apagadas, são verdadeiras moscas-mortas, como se diz. (Acho que se prestarmos bastante atenção, vamos encontrar uma alma nessas pessoas desenxabidas. Foi o caso da Gracinha, minha colega de salão. Tanto fiz que encontrei dentro dela, bem escondida, uma ótima pessoa, hoje minha amiga.)
            Há também aqueles que se escondem da vida e dificilmente podem ser vistos; muitos, por medo de viver. (O Rosa, que li com muita dificuldade – nunca vi tanta palavra escalafobética –, mas li, não se cansa de repetir que “viver é muito perigoso”.)
            Penso, no entanto, que nada disso se aplica ao seu microconto, meu querido amigo. (Estou apenas enchendo linguiça, brincando de escritora...) Considerando as circunstâncias (aprendi isso com você), a existência de três personagens que se relacionam, o patrão, o homem simples e o novo capataz, há um julgamento moral bastante evidente nessa história. 
O capataz não é nenhuma mosca-morta; ao contrário, talvez seja bom não confiar nele, diz o homem simples. Pior, talvez ele seja do mal, e o homem simples percebeu isso num relance; tão ruim que nem mesmo um homem há dentro dele para ser visto ou considerado; não há ninguém lá dentro; ou talvez haja um filho do Capeta. 
            Nesse último caso, trata-se de um alerta que o homem simples e sábio faz ao patrão, igualmente sábio porque pôde ver a alma do homem simples. E este tipo de alerta pode servir para todos nós, nas escolhas que fazemos na vida. Vale a pena tentar desenvolver a sabedoria do homem simples para detectar melhor (mesmo assim com grande margem de erro) o que podemos ver nas pessoas. Porque o que não podemos ver é infinitamente maior.
            E o que será que aquele que olha para mim, vê? Se é que vê alguma coisa. (Outro dia entrou aqui um sujeito, murmurou um monossílabo entredentes, cortei-lhe o ralo cabelo, pagou, saiu sem me dirigir uma única palavra ou olhar para a minha cara. Euzinha transparente.) 
            Quem mora dentro de mim? 
            Você vê alguém quando olha para mim, André?
            Estou aprendendo que um microconto pode ser bem maior que um volumoso romance.
            
Da sempre sua, com afetuoso abraço,

                                                                       Suzete.


P.s.: Putaquepariu! Ia me esquecendo de escrever um palavrão!
            

segunda-feira, 4 de março de 2019

O susto de Suzete


Meu querido André,

como você demora a me escrever, escrevo eu, mesmo que não tenha grandes novidades para contar. 
Não escrevo sobre política pois sei que você está bem mais atualizado do que eu, nesse nosso país da piada pronta, como diz o José Simão. Mas escrevo quando tenho um caso para contar, aí sim, com prazer redobrado relato o acontecido no salão, ah! sempre o salão, com gente que senta na minha cadeira, onde só corto cabelo de homem. (Outro dia recebi um e-mail de um leitor de seu blog, dizendo que eu repito muito esse negócio de “só cortar cabelo de homem”, está bem, todos já entenderam isso, que não preciso ficar repetindo repetindo repetindo, mas o que posso fazer se esta é a minha marca registrada?) Sem mais delongas (nunca pensei que um dia escreveria esta palavra!), vamos ao caso.
Há poucos dias sentou-se em minha cadeira homem perto dos 40, bonito, porte atlético, pediu o corte da moda, máquina zero nas laterais, deixando o cabelo curto até a nuca. Meu trabalho já ia pela metade quando de repente o homem, Bráulio seu nome, saiu-se com essa:
– Você sabe que a Terra é plana?
Putaqueopariu André, levei um susto danado, certa de que estava cortando cabelo de um maluco.
– Como? retruquei.
– Você nunca ouviu falar nos terraplanistas?
            – Terra-o-quê?
            – Terraplanistas. Sou um deles. Nós não acreditamos nessa bobagem difundida pela mídia oportunista reacionária conservadora que prega que a Terra é redonda. Onde já se viu? Eu acredito no que vejo, e vejo a Terra bem planinha; você já viu essas plantações de algodão soja milho cana feijão arroz café, todas a perder de vista, uma planura só, já viu? Pois é, como a Terra pode ser redonda, me diga?
            André, eu não sabia o que dizer, se ria ou se chorava, Bráulio falava com tamanha convicção, não havia espaço para diálogo, muito menos contradição. E ele continuou com a ladainha, com sua epanástrofe cansativa, eu parada com pente e tesoura nas mãos, besta de tudo.
            – E onde o senhor aprendeu isso, Seu Bráulio?
            – No YouTube, naturalmente! Está tudo lá, é só você procurar. Tudo provado e comprovado, a Terra é, e sempre foi, PLANA. E nós, os terraplanistas, estamos planejando uma viagem para o lugar onde a Terra termina.
            Arrisquei mais uma intervenção:
            – Mas o que pensar das fotografias enviadas por satélites, pelas naves ocupadas por astronautas, mostrando a terra azul e redonda?
            – Tudo conspiração de uma mídia manipuladora. Está tudo lá, a verdade, no YouTube. São os terraplanistas que afirmam e provam: a Terra é plana!
            André, não abri mais a boca, terminei logo o serviço, o homem elogiou o corte, levantou-se e se despediu enfaticamente:
– Vá ao YouTube, está tudo lá, ciência pura, junte-se a nós, porque a Terra é plana.
Você não vai acreditar, meu amigo. Ao chegar em casa abri meu computador e fui direto ao YouTube, onde encontrei milhares de notícias, vídeos, prós e contras a ideia da Terra Plana, uma discussão sem fim, e eu nunca tinha ouvido falar dessa estultícia. 
Pergunto a você, que sabe das coisas, que mundo é esse em que vivemos? Se tem gente duvidando até da redondeza da Terra, em que então podemos acreditar? Mídia manipuladora, é isso mesmo?
Bem, eis o caso que desejava contar.
Espero sua resposta em breve.

