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segunda-feira, 21 de março de 2022

Destino

Moisés Lobo Furtado

Este belíssimo poema pode e deve ser lido no Blog do Moisés Lobo Furtado (O melhor blog da América Latina, segundo o próprio autor):

domingo, 20 de março de 2022

A sombra do poeta

 


Paulo Sergio Viana




Carlos Drummond de Andrade




Fernando Pessoa



“O poeta é um fingidor”, afirmou Fernando Pessoa, num rasgo de sinceridade incomum entre poetas. Traduzindo em português barato, a frase nos ensina que não se deve ler poesia ao pé-da-letra. Nem acreditar em tudo que o poeta – este ser raro ímpar especial privilegiado –, escreve.

            Junto aqui três poemas de três grandes poetas, que falam da sombra, cada qual a seu modo, naturalmente. Porém, posso notar um ponto de semelhança entre eles. O primeiro reduz a sombra a algo impessoal, que não pertence nem ao próprio corpo que, iluminado, gerou a sombra: ele não “reconhece a própria sombra”, ela não lhe pertence. 

            O segundo pede que o chão não guarde a própria sombra, que ele chama de inútil. O homem apenas sorri... e passa, sem deixar lembrança, ou sombra.

            O terceiro aconselha que sigamos nosso destino (que passemos, como disse o segundo poeta), que “o resto é sombra”. Em belo recurso poético, ele afirma que “o resto é a sombra de árvores alheias.” Ao afirmar que a sombra vem de árvores alheias, ele retorna à imagem do primeiro poeta, que fala da impessoalidade das sombras.

            De que, em verdade, falam estes poetas? Há neles uma certa melancolia, e a imagem da sombra lhes é útil para exprimi-la. A sombra é fugaz como a própria vida e assim o poeta vê a vida.

            Mas não se esqueçam, o poeta é um fingidor...



terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Satélite

 



Fim de tarde.

No céu plúmbeo

A Lua baça

Paira

Muito cosmograficamente

Satélite.

 

Desmetaforizada,

Desmistificada,

Despojada do velho segredo de melancolia,

Não é agora o golfão de cismas,

O astro dos loucos e dos enamorados.

Mas tão-somente

Satélite.

 

Ah Lua deste fim de tarde,

Demissionária de atribuições românticas,

Sem show para as disponibilidades sentimentais!

 

Fatigado de mais-valia,

Gosto de ti assim:

Coisa em si,

– Satélite.

 

 

                        Manuel Bandeira

                        Estrela da tarde

                        Poesia completa e prosa

                        Ed. Nova Aguilar, 1990

Porquinho-da-índia

 


 

Quando eu tinha seis anos

Ganhei um porquinho-da-índia.

Que dor de coração me dava

Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!

Levava ele pra sala

Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos

Ele não gostava:

Queria era estar debaixo do fogão.

Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

 

– O meu porquinho-da-índia foi a minha 

                                       [primeira namorada.



           

           Manuel Bandeira

           Libertinagem

           Poesia e prosa completa

           Ed. Nova Aguilar, 1990




Aprendi pouca coisa, quase nada, nessa vida tão curta. Pois foi no domingo passado, aos 75 anos, que ouvi pela primeira vez, na voz de minha mulher, este poema de Manuel Bandeira. Logo eu, que passei toda minha vida lendo Bandeira, interessado na relação dele com a morte, de como enfrentou a terrível tuberculose, e venceu com a ajuda da Poesia.

 

Hoje prefiro o humor e a ironia de Bandeira, tão bem expressos nesse poema. Mercêdes foi apresentada ao porquinho-da-índia ainda menina, estudante de escola pública no interior de Minas Gerais. Conheci Bandeira na escola pública no interior de São Paulo.

 

Como eram excelentes as escolas públicas de antigamente!  

           

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Um pouco de teoria

100 anos de Semana de Arte Moderna

 



 

“Um pouco de teoria?

Acredito que o lirismo, nascido no

subconsciente, acrisolado num pensamento claro

ou confuso, cria frases que são versos inteiros,

sem prejuízo de medir tantas sílabas, com

acentuação determinada.

entroncamento é sueto para os condenados da

prisão alexandrina. Há porém raro exemplo dele

este livro. Uso de cachimbo...

 

A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer

empecilho a perturba e mesmo emudece. Arte,

que, somada a Lirismo, dá Poesia, não

consiste em prejudicar a doida carreira do

estado lírico para avisá-lo das pedras e cercas

de arame no caminho. Deixe que tropece, caia

e se fira. Arte é montar mais tarde o poema de

repetições fastientas, de sentimentalidades

românticas, de pormenores inúteis ou

inexpressivos.”

