segunda-feira, 23 de julho de 2018

Tristeza, depressão e música

Da série
Mais 47 cenas de um romance familiar


– Gosta de música?
– Adoro!
– E por que não ouve?
– Tornou-se um tormento.
– Um concerto para piano de Beethoven...
– Martelação infernal.
– A tranquilidade de Couperin?
– Barulho barulho barulho.
– Então os Noturnos de Chopin.
– Só a vontade de chorar.
            
            No início da adolescência, foi nossa mãe quem nos apresentou a música erudita, a mim e meu irmão. Colocava o vinil na vitrola (era assim que se chamava o equipamento de som naquela época) e enquanto ouvia, comentava sobre a vida do compositor, sobre a escola musical a que pertencia, destacava os trechos de que mais gostava, fazia crítica bastante adequada à música.
            Sua fonte de informação era a Rádio MEC, da qual era assídua ouvinte. Possuía ótima memória, e o que ouvia, tratava de reproduzir aos filhos, nem tão disciplinados como a mãe.
            Gostava de Bach, Vivaldi, Mozart, mas por Beethoven o que sentia era mesmo uma espécie de veneração quase religiosa. Adorava Chopin, Brahms, Ravel (foi com ela que aprendi a ouvir para o resto da vida as Valsas Nobres e Sentimentais), Debussy (Clair de lune a preferida!). Apreciava Petrushka e a Sagração da Primavera, de Stravinsky, e parava por aí, nada de Shostakovich e outros russos.
– Aprecio muito Villa-Lobos, mas não suporto os quartetos para cordas dele, aliás, nem dos quartetos de Beethoven eu gosto, afirmava ela categórica (como sempre). Ela mesma impunha-se a limitação, manifestação de rigidez psíquica.
Seu gosto para música era clássico, e pronto. Às vezes tecia comentários como se fossem dela mesma e que me despertavam a dúvida, Onde será que ouviu isso? Dizia que Chopin era ótimo compositor para piano, mas que os dois Concertos para Piano e Orquestra dele pecavam pela pobre orquestração. Seria dela mesma observação tão sutil?
Isso antes da doença.
Depois da depressão, na tentativa de animá-la, eu perguntava Por que a senhora não ouve mais música, gosta tanto!
A resposta era sempre a mesma:
– Não consigo, não consigo, um tormento. 
Assim é que, se quisermos saber se uma pessoa está apenas triste, ou está doente, com depressão, basta perguntar:
– Tem ouvido música?
            

In-felicidade


O prolífico Drauzio Varella, por quem nutro grande admiração, quase sempre ocupado com temas ligados à saúde e à pesquisa científica, nos surpreende ao escrever sobre a Felicidade, em crônica dominical para a Folha de S. Paulo (22 jul 2018). E escreve em grande estilo:

“Felicidade plena, mesmo, só no conforto protegido do ventre materno. Lá, a sobrevivência está à mercê exclusiva da fisiologia, não há encruzilhadas, armadilhas nem espaço para dúvidas que nos levem à angústia das escolhas.
A plenitude chega ao fim em nove meses. Os religiosos que me perdoem, mas o paraíso com serpentes e frutos proibidos do qual Adão e Eva foram expulsos por graça do pecado original é um mundo inóspito se comparado aos ditames da vida intrauterina.
Para destruir a convivência idílica com o organismo materno, são necessárias contrações uterinas tão brutais que chegamos à luz aos berros, prenúncio do que está por vir.”

            É possível que haja felicidade na vida pré-natal. Entretanto, serão tão primitivos os sentimentos vividos pelo feto que dificilmente poderíamos compará-los àquilo que denominamos felicidade diante do mundo real. A própria consciência (parece que está mesmo presente intra-útero) há de ser primitiva, ainda em formação, em paralelo ao desenvolvimento do sistema nervoso central. Assim, penso que a “felicidade plena” no ventre materno de que fala Varella é muito mais uma romântica figura de linguagem, bem longe da realidade. Se ela existe mesmo, não temos consciência dela depois que nascemos. 
            Porém, a “destruição da convivência idílica” de que trata o cronista, no momento do parto – súbita brusca violenta separação – esta existe mesmo, trauma que fica para sempre, momento de intensa in-felicidade. Se não é a única responsável por nossa eterna busca, esta brutal separação, como diz Varella, contribui em muito para a chamada “angústia existencial” de que tanto se fala. Prefiro chamá-la apenas de FALTA, uma falta que permanece por toda a vida, sem que saibamos (ou tenhamos plena consciência) do que sentimos falta! 
            Sentir plenamente a falta – em vez de negá-la –, aprender a sofrer a dor da falta, ter consciência dela, pode nos ajudar a suportá-la. (O processo psicanalítico nos ajuda a tornar consciente aquilo que é inconsciente.)
            Nada disso nos impede de usufruir de momentos de felicidade, como o nascimento de um filho, de um neto, uma viagem interessante, a audição da Nona de Beethoven, visitar um belo museu, vencer a Copa do Mundo, vibrar com um gol de nosso time preferido. (Inútil classificar os momentos de felicidade em ordem de grandeza ou intensidade: o que conta é o que sentimos naquele determinado momento.)
            A vida é mesmo feita de perdas, a começar pelo nascimento. Reconhecer os momentos de felicidade e vivenciá-los da melhor forma possível, eis a arte de sobreviver.
            Até que nada disso faça mais sentido, quando a vida perde a graça e perdemos a vontade de viver. Alongar, com o passar dos anos, por um bom tempo, o aparecimento deste estado de espírito, então talvez seja possível continuar pensando em felicidade.