Da sempre sua,
                                               Suzete.


P.S.: Gostou da epanástrofe? Aprendi isso, usar palavras dicionarizadas mas que não são de uso comum, com o Evandro Affonso Ferreira, de quem você é fã.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Suzete escreve um microconto


Meu querido André,

mostrei a última cartinha que você me escreveu a minha colega Abigail e ela quase morreu de inveja, que nunca recebera uma carta assim, tão delicada, embora não tenha apreciado um certo palavrão, como é que pode começar falando de cachorros, passar ao amigo e terminar com microcontos, no que concordei com ela em tudo, menos no palavrão muito bem colocado diante do dentinho afiado de Lila, ai como dói, putaqueopariu! 
            Ao final da carta você me pede que escreva um microconto! Muito difícil, meu amigo, para uma simples cabeleireira. Não é de hoje que venho acompanhando esta sua predileção pelo gênero e penso que preciso desenvolver capacidade de síntese para escrevê-los, o que não é fácil diante das conversas de salão de beleza, onde as pessoas falam falam falam até secar a garganta, para não dizer nada. Parece que o bom microconto é aquele que dá um recado.
            Em seu livro minimalismosvocê escreveu aquele que achei um belo microconto, na forma e conteúdo:

“Esperava pelo irmão como quem espera pelo Messias. Ao chegar, viu que o irmão era de carne-e-osso. Amou-o ainda mais.”

            Acho que não consigo fazer nada parecido, André. Mas estou tentando, e de tanto tentar, saiu-me isso:

Diante da desilusão amorosa, Sansão pediu-me que lhe raspasse a cabeça. Foi perdendo forças, definhando, até morrer. 

            E você acha que podia sair outra coisa do bestunto de uma cabeleireira que só corta cabelo de homem? Diga-me, sinceramente, posso continuar tentando?
            Pelo que você tem escrito no blog, a visita de seu amigo Sergio foi um sucesso. Agora sou eu quem fica com inveja. Amizade dessas não tem preço. Pois vou lhe contar o sucedido recentemente comigo. 
            Há 8 meses e meio apareceu por aqui uma tal de Mara, vinda de Santa Catarina (em toda a minha vida eu nunca havia conhecido ninguém de Santa Catarina), toda branquinha que nem leite, quase transparente, fala mansa de gente educada, pegou a cadeira ao lado da minha, mas só cortava cabelo de mulher. Foi se chegando, ficou minha amiga, nos fins de semana não saía lá de casa, elogiava minha comida, gostava dos meus livros, e acho que foi isso que acabou por me cativar, gostar dos meus livros. Também eu me apeguei. 
            André, não vale a pena encompridar essa história patética (é a primeira vez que uso a palavra patética). Certo dia Mara me disse que precisava visitar a mãe doente em Santa Catarina (já viu desculpa mais esfarrapada?), pediu-me dinheiro emprestado para a viagem, nunca mais deu notícia. Acabou-se a amizade, acabou-se a patética história. 
            Eram todas as minhas economias, acredita? Foi o que me deixou putadavida, não senti a perda da amizade porque não era mesmo amizade, não me senti ludibriada porque não fiz nada de errado, nem boba me senti porque continuo acreditando nas pessoas e é possível que volte a cair num golpe desses, mas perder meu dinheirinho ganho honestamente cortando cabelo de homem – e alguns são muito chatos –, aí não, isso eu não me conformo. 
            Estava juntando dinheiro para visitar Nova Iorque. Agora não dá nem pra ir a Aparecida do Norte, a pé, e lá não vou mesmo, ateia degenerada (não foi assim que seu irmão chamou você?, degenerado?) que sou, que se creditasse em promessa fazia uma para Santo Expedito, o das causas perdidas, para ter meu dinheirinho de volta.
            Portanto, de volta ao salão, isso sim. Haja cabelo de homem.
            Termino por aqui, meio chateada com esta resposta tão sem graça desenxabida insossa insípida inodora, longe da graça com que me escreveu. Paciência. A próxima será mais inspirada.
            Beijo da sempre sua