 

            Mário de Andrade

            Pauliceia desvairada

            In Prefácio interessantíssimo, p. 39-40

            De Pauliceia desvairada a lira paulistana

            Ed. Martin Claret, 2016

 

 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

triz

 

foi por pouco

só faltou um pouco de silêncio

olhar a plácida aurora

o sereno crepúsculo

palmilhar o dia como quem pisa a relva

 

só faltou tocar de leve a pele alheia

assobiar uma cantiga da infância

ouvir arrulhos 

juntar folhas caídas e fazer um fogo breve

 

um pouco mais de carícia

um pouco mais de espera

brincar

falar mais baixo

ouvir mais alto

 

bastava um verso de paz

bastava o pendor de ser feliz

triz

 

                        Paulo Sergio Viana

                        Fev. 2022

 

 

 

O poema pode ser lido no blog de origem, com ilustração do autor e versão para o Esperanto:

 

https://blogdopaulosergioviana.blogspot.com/2022/02/triz.html?showComment=1644500613900#c8438500674597776258

 

 

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Aqui e além em Lisboa

Tweet de Cristina Feliciano @cristinafelici6 

 

(24 jan 2022)

 

 

“Aqui e além em Lisboa – quando vamos 

Com pressa ou distraídos pelas ruas 

Ao virar da esquina de súbito avistamos 

Irisado o Tejo: 

Então se tornam 

Leve o nosso corpo e a alma alada”

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen





Por essas e outras, penso que vale a pena continuar seguindo o Twitter!


sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Morre um poeta

 

 

Morreu nesta sexta-feira (14 jan 2022), em casa, o poeta amazonense Thiago de Mello, aos 95 anos. Suas obras foram traduzidas para mais de 30 idiomas. No ano passado ele foi homenageado pela Bienal de São Paulo. 

            Guardo dele em minha fraca memória, fragmento do poema O livro, que reproduzo aqui em sua homenagem.

 

“Como nunca morri, não sei da morte.

Da vida sei, e tanto sei, que faço

com este verso uma declaração

de amor, talvez de queixa: ela é que vem

de mim se despedindo devagar,

fatigada de mim, enquanto agarro,

com as garras de todos os sentidos,

o que ela ainda me dá, sempre encantada.”

 

        Thiago de Mello

De uma vez por todas

Civilização brasileira, 1996, p. 32.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

eu tenho um cão que chora


eu tenho um cão que chora

pelos séculos e milhas

que nos separam 

pranteia um lamento triste

intermitente

desconsolado

choro infantil da perda irremediável

da amarga desesperança

do abandono mais sombrio

diz o seu gemido

que a distância 

mesmo momentânea

o torna infeliz para todo o sempre

 

até que nos reencontramos

e o êxtase se restabelece

em forma de olhar e estremecimento

 

meu cão que chora tem alma de menino

será ele um pouco gente?

serei eu um pouco cão?

 


                    Paulo Sergio Viana



https://blogdopaulosergioviana.blogspot.com/2021/12/eu-tenho-um-cao-que-chora.html

 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Mansa neurose

 

 

De antemão confesso que desde sempre cultivei o hábito de comprar mais livros do poderia lê-los. Frequentador assíduo de sebos e livrarias, desde os tempos da mocidade no Rio de Janeiro, com frequência levava para casa dois ou três volumes, quando a situação financeira era favorável. Por esta mania recebi duras críticas ao longo da vida, até mesmo de amigos próximos; às vezes, o riso era de mofa. 

            O riso de mofa se repetia quando adquiria o mesmo livro várias vezes, no lançamento de edições comemorativas, por exemplo. Grande Sertão, do Rosa, que me lembro, comprei quatro ou cinco exemplares. A meu favor digo que é a única coisa que gosto de comprar nessa vida. 

            Em tempos de isolamento pandêmico, que sigo à risca, a mansa neurose muito tem me valido. Ontem mesmo, domingo de chuva, fui a minha biblioteca à cata de um certo volume de Mircea Eliade, depois de assistir Youth Without Youth (Velha juventude, em português), filme teuto-franco-ítalo-romeno-estadunidense de 2007, dirigido por Francis Ford Coppola, baseado em novela do autor romeno. (Destacam-se os atores Tim Roth e Bruno Ganz.)

