Ao meu amigo Aldo.
No ano de 1949 encontrava-me em completo estado
de analfabetismo e, portanto, mesmo que me houvesse deparado com o jornal, não
haveria meio de saboreá-lo. Estou a me referir ao Correio da Manhã, publicado
em 2 de outubro de 1949, domingo, vendido nas bancas por 50 centavos de
cruzeiro, e que estampava na primeira página dois feitos extraordinários, para
a época, e ainda muito mais, para os dias de hoje.
Ao lado de várias notícias internacionais sobre
a Iugoslávia, União Soviética (!), África, havia, à direita, uma coluna
ocupando quase todo o comprimento da página, contendo um poema. Mesmo em se
tratando de uma edição de domingo, o fato não deixava de ser insólito.
Havia, no entanto, um outro elemento, que
talvez explicasse parcialmente o primeiro; o poema era, nada mais nada menos,
que A máquina do mundo, do itabirano Carlos Drummond de Andrade. Para muitos,
hoje, é a mais importante peça do autor, e talvez a melhor de toda a poesia brasileira.
Sua publicação em livro viria a ocorrer apenas em 1951, pela editora José
Olympio, com o volume intitulado Claro Enigma.
Um poema na
primeira página de um grande jornal parece algo impensável nos dias de hoje. Poesia
aparece hoje, de forma esporádica, em cadernos especiais de fim de semana, ditos
de Cultura, timidamente. Há mesmo quem interrogue aberta e publicamente se
ainda há lugar para a poesia hoje.
E se o poema for A
máquina do mundo? O que se passou na cachola do editor-chefe do Correio da
Manhã ao deparar-se com a obra de Drummond? Era ele um apreciador da poesia? Ou
simplesmente faltou matéria para completar a primeira página? Outras hipóteses
podem ser levantadas, como a da influência política na decisão de publicar o
poema. É bom lembrar que o Carlos de 49 não era o Carlos de hoje.
Minha ideia, poética ou não, vale dizer ingênua
ou não, é a de que alguém impactou-se com a grandeza do poema e resolveu fazer
brilhar aquele domingo de outubro.
À primeira leitura, que fiz d`A Máquina há mais
de 40 anos, ela pareceu-me hermética, soturna, fria, porque eu não fazia ideia
do que se tratava. Não conhecia a Máquina do Mundo desde Ptolomeu, ou até antes
dele, com os gregos, passando por Copérnico, Pedro Nunes, Camões, Newton, e
tantos outros, até chegar a Haroldo de Campos.
Eu não conhecia os
versos de Luís de Camões, em Os Lusíadas, quando a deusa Tétis revela a Vasco
da Gama a Máquina do Mundo (Canto X, est. 76 a 91):
“Vês
aqui a grande Máquina do Mundo,
etérea e
elemental, que fabricada
assim
foi do Saber, alto e profundo,
que é
sem princípio e meta limitada.
Quem
cerca em derredor este rotundo
Globo e
sua superfície tão limada,
É Deus:
mas o que é Deus ninguém o entende,
Que a
tanto o engenho humano não se estende.”
Também a Drummond a Máquina se revelou:
“A máquina do mundo se entreabriu
Para quem de a
romper já se esquivava
E só de o ter
pensado se carpia.
Abriu-se majestosa
e circunspecta,
Sem emitir um som
que fosse impuro
Nem
um clarão maior que o tolerável”...
Porém, o poeta, moderno e sábio, recusou a oferta:
“Baixei os olhos, incurioso, lasso,
Desdenhando colher a coisa oferta
Que se abria gratuita a meu engenho.”
Drummond devia saber
que a procura de um sentido para a vida, ao final do século XX, havia se deslocado
da filosofia (e da poesia) para a ciência, com a construção do CERN (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire),
e seu LHC (Large Hadron Collider). A
busca agora, em pleno século XXI, é pelo bóson de Higgs. Mas o homem, que
reluta em deixar o romantismo, intitulou-a Partícula de Deus!
É assim que A Máquina do Mundo aparece hoje na
primeira página dos jornais, e jamais sob a forma de um poema.