sábado, 30 de junho de 2018

Poesia em jornal



“Um texto semanal, um instante para parar tudo e ler um poema. A partir deste momento, o EL PAÍS começa esta corrente semanal em que uma poeta ou um poeta indica o trabalho de outro até o começo da Festa Literária Internacional de Paraty(Flip), que homenageará a poeta Hilda Hilst.”
            O artigo é de André de Oliveira, para El País (25 JUN 2018).
Hilda nasceu em 1930, em Jaú, no interior de São Paulo, e morreu em 2004. Foi considerada difícil durante a vida, autora hermética. “Ela própria enxergava essas críticas como resultado do fato de que ela não fazia o que se esperava de uma mulher, não escrevia sobre o que se devia e nem vivia como se devia. A homenagem do evento de literatura vem para colocar as coisas nos devidos lugares.”
A primeira convidada foi Joselia Aguiar, atual curadora da Flip. Ela escolheu a poeta e tradutora Josely Vianna Baptista, com seu poema Guirá Nãndu– nome da Constelação da Ema, na cultura Tupi-Guarani –, publicado no livro Roça Barroca, que acaba de ser reeditado pela editora Sesi-SP e será lançado em agosto. 

Guirá Nãndu

Para Teodoro (sob a Constelação da Ema, cujas penas são desenhadas por claro-escuros da Via Láctea)

pode que a noite hoje
se furte a amanhecer
a terra desmorone
nos bordos do poente
e outra vez o sol
como antes
não desponte
em busca de outro sol
pode alguém se perder
abandonando o humano
para encontrar seu deus
– o mesmo que ao nascer
deu-lhe um nome secreto
de sua divindade
perfeito e repleto
pode que na viagem
no trajeto disperso
um homem adivinhe
a vereda possível
sem fim, de sol a sol
até que a fome e a febre
o êxtase à flor da pele
a intempérie, a prece
a dança em excesso
transportem o corpo adverso
e o espírito pulse
e respire
e confronte
o mar que o separa
da terra indestrutível
quem sabe o paraíso
que descrevem os antigos
não esteja além do vasto
nevoeiro e sargaço
mas no árduo percurso
vencido passo a passo
sem bússola ou mapa do céu
em pergaminho
talvez além do zênite
que ofusca o caminho
deixando um invisível
roteiro para os olhos
que enfrentam o escuro
entre os dois
crepúsculos

Brilhante iniciativa do El País!




Giannetti vira-lata


*

À primeira vista, o título não atrai o leitor, muito menos a capa do livro. Porém, quem conhece o autor tem certeza de que vai encontrar ótimo texto. Falo do lançamento recente de O elogio do vira-lata e outros ensaios (Companhia da Letras, 2018), de Eduardo Giannetti.
            O primeiro ensaio – que empresta o título ao livro – é magistral! Eis sua conclusão:

“Ao vira-lata repugna o culto da pureza em suas múltiplas manifestações: a raça pura; a lógica pura; a razão pura; a vontade pura (no sentido de um senso de dever categórico desligado de qualquer inclinação ou motivação pessoal de quem age, como no “lenho reto” da ética kantiana). Ao vira-lata repugna a noção de que o índice de valor de uma pessoa se define pela competência para ganhar dinheiro, pela astúcia em galgar postos de poder ou pela intransigente adesão a um credo de qualquer natureza.
O vira-la celebra os valores da amizade, do convívio e da amabilidade sem cálculos; a disponibilidade para desfrutar intensamente o memento; o prazer de sorrir e saudar a todos que com ela ou ele casualmente cruzam nas ruas; a eterna disposição de festejar e brincar, por mais tênue que seja (ou não) o pretexto; o doce sentimento da existência nos climas e ecopsicologias onde o mero existir é um prazer; a experimentação inovadora na arte da vida. Amor sem coleira, trabalho sem patrão. Para o vira-lata, “a alegria é a prova dos nove”.”

            Penso que estes dois parágrafos são suficientes para que o leitor possa apreciar o estilo e a elegância do texto de Giannetti. Talvez a maior de suas virtudes seja a de escrever com absoluta clareza, certamente porque ele sabe pensar claro.
            O livro é composto por 25 textos escritos entre 1989 e 2018, com temas os mais variados: O paradoxo do brasileiro, Por que ler Aristóteles hoje?, Um prefácio para Dom Casmurro, Leite derramado, A genialidade de Mozart, J. S. Bach: Partita II para violino solo, A riqueza e a pobreza das nações, entre outros.
            Leitura obrigatória!