                                                           Suzete.
            

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Suzete conhece o Anjo Exterminador


Querida Suzete,

tempos estranhos esses que estamos vivendo. Tragédias e mais tragédias, mortes e mais mortes, de repente perdemos o homem que nos traduzia os acontecimentos cotidianos de forma lúcida e corajosa, e o país acorda de luto nesta terça-feira 12 de fevereiro, uma tristeza sem fim. Ficou difícil pensar.
            Depois de ler quatro ou cinco jornais e percorrer o Twitter de ponta a ponta, o sentimento é de desalento, de desesperança. Então bateu a vontade de escrever para você, minha amiga.
            Há um animal novo aqui em casa. Como o irmão mais velho se chama Costela, botei-lhe o nome de Bisteca. Não pegou, ninguém gostou, lindo animalzinho da raça dachshund, ou linguicinha, ou Cofap, com nome tão vulgar. Passou a chamar-se Lila, inspiração oriunda de uma certa série da tv, A amiga genial. Todo mundo gostou. Com o passar dos dias, agora com 3 Kg e uma voracidade infernal, tem sido chamada de Anjo Exterminador, Capeta, Cão Chupando Manga, Dragão de Komodo, e até Filha-da-Puta, quando prega os caninos em meu pé.
            O prazer de Lila é infernizar a vida dos outros quatro cães daqui de casa, morder a orelha das duas pequenas e o rabo das grandes. Vamos ver se melhora com a idade e um pouco de juízo. Mas ela é linda!
            Não sei o que seria desta casa sem a presença dos cães. Seria um ermo triste cheio de silêncio. Sabe, Suzete, os que já se foram – Dora, Berta, Lenda, Camões, Lola – permanecem todos presentes, enchendo a casa de lembranças doces, do amor que nos legaram.
            Enveredei por este assunto canino para lhe contar que esteve conosco nesse fim de semana o meu amigo Sergio Pripas, de São Carlos – a Capital do Mundo! 
Falávamos de cães, naturalmente, dos diferentes temperamentos de cada raça, Sergio teve um dogue alemão arlequim, lindíssimo, eu tive um rottwailer imenso chamado Zenon, falávamos das diferentes personalidades desses animais, de como se relacionam com seus donos, (e o Anjo Exterminador mordendo nossos pés debaixo da mesa da cozinha, Ôôô Raça-Ruim!), até que lhe apresentei o gold kiwi, que ele não conhecia, embora seja grande conhecedor de plantas, flores, frutos, bichos e muito mais. Ele gostou, impossível não gostar de um gold kiwi, e ficamos dissecando o complexo sabor da fruta, um tanto do kiwi comum, o verdinho, um toque de laranja, de limão, textura de mamão, sabor elegante, até que meu amigo saiu-se com a antológica frase, que por si só constitui um excelente microconto:

Gold kiwi é cachorro.

            Portanto, Suzete, aqui estão os três grandes microcontos da Literatura Universal:
1 - O Dinossauro, de Augusto Monterroso: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”
2 - Manoel de Barros: “Ovo de lobisomem não tem gema” (que só eu classifico como microconto; para o autor, um verso apenas).
3 - Agora, Sergio Pripas: “Gold kiwi é cachorro.” Para a glória eterna, como o terceiro melhor microconto de todos os tempos!