            Não encontrei o livro procurado – está cada vez mais difícil torcer o pescoço diante de uma prateleira, tirar os óculos, me aproximar, colocar os óculos, me afastar, tudo embaçado. Em remota estante, que não vasculhava há anos, para grande espanto, descobri uma preciosidade que não me lembrava ter adquirido! Um livro de Paulo Leminski! Ensaios e anseios crípticos, da Editora Unicamp, segunda edição ampliada, 2012. Edição bem cuidada, uma felicidade.

            Após consultar a ficha catalográfica e ver o detalhado índice, duas outras manias deste leitor, abri o livro aleatoriamente e li: 

 

M., DE MEMÓRIA

 
            Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
            Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
 
            Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Troia,
            Assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
 
            Um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
            Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
 
            Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
            Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
 
            Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
            Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.

 

 

            É assim que um poema fecha a crônica. Obrigado Leminski. E ri, quem não sabe que pode valer a pena cultivar uma neurose.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Eu sou trezentos...





Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta,

As sensações renascem de si mesmas 

[sem repouso,

Ôh espelhos, ôh Pireneus! ôh caiçaras!

Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

 

Abraço no meu leito as melhores palavras,

E os suspiros que dou são violinos alheios;

Eu piso a terra como quem descobre a furto

Nas esquinas, nos taxis, nas camarinhas 

[seus próprios beijos!

 

Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta,

Mas um dia afinal eu toparei comigo...

Tenhamos paciência, andorinhas curtas,

Só o esquecimento é que condensa,

E então minha alma servirá de abrigo.

 

Mário de Andrade

In Remate de males (1930)

De pauliceia desvairada a lira paulistana

Martin Claret, 2016.

 

domingo, 14 de novembro de 2021

Um dia de chuva



 
"Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem; cada um como é."


Fernando Pessoa
Poemas inconjuntos (1913-1915)
Poemas Completos de Alberto Caeiro
Ed. Nova Aguilar, 1976


Cecília Meireles arrematou:

 

"Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta."

 



Foto: Mercêdes Fabiana, nov 2021.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Palavras no mar

Fotografia 


Foto: Sergio Pripas


Meu amigo Dr. Sergio Pripas curte suas férias na praia. Pedi que me enviasse uma fotografia do mar. Ele caprichou, mandou a foto perfeita!

Merece ser enfeitada por C.D.A.


          Palavras no mar

 

Escrita nas ondas
a palavra Encanto
balança os náufragos,
embala os suicidas.
Lá dentro, os navios
são algas e pedras
em total olvido.
Há também tesouros
que se derramaram
e cartas de amor
circulando frias
por entre medusas.
Verdes solidões,
merencórios prantos,
queixumes de outrora,
tudo passa rápido
e os peixes devoram
e a memória apaga
e somente um palor
de lua embruxada
fica pervagando
no mar condenado.
O último hipocampo
deixa-se prender
num receptáculo
de coral e lágrimas
— do Oceano Atlântico
ou de tua boca,
triste por acaso,
por demais amarga.

A palavra Encanto
recolhe-se ao livro,
entre mil palavras
inertes à espera.

 

 

Carlos Drummond de Andrade

In José (1942)

Poesia Completa, Ed. Nova Aguilar, 2002

 

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

A flor e a náusea

 

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

 

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

 

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

 

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

 

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

 

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

 

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

 

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

 

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em 
pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

 


Carlos Drummond de Andrade

A rosa do povo, 1945

In Poesia Completa, Nova Aguilar, 2002

 

 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

na pálida tarde de sábado

 

na pálida tarde de sábado

três homens sentados na calçada

 

são homens pobres e bêbedos

a julgar pelos andrajos

pela garrafa de cerveja quente

que a cada um fornece goles cáusticos

 

são felizes

com suas feições sérias

compenetradas

enquanto trocam ideias de duvidosa gravidade

 

não há ninguém na rua

além dos três homens na calçada

e sua garrafa

de quando em quando passa um carro 

um cão peregrino

uma lufada de ar 

todos ignoram aquela assembleia inusitada

 

de que falam não importa

falam de nada

basta que tenham consigo

a mais antiga das humanidades

- a comunhão

 

                        Paulo Sergio Viana

 

 

Visite o site:


https://blogdopaulosergioviana.blogspot.com/2021/06/na-palida-tarde-de-sabado.html


quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Noite

 

Noite de folha em folha murmurada,

Branca de mil silêncios, negra de astros,

Com desertos de sombra e luar, dança

Imperceptível em gestos quietos.

