terça-feira, 22 de janeiro de 2019

A solidão de Drauzio Varella


Drauzio Varella, em artigo intitulado Solidão Universal, para a Folha de S. Paulo deste domingo último (20.jan.2019), descreve com precisão, grande capacidade de síntese e estilo literário inconfundível, a sucessão de eventos (improváveis) que nos trouxeram até os dias de hoje. 
O tema é fundamental e atualíssimo, na tentativa de fazer frente ao fundamentalismo religioso institucionalizado, que pretende retroceder ao tempo do criacionismo. O antídoto perfeito chama-se Evolução das Espécies, realidade expressa pelas incontáveis pesquisas e descobertas realizadas até hoje.
Eis um resumo do que escreve Varella.

1 . “Estamos sós no Universo. ... Os hominídeos que nasceram nas savanas da África, há 6 milhões de anos, foram frutos de adaptações a mudanças ambientais e eventos aleatórios que jamais se repetiriam em outro corpo celeste na ordem cronológica em que ocorreram aqui.”

2 . Origem da vida na Terra há mais de 3 bilhões de anos.

3 . “As primeiras criaturas semelhantes aos mamíferos não esperaram a extinção dos dinossauros para nascer (como se imaginava), surgiram há cerca de 210 milhões de anos, época em que os cinco continentes ainda estavam unidos, formando a Pangeia.”

4 . “Esses mamíferos primordiais já apresentavam características que reconhecemos familiares: dentes de leite na infância, saliências e sulcos nos molares, pelos no corpo, musculatura mastigatória robusta e cérebros grandes. Eram insignificantes comedores de insetos, pequenos como os ratos, que mantinham hábitos noturnos, cuidado providencial para escapar dos crocodilos e dinossauros que não paravam de aumentar de tamanho na vizinhança.”

5 . “Há 200 milhões de anos, um cataclismo monumental fraturou a Pangeia em diversas áreas. No final, os cinco continentes estavam separados. A atividade vulcânica causou nova extinção em massa, oportunidade aproveitada pelos animais que souberam ocupar os espaços abandonados pelos que se foram; entre eles, os dinossauros e os mamíferos.”

6 . “Cerca de 145 milhões de anos atrás, uma variação anatômica foi decisiva para a sobrevivência dos mamíferos: o encaixe dos dentes entre as arcadas superior e inferior, inovação que ampliou a possibilidade de alimentação mais variada.”

7 . “Ao redor de 100 a 120 milhões de anos, outra surpresa: apareceram as angiospermas, plantas que dão flores e frutos acessíveis a animais com a dentição apta para mastigá-los. Apesar da performance ecológica razoável, esses pequenos mamíferos chegaram perto da extinção por culpa dos dinossauros, brutamontes insaciáveis, acostumados a devorar tudo o que viam pela frente.” 

8 . Queda de asteroide de comprimento entre 10 km e 20 km  no México, há 66 milhões de anos, o que provocou terremotos, tsunamis com ondas de mais de cem metros e, como sempre, a erupção dos vulcões. Os dinossauros não resistiram, para sorte dos mamíferos que se espalharam e se diversificaram.
“No estado americano do Novo México foi desenterrado o esqueleto de um mamífero que viveu há 63 milhões de anos. É provável que se trate do primata mais velho já descrito, ancestral longínquo dos que desceram das árvores nas savanas da África, há 6 milhões de anos, e começaram a andar em pé com a coluna ereta.”

E Varella conclui: “Vulcões em erupção, placas tectônicas que se chocam nas profundezas, continentes que se separam, árvores que dão frutos, um asteroide que provoca terremotos, tsunamis, incêndios e poluição ambiental astronômica. Faltasse um desses fenômenos, não haveria ninguém para contar essa história ou compor sinfonias.
São tantas e tão complexas as variáveis para explicar nossa existência que fica mais fácil atribui-la a um ser poderoso que tudo criou num passe de mágica.”
            Posso supor que haja uma certa intenção na escolha do tema pelo brilhante médico, escritor e articulista, qual seja, enaltecer os conhecimentos até aqui estabelecidos pela Ciência, na luta contra o obscurantismo. Por isso este blog reproduz as ideias por ele expressas.



Diário do Poeta





1954                                                                             Fevereiro 11

“Regressei ontem pela manhã de Itabira, aonde fora domingo passado, 7, para assistir à exumação dos ossos de Mamãe e à sua inumação junto aos ossos de Papai, em Belo Horizonte. 
... 
Sob o sol intenso, e na presença dos três filhos – Altivo, José e eu –, da nora Ita, e de alguns netos – Virgílio, Heraldo, Ofélia –, pouco a pouco a terra foi sendo removida a golpes de escavadeira, enxada, picareta e pá, com cuidado e atenção necessária para que não se extraviassem ou estragassem quaisquer despojos humanos. Alguns fragmentos de caixão foram aparecendo, e depois o contorno dele e sua tampa, não completamente, mas envolto em terra. A parte mais clara era a da madeira, enquanto outra, roxa, denunciava o forro externo de pano. O primeiro osso a aparecer foi um maxilar, que nos pareceu não pertencer ao corpo de Mamãe, pelo fato de estar fora do caixão, mas pouco depois Ofélia conseguiu articulá-lo com a caixa craniana, que estava lá dentro, e que surgiu pesada de terra, nela se distinguindo apenas as cavidades das órbitas e o círculo da garganta. Com um pedaço de madeira Altivo e depois eu o esvaziamos do conteúdo terroso. Esses e os demais ossos que iam sendo retirados eram depositados sobre uma toalha que pertencera a Mamãe e que Ita trouxera. A empregada de Ita, Carola, apareceu com água e cachaça, esta última destinada aos coveiros.
... 
Impressão: o que estava ali, roído de vermes e sujo de terra, pouco tinha a ver com minha Mãe, separado já de seu espírito, que desaparecera. Cumpríamos um dever filial e piedoso, mas não havia motivo para sofrimento; tudo estava acabado e perfeito. E se o ato assumia alguma significação, antes de alegria, pela união final dos dois corpos, ou dos restos deles, a esposa indo encontrar-se com o esposo depois da involuntária separação. Era quase festivo e triunfante esse encontro dos ossos, vencendo o tempo e a morte.”

            O texto acima, não se trata de ficção, não faz parte de nenhum conto ou crônica; ao contrário, é a descrição minuciosa de fatos reais, registrados por ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade!
            O fragmento pertence ao volume Uma forma de saudade – Páginas de diário, organização de Pedro Augusto Graña Drummond (Companhia das Letras, 2017). Acompanham o texto imagens raras, fotografias dos antepassados, fac-símiles e poemas de Drummond. Capa e contracapa repletas de fotografias  (parcialmente ocultas pela sobrecapa, na foto acima), cercadas de discretas linhas feitas por caneta esferográfica azul, a data de cada uma escrita à mão, com a mesma caneta. Lindíssimas, autoria de Raul Loureiro.
            Não posso negar minha emoção, eu que nutro profunda admiração pelo poeta, ao ler palavras de tamanha intimidade, registradas em um diário e nunca publicadas em vida. É preciso lê-las com muito respeito.