Suzete, nunca recebi um microconto seu. Quem sabe na próxima carta? 
            Bem, termina aqui o lero-lero sobre cães e afins. Termina também esta cartinha, que já me deixa mais animado para enfrentar o dia-a-dia deste país tropical “abençoado por Deus e bonito por natureza”...
            Do amigo de sempre,

                                                           andré

            

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Resposta a Suzete ao findar o ano


Minha querida Suzete,

não posso deixar de responder ainda nesse ano sua última cartinha, uma gostosura de se ler, muito bem escrita; adorei os “eleven do supremo”, você deve ter assistido o filme Ocean’s Eleven(Onze homens e um segredo), com o George Clooney, bom filme, para aplicar o título à nossa suprema corte tão malfalada hoje em dia.
            Preciso destacar sua sensibilidade, Suzete, capaz de pinçar o haicai mais bonito de todo o Haicais Tropicais! “Desejava varrer o jardim antes de partir” é mesmo um belíssimo verso; o poeta deseja fazer algo bem simples e desimportante antes de morrer, ao mesmo tempo que quer deixar tudo limpo. Simplicidade, desimportância, texto limpo são atributos da boa poesia. O haicai segue tais preceitos.
            Quanto a nossa MPB penso como você: quando a gente pensa que chegamos ao fundo do poço, vem a sofrência...
            Parabéns pelo novo salão de beleza! A ideia de abrir filial em Nova Iorque é maravilhosa. Sinceramente, espero que não precisemos deixar o Brasil, com os recentes ventos do conservadorismo. Confesso que estou meio assustado, mas não completamente pessimista. Faz bem manter viva alguma esperança de que daqui a 30 ou 50 anos a Educação seja capaz de transformar esse país em terra de gente civilizada.
O que me preocupa é o viés religioso que aparentemente se quer estabelecer como regra institucional. Minutos antes de receber o diploma pela vitória, nosso presidente eleito pediu a um pastor que fizesse uma oração para seleto grupo. Comentei o assunto com uma amiga evangélica, e ela me respondeu, Mas que mal há em rezar? Isso só pode fazer bem!  
Penso eu, por que não rezar na intimidade da própria casa, numa igreja, em algum templo seja de que religião for? O Superior Tribunal Eleitoral talvez não seja o local mais apropriado.  (Dirão os que creem, Qualquer lugar é bom para rezar...)
Com tal viés, temas importantes como o aborto, o direito de morrer em paz (http://loucoporcachorros.blogspot.com/2018/12/direito-de-morrer-em-paz.html), a eutanásia, não poderão ser debatidos nesse ambiente fundamentalista. Implicações com certas manifestações artísticas contemporâneas igualmente poderão ser mal recebidas e rejeitadas a priori
Enfim, querida Suzete, vamos esperar para ver.
Encerro minha resposta à sua cartinha com um haicai do meu querido José Paulo Paes, com o título 

Teoria da Relatividade

devagar se vai longe

mais perto de deus o ateu
do que o monge

            Receba o meu afetuoso abraço, com votos de Feliz 2019.

andré



            

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Suzete deseja Feliz Natal


Meu querido André,

escrevo para lhe desejar um feliz Natal e muita saúde em 2019.
            Tenho escrito pouco, nem mesmo respondi sua última carta, com duas ótimas recomendações. Não é desculpa não, mas tenho trabalhado demais. Você não sabe da novidade: abri um salão de beleza! Acredita? Eu dona de meu próprio salão? 
            Tinha gente pensando que eu estava juntando dinheiro para ir a Nova Iorque; que nada, fui juntando meu dinheirinho na surdina, aprendi como aplicar no tal tesouro direto, para o que faltava, fiz um pequeno empréstimo no banco, e pronto, cá estou eu proprietária. 

SALÃO DA SUZETE

            O nome não poderia ser outro porque Suzete com zê é a minha marca de sorte desde que me conheço por gente e sempre que alguém se espanta e pergunta se Susete não é com esse respondo que meu nome é com zê desde o nascimento. Meu pai fez questão de registrá-lo assim e assim há de ficar até o dia de minha morte e depois.
            Eu queria estampar no letreiro que o salão é misto, corta cabelo de homem e de mulher. Mas a coisa hoje está complicada, André, não estamos mais divididos em homens e mulheres. São tantas as variações que é difícil enumerá-las; além dos clássicos masculino e feminino, há o trans-homem, transmulher, travesti, transgênero, homem transsexual, mulher transsexual, pessoa transexual, mulher trans, homem trans, neutro, sem gênero, cross gender, pessoas trans, pessoas MTF, pessoas FTM, e não sei quantos tipos mais. 
            Resolvi a questão:

