terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Minha casa é um lago de água quieta e escura


Minha casa é um lago de água quieta e escura.
No fundo, há camadas de lodo antigo,
depositado ali desde tempos remotos.
Meus pés não alcançam 
o sumidouro poço vertigem.
Há poucos peixes nesse lago obscuro,
que ali pulsam suas guelras viscosas,
sem assomar à superfície,
sem se mostrar, afeitos ao desprovido de luz.
Minha casa é inabitável,
por ela transitam espíritos, 
antigas cenas constrangimentos estranhezas
arrependimentos segredos cansaços
risadas fantasias medos
muitas dúvidas e culpas.
Minha casa é líquida,
fluida inapreensível incolor
fumo no ar de uma tarde cinza.
Minha casa é feita de material reaproveitado.
Casa casulo teia toca ninho.
Aqui me puseram, aqui quedo.
Para todo o sempre.

                                   
Paulo Sergio Viana
                                   
Poema a ser publicado brevemente, 
no livro intitulado Esmo.

O tempo adiado




Vêm aí dia piores


Vêm aí dias piores.
O tempo adiado até nova ordem
surge no horizonte.
Em breve deves amarrar os sapatos
e espantar os cães para os charcos.
Pois as vísceras dos peixes
esfriaram no vento.
A luz da anileira arde pobremente.
Teu olhar pressente  penumbra:
o tempo adiado até nova ordem
desponta no horizonte.

Do outro lado afunda tua amada na areia,
ele sobe-lhe pelo cabelo esvoaçante,
ele corta-lhe a palavra,
ele ordena-lhe silêncio,
ele encontra-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.

Não olha para trás.
Amarra teus sapatos.
Espanta os cães. 
Joga o peixes ao mar.
Anula a anileira!

Vêm aí dias piores.


                                               Ingeborg Bachmann
                                               Escritora austríaca (1926-1973)
               Tradução: Claudia Cavalcanti


Poema publicado no caderno Ilustríssima
Folha de São Paulo (29 dez 2019)

Fará parte de antologia da autora intitulada O tempo adiado e outros poemas, Ed. Todavia, a ser publicado em janeiro de 2020.