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

In Obra poética – vol. 1

Ed. Caminho, 4ª edição, 1998

 

sábado, 31 de julho de 2021

Pirata

 

Sou o único homem a bordo do meu barco.

Os outros são monstros que não falam,

Tigres e ursos que amarrei aos remos,

E o meu desprezo reina sobre o mar.

 

Gosto de uivar no vento com os mastros

E de me abrir na brisa com as velas,

E há momentos que são quase esquecimento

Numa doçura imensa de regresso.

 

A minha pátria é onde o vento passa,

A minha amada é onde os roseirais dão flor,

O meu desejo é o rastro que ficou das aves,

E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

In Obra poética – vol. 1

Ed. Caminho, 4ª edição, 1998

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

 

 

“A coisa mais antiga de que me lembro é de um quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objetividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeu de Sousa Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.

Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real.”

 

                        

            Sophia de Mello Breyner Andresen

            In Obra poética – 3 volumes

 Ed. Caminho, 4ª edição, 1998

 

O texto acima está na introdução da referida edição de Sophia de Mello. A frase “a obra de arte faz parte do real”é para ser guardada com carinho.

 

 

“Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto 1919, Lisboa 2004) foi uma das mais importantes poetisas portuguesas do século XX. Foi a primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, em 1999. O seu corpo está no Panteão Nacional desde 2014 e tem uma biblioteca com o seu nome em Loulé.”  

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner_Andresen

 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Verde que te quero verde

 


Saí fêmea



Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.

 

            Federico García Lorca



Foto: AVianna, abr 2021 

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Na estrada



 
Estrada

 

Esta estrada onde moro, entre duas voltas 

                                               [do caminho,

Interessa mais que uma avenida urbana.

Nas cidades todas as pessoas se parecem.

Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda 

                                               [a gente.

Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a 

                                               [sua alma.

Cada criatura é única.

Até os cães.

Estes cães da roça parecem homem 

                                                [de negócios:

Andam sempre preocupados.

E quanta gente vem e vai!

E tudo tem aquele caráter impressivo que 

                                                [faz meditar:

Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por 

                                   [um bodezinho manhoso.

Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, 

                                   [pela voz dos símbolos,

Que a vida passa! que a vida passa!

E que a mocidade vai acabar.

 

                                              Manuel Bandeira

                                  Petrópolis, 1921 (*)

 

 

Comentários

 

Aos 35 anos, Manuel Bandeira se encontra perdido na vida – “entre duas voltas do caminho” –, em plena estrada, em trânsito portanto. Ainda não encontrou seu lugar: na cidade, se dissolve na multidão, onde todas as pessoas são iguais; na roça, aí sim, pode preservar a própria identidade.

            Desconheço que algum dia Bandeira tenha morado na roça, de modo que a comparação que estabelece no poema entre pessoas da cidade e da roça deve ter outro significado: talvez, estando entre muita gente (na cidade), o poeta se sentisse excluído; ao sentir-se bem e só (na roça), podia ser quem realmente era. A doença de que foi portador, e que carregou por toda a vida, por si só, trazia a marca indelével da exclusão social.

            A diferença se estabelece também entre os cães, em imagem originalíssima: na roça, “andam sempre preocupados” como “homens de negócio”, cientes da própria responsabilidade canina perante a vida. Na roça tudo faz meditar, há solenidade em todas as coisas, seja em um “enterro a pé”, na singela “carrocinha de leite”, até nos cães. É possível que o poeta esteja falando das reminiscências da infância, vivida no Recife, onde nasceu e morou até os quatro anos de idade. 

            O leitor não se iluda, tudo são símbolos no poema, alerta Bandeira. A água do rio corre, corre. A vida passa, passa. A simples repetição de uma palavra imprime movimento de continuidade à frase no fluir do poema e da vida.

            O último verso revela a essência do poeta. Desde seu primeiro poema – Desencanto – escrito em Teresópolis (1912), ele “faz versos como quem morre”. O diagnóstico de tuberculose, ele o recebeu muito cedo como sentença definitiva de morte. Agora, com Estrada, aos 35 anos, ele permanece com a certeza de que a mocidade – ou a própria vida – vai terminar a qualquer momento.

            Ainda assim, o lirismo está mais presente do que nunca na poesia de Manuel Bandeira.

            (Bandeira faleceu no Rio de Janeiro no dia 13 de outubro de 1968, aos 82 anos.)

 

 

 (*) In: Manuel Bandeira – Poesia completa e prosa, Ed. Nova Aguilar, 1990.