SALÃO DA SUZETE
– cortamos cabelo sem discriminação –

            É claro que contratei três ajudantes para cortar do resto, porque eu só corto cabelo de homem (e similares). 
            Vai bem o negócio (assim acabo conhecendo NY!), gostaria muito que você visitasse o salão algum dia. Já pensou, se abro uma filial em NY? Daí não volto para o Brasil, só de férias, pra passar o verão na Bahia. Que a coisa aqui tá preta, André, você sabe. Os eleven do supremo não se entendem, tem gente vendo Jesus em pé-de-goiaba, o atual presidente indiciado novamente, o antigo continua preso, o novo alarmando, a Polícia Federal trabalhando freneticamente desde as 6 da matina e não dá conta de prender tanto corrupto vagabundo, o foragido italiano disfarçado de político mineiro, e o pior de tudo, a sofrência comendo solta. 
            (Disso tenho verdadeiro desgosto. Um país que já teve um João Gilberto, um Tom Jobim, um Vinícius de Moraes, a mpb cantada no mundo inteiro, hoje canta sertanejo, sertanejo universitário, e agora, sofrência. Puta-que-o-pariu. Ups!, escapou.)
            Estou providenciando a compra do tal Anthony Marra que você recomendou no blog, que não paro de ler por nada desse mundo. Também por sua orientação comprei Haicais Tropicais, e me encantei com um haicai de Alberto Marsicano:

caem folhas do salgueiro
desejaria varrer o jardim
antes de partir

          Fiquei fã do haicai, que não conhecia, confesso. Mas também gosto muito das quadras no blog de seu irmão Paulo. Ele é mesmo um poeta!
            Fico por aqui, é a última cartinha do ano. Não deixe de me responder o quanto antes. 

Beijo da sempre sua,

                                                           Suzete.
            
            

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Duas recomendações a Suzete


Querida Suzete,

em falta com você porque tardam minhas respostas às suas deliciosas cartinhas, volto a lhe escrever. Passada a tormenta das eleições posso pensar melhor. Verdade que este “período de transição” não é menos tormentoso, uma notícia atrás da outra, algumas até interessantes, porém, melhor esperar para ver...
            Tenho duas coisas para lhe contar. A primeira é que tenho ouvido música como nunca ouvi em toda a minha vida. Diariamente. Bach e Beethoven são meus preferidos no momento, mas ouço de tudo, desde o barroco ao contemporâneo – sou fã de Ärvo Part! 
            Penso que os velhos (prefiro esta palavra a idosos) deveriam ouvir música todos os dias. Faz bem para os miolos, afetados pela ação do tempo. É terapêutico, para falar chique; faz bem à alma, singelamente.
            E me atrevo a oferecer uma recomendação aos velhos interessados: ouçam a mesma música várias vezes, duas, três, quatro, dez vezes; posso garantir que isso não cansa, não enjoa, é injeção na veia de entusiasmo, inunda o espírito tanto mais você ouve; talvez promova regeneração de neurônios...
            Os Noturnos de Chopin são peças ideais para este tipo de exercício. As Sonatas para Piano de Beethoven e os Quartetos para Cordas de Mozart prestam-se igualmente. Cada ouvinte haverá de buscar seus compositores preferidos. Talvez a boa música popular possa fazer o mesmo efeito. O Jazz certamente o fará. Não acredito que o funk possa trazer algum benefício. Preconceito meu?
            Querida Suzete, chamei de recomendação aos velhos porque ando preocupado com eles, ou com a velhice, melhor dizendo, por razões óbvias. Mas ela serve para todas as pessoas, do nascimento à morte, e certamente para uma especial cabeleireira como você, que só corta cabelo de homem. 
            A segunda recomendação, feita com humildade, é que escrevam haicais, moços e velhos. Os neófitos precisam informar-se sobre a história do haicai, sobre as variantes da técnica, ler alguns haicaistas brasileiros para ter uma noção da evolução deste poema japonês entre nós. Depois podem esquecer tudo isso e começar a escrever.
            É preciso um certo estado de espírito para compor um haicai. (Ontem mesmo postei no blog texto sobre interessante elemento presente com frequência no haicai, o humor. Fica a gosto do escritor.) 
            Não é preciso ser um Bashô ou um Guilherme de Almeida para compor um haicai; apenas seja você mesma, Suzete, e procure colocar seus sentimentos em três versos curtos, com ou sem rima, falando da Natureza ou não, a forma importa pouco hoje em dia. A emoção importa sempre! É preciso haver sentimento no haicai. (Um terceto não é necessariamente um haicai; um ótimo terceto será sempre um ótimo terceto, nem sempre um haicai; a intenção do autor fará a diferença.)
            Desculpe a repetição, Suzete, mas compor haicais também é terapêutico.
            Despeço-me para não cansar você com esta lenga-lenga de velho. Escreva, suas cartinhas são uma benção!
            Do amigo de sempre,
                                                           andré.
            

