quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Segue o Diário da Demenciação

 

14 de novembro

 

O gosto pela escrita permanece em mim, mesmo diante da incompetência de sempre, agora agravada, e mesmo percebendo que ninguém mais lê o que escrevo. Avento a hipótese de que isso possa ser uma manifestação do processo de demenciação, isso de escrever para mim mesmo, uma espécie de falar sozinho, e resolvo voltar ao meu Diário da Demenciação para desenvolver a teoria.

            Falar sozinho é coisa de maluco? Parece que não, tem gente bem normal falando sozinha pela vida afora, dizem até que se trata da forma de algumas pessoas organizarem os próprios pensamentos. Eu mesmo, antes da velhice e do tal processo, nunca falei sozinho; pensar em silêncio me bastava. Como não cultivava aquele hábito, hoje escrevo para o silêncio. Talvez seja uma explicação.

Mas pode ser coisa de maluco também, tanto o solilóquio quanto o silêncio mais fechado. Aconteceu na Itália: a mulher era conhecida na aldeia onde morava por ser uma faladeira dos infernos, uma matraca, falava sem parar – e portanto sem pensar –, para desespero de quem estava por perto. Para de falar um pouco, Madalena, que tormenta!, clamavam os vizinhos. Pois não é que certo dia Madalena parou de falar! Assim, de repente, puff!, silêncio absoluto, veio gente de todo lugar para ouvir o silêncio de Madalena, que nunca mais falou. Nunca mais até o dia de sua morte. Consumida por um cancro no estômago, de uma magreza de fazer pena, Madalena fez um pedido, a voz sumida mas ainda clara:

– Una pasta, per favore!

Comeu bem pouco, e morreu.

Aconteceu dentro de um ônibus, enquanto um grupo de estudantes de Medicina do primeiro ano fazia uma excursão a um balneário, em comemoração ao ingresso na universidade. Em meio à balbúrdia generalizada, um colega permanecia sentado na janelinha, no mais profundo silêncio. A viagem durava já cinco horas quando o moço foi provocado com insistência, Fala alguma coisa, Bernardo!

– Apóstrofe!

E permaneceu calado até o dia em que o grupo retornou ao Rio de Janeiro. Dois dias depois ele trancou a matrícula. (Agora me lembro, já contei essa história aqui no blog; repetir faz parte do processo).

 

 

17 de novembro

 

Um fio de pensamento me desviou do assunto no diário anterior. Comecei falando no significado possível de escrever para mim mesmo, o que chamei de escrever para o silêncio, e me perdi pelas histórias desse mundão de deus.

            Retorno ao tema. Que sentido poderá haver em escrever escrever escrever, sem que esta produção miserável jamais chegue aos olhos de alguém? Se a escrita fosse registrada em cadernos manuscritos – uso o plural porque o número deles passaria de 47 nessa altura dos acontecimentos –, algum dia em remoto futuro eles poderiam ser encontrados numa casa velha, no fundo de um baú qualquer, e a partir daí, ninguém sabe o que poderia acontecer. Mas os textos permanecem no hard de um computador, e a chance de que nunca sejam descobertos aumenta ainda mais. Basta uma pane no computador e puff!, desintegra-se a escrita. Ninguém há de chorar por isso.

            E por quê então continuo escrevendo para mim mesmo? Posso ensaiar algumas respostas; a primeira que me ocorre é que se trata de manifestação do processo de demenciação. (Uma certa obsessão pela grafia das palavras me persegue, desde o primeiro ano do ginásio, quando numa prova de História escrevi Brazil, assim mesmo, com zê, e toda a escola veio abaixo, ou melhor, caiu em cima de minha cabeça, fui ameaçado de reprovação e o escambau. Por isso procuro a palavra demenciação em todos os dicionários de que disponho, físicos e virtuais, não são poucos, e não a encontro. Encontro dementação, mas não gosto dela; prefiro demenciação. Uma hora dessas sugiro a palavra ao Dicionário Informal, que tanto aprecio. Até já colocaram lá a palavra avencário, de minha lavra, para orgulho meu.)

            Outra vez o fio do pensamento escorreu pela grafia das palavras e a ideia central se perdeu.

 

 

19 de novembro

 

Quantos dias serão necessários para que eu consiga desenvolver e concluir uma ideia relativamente simples?

            Vou direto ao ponto. Escrever para mim mesmo seria o pendant, o correspondente de falar sozinho. Em vez de demência, pode ser uma tentativa de preservar a sanidade mental. É isso.

            Mas pode ser demência...

Crime à luz do dia

A foto do dia

Movimentação de dragas para mineração 

no rio Madeira

Bruno Kelly/Reuters

 

 

Centenas de balsas de dragagem operadas por garimpeiros empreendem uma corrida por ouro no rio Madeira, importante afluente do rio Amazonas, navegando por vários quilômetros enquanto as autoridades estaduais e federais discutem quem é responsável por impedir a ação ilegal.

 

https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2021/11/centenas-de-balsas-de-garimpo-avancam-no-rio-madeira-na-amazonia.shtml