sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Um livro puxa outro 2



A propósito da crônica Um livro puxa outro, publicada neste blog em 22/11, em que comento texto de Eliana Cardoso (que celebra os 100 anos de A Metamorfose) (http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/2015/11/um-livro-puxa-outro.html#comment-form), tive o prazer de receber comentário de assíduo leitor deste Louco, meu amigo Roberto, que se apresenta com o nome de seu blog, extratodomiolo.com, um blog que merece ser visitado!
            Eliana havia acrescentado em sua crônica algumas considerações de Vladimir Nabokov (1899-1977), que comparava a obra de Kafka ao romance O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, e ao conto O capote, de Nikolai Gógol.
            Despretensiosamente, e é isso que justifica o título desta crônica e da anterior, apresentei minha associação de ideias após a leitura de O capote, excelente conto de Gógol. Afirmei que me apareceu de súbito, e penso que o verbo aparecer cai bem nesta circunstância, O Fantasma shakespeariano que abre o drama de Hamlet.
            O mote é apenas esse: um livro puxa outro.
            Eis que surge o comentário do Roberto, jovem cultíssimo, brilhante, sobre meu texto, e que agora transcrevo:

“A distinta literata esqueceu de uma obra indubitavelmente kafkiana que é "Bartleby, o Escrevente", escrita nos idos de 1853 por Herman Melville. Na minha modesta opinião, esse conto supera tanto a obra de Gogol quanto a de Stevenson. Vale lembrar que o falastrão Vladimir Nabokov, crítico no qual a literata se apoia, considerava Dostoiévski um escritor medíocre.”

            Havia lido a novela (ou conto) de Melville há 10 anos, de modo que fui induzido a relê-la, depois da provocação formulada pelo Roberto. E sou obrigado, de muito bom grado, a concordar com ele! A peça é excelente!
            Na edição que tenho em mãos, o título é Bartleby, o Escrivão - uma história de Wall Street (Cosac Naify, 2005, tradução de Irene Hirsch), e não “Escrevente”, como assinalou Roberto. Encontrei também a forma “Escriturário”. Deve tratar-se de um simples problema de tradução, o que não tem importância. No original, The Scrivener.
            A edição da Cosac é no mínimo curiosa. O livro vem envolto em papel celofane, lacrado portanto, com a capa e contracapa costuradas, isso mesmo, costuradas!, que o leitor deve descosturar com a ajuda de uma tesourinha, o que é bem trabalhoso. Ao abrir o livro, percebe que as folhas de texto estão unidas, e ele precisa separá-las com um cortador de papel que acompanha o livro. Só assim ele chega ao enigma proposto por Melville.
            Parece que a história de Herman Melville (1819-1891) surgiu pela primeira vez, anonimamente, na revista americana Putnam's Magazine, dividida em duas partes. A primeira parte foi publicada em novembro de 1853; a publicação foi concluída no mesmo ano, em dezembro; e foi relançada no livro The Piazza Tales, em 1856.
Relembro ao leitor que Kafka nasceu em 1883, portanto 30 anos após Bartleby!
            A edição da Cosac a que me referi traz ótimo posfácio de Modesto Carone, nosso especialista na tradução de Kafka para o português. Carone faz referência à tradução de Melville efetuada por ninguém menos que Jorge Luis Borges, em 1944. Borges aproximou Bartleby de Moby Dick, a obra mais conhecida de Melville.
            Já D. H. Lawrence, segundo Carone, ao referir-se a Bartleby, afirma que o livro “parece prefigurar Kafka”.
Retornando a Borges, Carone acrescenta:

“Voltando ao cotejo de Bartleby com a ficção kafkiana, proposto por Borges, a conclusão é que a obra de Kafka projeta sobre Bartleby uma curiosa luz ulterior. Bartleby já define um gênero que por volta de 1919 seria reinventado e aprofundado por Franz Kafka: o das fantasias da conduta e do sentimento.”

            O conceito de Complexo de Édipo formulado por Sigmund Freud também projeta “curiosa luz ulterior” sobre o Édipo Tirano, de Sófocles, escrito há 427 anos a.C.!
            E Modesto Carone interroga, de forma definitiva, e ele mesmo responde, com formidável poder de síntese:

“Mas do que realmente trata a narrativa curta de Melville?  Aparentemente, de quase nada.”

            Esta resposta é absolutamente kafkiana, porque ao mesmo tempo que trata de nada, Bartleby trata de tudo, da vida, do sentimento dos homens.
            Roberto tem toda a razão: Eliana Cardoso esqueceu-se de Herman Melville! Para Roberto, Kafka puxou Melville.


Em tempo: por desconhecer a fonte em que se baseia o nosso Roberto, não posso acrescentar nada ao que disse sobre Nabokov e Dostoiévski. Se é verdade, pobre Nabokov, pisou na bola.