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Suzete joga conversa fora


Meu querido André,

preciso desabafar. Não aguento mais notícias de eleições, nos jornais, na tv, no rádio, no celular, a Internet invadindo nossa vida com fatos e fakes, atormentando nossos miolos, tirando o sono, causando pesadelos.
            (Antes de prosseguir com minhas queixas, preciso dizer que fiquei assustada com o modo instantâneo e definitivo com que a palavra fake entrou na língua portuguesa, passando para trás mentira e falso; melhor ficaria notícia falsa, mas não, fake tomou conta do pedaço e não há o que se possa fazer contra isso, ninguém controla a língua, não é mesmo?)
            O que mais me irrita é o Brasil parado, completamente imobilizado pela expectativa de alguma mudança que acho improvável. Ah!, podemos mudar para pior, isso sim.
            Ainda bem que trabalho não me falta, tirante os carecas, todos os homens cortam cabelo. Preciso estar atualizada, sempre na moda, pois cada dia me aparece alguém pedindo um corte mais extravagante que o outro. O mais em voga é o cabelo puxado para trás, com um coque no alto da cabeça, as laterais raspadas, coisa de jogador de futebol. Eles pedem, eu faço.
            Li duas crônicas no seu blog sobre cinema e quero falar sobre isso. Vi Paraiso perdido e adorei! Chorei até! Acho que é o melhor filme brasileiro que já assisti até hoje! Nunca vi tanta delicadeza, mesmo tratando de assuntos difíceis, num ambiente de risco, em meio a relações humanas intensas e conturbadas. E as músicas, meu Deus, que lindezas! Os atores não são cantores, mas interpretam as canções tão bem, que acabam cantando melhor que os próprios cantores. As cores são lindas, o guarda-roupa sensacional, fotografia de primeira. Filmaço!
            Agora, você me desculpe André, mas não concordo com o que escreveu sobre o Benzinho. Não achei nada óbvio. Que bobagem sua. Fiquei com muita pena daquela família, tantos filhos, o homem da casa um paspalhão, a mulher tendo que se virar dia e noite, todos entrando pela janela, ninguém para consertar o raio da porta, mas nunca perderam a ternura, e isso não é óbvio, André querido. Ainda bem que você reconhece o valor da atriz principal, a tal de Karina Teles, muito boa mesmo. Você sabia que os gêmeos do filme são filhos dela de verdade? O pior, continuam naquela mesma vidinha até hoje. Não é um alerta para a vida da gente? Pode ser. Tem gente que passa a vida toda entrando pela janela... (Gostei demais do comentário do Paulo, no blog, sobre o filme. Bem, Inês é morta, e você não pode acertar sempre. Não fique triste nem com ciúme do irmão poeta. Talvez você estivesse num mau dia quando viu o filme, acontece, liga não.) Filmaço!
            Você acredita que a palavra filmaço não consta do VOLP? Mas encontrei ela no Dicionário Informal, que muito aprecio porque dá bem a ideia de língua viva e mutante. Sabe André, cada vez gosto mais das palavras! Qualquer palavra, às vezes uma palavra besta como filmaço, fico pensando nela horas a fio, divagando, não há outra que seja tão expressiva. Foda-se que não conste do VOLP. (Outro dia vi na livraria um livro com o título Foda-se estampado em letras enormes na capa, e achei de mau gosto, porém o autor foi corajoso. Não comprei o livro.)
            Depois de desancar com sua crítica sobre Benzinho, preciso dizer que a coisa ainda pode piorar para o seu lado, André: nunca tive coragem para confessar, mas torço para o Corinthians. Mas devo admitir que o Palmeiras está melhor no momento.
            Nada pode nos separar, não é mesmo?
            Eram essas coisinhas sem importância, ninharias, que desejava escrever para você, pelo simples prazer de lidar com as palavras. Me responda logo, por favor.
Da sempre sua
                                    Suzete.