Ao meu amigo Sergio Pripas
“As condições são muito difíceis. Elas exigem que a gente não se conforme com elas. Nos campos de concentração, Walter Benjamin criava clubes de leitura, de debates. Ele criou um foco de civilização no meio da barbárie. Acho que somos capazes disso. As condições são muito graves e, por isso, elas exigem muito. É hora de começar a inventar. Nós vamos ter que dar o melhor de nós”.
As palavras acima são da psicanalista Maria Rita Kehl para o site Tutaméia.
A ideia de criar “focos de civilização” para enfrentar a miséria que vivemos em nosso país me parece essencial. Alguns pensam (sonham) que a humanidade pode estar melhorando ao ser açoitada pela peste; não há evidências de que isso esteja ocorrendo, ao contrário, a violência e o egoísmo prosperam, em um frenético salve-se quem puder. Os espertinhos furam fila de vacinação.
Kehl cita Walter Benjamin, o que é muito apropriado. Penso imediatamente em Olivier Messiaen. Quando a França entrou na Segunda Guerra Mundial, Messiaen foi convocado a servir, e logo capturado pelos alemães; levado ao campo de concentração Stalag VIII A de Görlitz, lá sobreviveu por um ano. Nas condições mais adversas, Messiaen conheceu três outros músicos no campo, um violoncelista, um violinista e um clarinetista, todos manejando precários instrumentos. Com o acréscimo do piano tocado pelo próprio Messiaen, ele compôs o Quatuor pour la fin du temps. A peça foi tocada no próprio campo, na presença de oficiais nazistas e prisioneiros, no dia 15 de janeiro de 1941, sob pesada neve. Os músicos que participaram da estréia foram Henri Akoka (clarinete), Jean le Boulaire (violino) e Étienne Pasquier (violoncelo). Abaixo, o convite impresso para o concerto, com o carimbo oficial do Campo.
Olivier Messiaen (1908-1992)
Agora aprendo com Kehl traduzir em palavras fenômeno tão complexo ocorrido em um campo de morte, improvável, quase impossível, e por isso mesmo magnífico: “foco de civilização no meio da barbárie”.
Em seguida me veem à mente os atuais concertos da Osesp na Sala São Paulo, os músicos separados por chapas de acrílico, os que podem, incluindo o maestro, usando máscaras, o número reduzido de participantes para evitar aglomeração, oferecendo concertos gratuitos pela Internet, muitas vezes sem a presença de uma plateia. Isso é criar foco de civilização.
Meu amigo Sergio, a quem dedico este texto, participa de um clube de leitura em São Carlos – SP, em atividade ininterrupta há mais de 25 anos. Outro foco de civilização.
Acredito que o idealismo e o desejo de difundir a língua pelos esperantistas, dentre os quais meu irmão Paulo, que desempenha papel de destaque nacional e internacional, estejam criando foco de civilização pelo mundo afora. O Esperanto é falado em todos os continentes.
As chamadas lives oferecidas por instrumentistas e cantores da música popular brasileira são manifestações de resistência contra aqueles que desejam diminuir a importância da arte, e portanto focos de civilização.
Meu amigo Moisés, artista nato da palavra, ao decidir tirar seus textos da gaveta e torná-los públicos no blog (https://moisestitolf.blogspot.com), para alegria da multidão de fãs que ele carrega vida-a-fora, tratando de filosofia, literatura, poesia, e da vida como ela é, cria mesmo sem saber um foco de civilização.
Os exemplos são inumeráveis, uns de maior projeção, outros menos, e atenuam de certa forma o estado de barbárie instituído pelo atual governo e seus fanáticos seguidores. Os focos de civilização não precisam de armas de fogo; utilizam-se da palavra, das artes, do livre pensar, do desejo do conhecimento e da informação.
A civilização haverá de prosperar sempre.