segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Expressões inadequadas que pegam


                 Há certas expressões que surgem na mídia, sabe-se lá de onde, e que grudam como chiclete. Passam a ser utilizadas por todos os meios de comunicação, incorporadas até ao vocabulário popular, sem que ninguém discuta seus significados e propriedades, alguns deles bastante inadequados. Vou me ater a duas dessas expressões.
            A primeira é a tal “precisão cirúrgica”, largamente usada na invasão do Iraque pelos Estados Unidos. A televisão mostrava, ao vivo, determinados alvos, geralmente construções baixas, casas, depósitos, serem atingidos por misseis teleguiados, disparados por aviões de caça, e pulverizados diante do olhar admirado e atônito do telespectador. E como o alvo fosse atingido com extrema acurácia, surgiu a adjetivação “cirúrgica”.
            Ora, a Cirurgia, embora exija precisão em sua técnica, jamais foi utilizada com a finalidade de destruir. Ao contrário, a precisão é necessária para que se evitem danos colaterais, ou seja, que estruturas nobres ou tecidos sadios sejam lesados durante a operação cirúrgica. Os militares podem alegar que também suas operações visam evitar danos colaterais, porém o dano central ainda mais eficaz constitui o objetivo do ataque.
            Tendo praticado a Cirurgia por longos anos, repudio a expressão “precisão cirúrgica”, ciente de que este protesto cai no mais absoluto vazio. A expressão já pegou.
            O segundo caso, atualíssimo e também ligado à guerra, diz respeito à expressão “trégua humanitária”.
Humanitária o caralho!  
(O meu eventual leitor há de me perdoar este ato destemperado. Justifica-se pela indignação de que este blogueiro está tomado no momento, diante do massacre que vem sendo perpetrado em Gaza pelas tropas israelenses.)
            Trégua sim, humanitária não. Humanitarismo significa praticar ações por amor ao semelhante, e até mesmo aos animais de outras espécies, sem esperar nada em troca. O que não há nas guerras é exatamente amor ao semelhante. Há ódio, muito ódio.
            Este tipo de trégua dita humanitária tem outros interesses. Um deles é o de reagrupar forças, reavaliar estratégias, reposicionar os instrumentos de destruição, recompor a munição, tratar dos feridos, para atacar em seguida, com maior eficiência e ódio, e às vezes com hora marcada para o reinício do ataque!
            Caso prevalecesse o senso de humanidade, as tréguas seriam definitivas. Ou as guerras nunca teriam iniciado.
            Ainda no segundo exemplo, sei que de nada vale minha indignação. A expressão também já pegou, é manchete de primeira página em todos os jornais nos últimos dias. (Tréguas anunciadas, para logo em seguida serem desrespeitadas.) Porém, como diz o subtítulo deste Louco por cachorros – late, rosna, mas não morde –,  o autor dá-se ao direito de latir e rosnar, como fazem meus cães diante de qualquer ameaça. Indignar-se ainda é preciso.


Kucinski outra vez




            Em outra ocasião tive oportunidade de escrever neste blog sobre B. Kucinski, jornalista, cientista político e premiado escritor de ficção.
Em 2011 Bernardo Kucinski lança seu primeiro romance com o intrigante e sugestivo título K., assim mesmo, a letra maiúscula seguida de um ponto. A segunda edição sai no ano seguinte pela Expressão Popular, e agora é reeditado pela Cosac Naify. O tema, os meandros da ditadura militar por volta de 1974, é desenvolvido de forma magistral, em particular pelo clima de angustiante terror criado pelo autor. Então, surge a dúvida no leitor, se K. vem de Kucinski ou de Kafka. (Há quem diga que depois de Kafka, tudo vem de Kafka...) Grande sucesso de crítica, não sei se de público.
            Em 2014, novamente pela Cosac Naify, Kucinski lança Você vai voltar para mim e outros contos, sobre o mesmo tema. As histórias curtas, com linguagem clara e simples, devem ser lidas aos poucos, para que não intoxiquem o leitor, tamanho o realismo com que são contadas. Mais uma vez, ficção e realidade se confundem, nessa tentativa de revisão histórica dos 50 anos do golpe de 64.
            Agora, acabado de sair do forno, surge Alice, não mais que de repente (Rocco, 2014), um romance policial!
            Há quem torça o nariz para o gênero; não é o meu caso. Não que me considere um especialista nesse tipo de literatura; minhas leituras resumem-se a Edgar Alan Poe e Luiz Alfredo Garcia-Roza. Tomei gosto pelo gênero por causa deste último, um intelectual respeitadíssimo, autor de obras importantes em Psicologia, Filosofia e Psicanálise, e que depois de maduro publica pelo menos dez títulos tendo como protagonista o já célebre detetive Espinosa. Trata-se de literatura da melhor qualidade, e as histórias se passam no bairro do Peixoto, lugar pequeno, tradicional, encravado em Copacabana.
            Não encontramos no delegado Magno, o agente central no romance de Kucinski, as deliciosas “manias” de Espinosa, porém o personagem está bem caracterizado, a trama é sofisticada, desenrola-se na USP (isso mesmo, no campus da Universidade de São Paulo!), o que dá um toque de realismo ao romance. E o autor não poupa críticas à Academia, ao que ela tem de pior, pois é constituída por homens. Alice é desses livros que a gente pega e só larga quando termina a última página!
Torço para que Kucinski persista no gênero.