terça-feira, 30 de abril de 2013

O Bem e o Mal


“Um homem de 78 anos atou um cachorro aos trilhos de uma ferrovia no deserto da Califórnia, nos Estados Unidos, mas o maquinista de um trem que passava no local conseguiu acessar os freios de emergência a tempo de impedir que o animal fosse atropelado.” (1)

            Aconteceu na Califórnia, mas podia ter acontecido em qualquer outro lugar do mundo, deste mundo. A cena revela bem a dualidade Amor e Ódio em que vivemos.

            Alguns diriam que se trata do eterno combate entre o Bem e o Mal; para os mais incisivos, entre Deus e o Diabo. E que o homem, com seu livre arbítrio, faz a opção desejada.

Outros podem pensar que a cena retrata apenas a condição humana: o mesmo país que gera um Mozart, gesta um Hitler. E por condição humana entenda-se, antes de mais nada, sua origem animal, através da evolução das espécies.

Registramos aqui uma conclusão do premiado neurocientista português António R. Damásio, que trabalha Na Universidade da Califórnia, em seu último livro E o cérebro criou o homem (Companhia das Letras, 2011, p.328):

“Existem dois tipos de controle das ações, o consciente e o não consciente, mas o controle não consciente pode ser parcialmente moldado pelo consciente. A infância e a adolescência humanas duram um tempo incomum porque é muito demorado educar os processos não conscientes do nosso cérebro e criar, nesse espaço cerebral não consciente, uma forma de controle que possa funcionar, com mais ou menos fidelidade, segundo nossas intenções e objetivos conscientes. Podemos descrever essa lenta educação como um processo de transferir parte do controle consciente para um servidor inconsciente, e não como uma desistência do controle consciente em favor de forças inconscientes que com certeza podem causar uma devastação no comportamento humano.”

            Não vamos nos iludir: “o controle não consciente pode ser [apenas] parcialmente moldado pelo consciente”. Freud já sabia disso! Ao final da vida, falava das dificuldades encontradas pela terapia psicanalítica. Ele também já sabia que o processo para transformações é demorado, mas vale a pena tentar, pois se deixamos fluir apenas as forças inconscientes, o resultado pode ser devastador...



im-perfeição



camélia rainha
a perfeição dentre as flores
– falta-lhe o perfume


Foto: A.Vianna, Brasília, 2013.

sábado, 27 de abril de 2013

Velório


...
– você está muito triste, Dalva.
– estou mesmo, doutora.
– mas isso passa...
– ela deixou duas crianças pequenas.
– que pena.
– tanta gente chorando...
...
– e como estava o velório, Dalva?
– uma tristeza, doutora.
– estou falando dos comes e bebes...
– ah!, muito bom!
– pão de  queijo?
– sobrando!
– quê mais?
– caldo de mandioca, linguiça de porco, bolinho de chuva...
– e pra beber?
– muito chá, erva-doce, erva-cidreira, hortelã, camomila...
– não tinha pinga, Dalva?
– escondida, doutora, escondida.
– então estava animado!
– muito animado, uma beleza de velório!
...
– estou achando você mais alegrinha, Dalva.
– é como num velório, doutora, agente vai comendo, bebendo, conversando...
...

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Pedigree



Não se prende vira-lata em canil.

Amadeus


Amadeus é homem educado e de bom gosto. Nascido em rica fazenda no município de Ouro Preto, em berço de ouro, posso dizer, pertence a tradicional família local, antiga proprietária de minas de extração de pedras preciosas e semipreciosas. Desde cedo foi educado para as artes, frequentou as melhores escolas no Brasil e no exterior, mas não faz disso estardalhaço; é homem de poucas palavras, muito menos de arroubos irados e destemperos.
Em consequência de longos e aprofundados estudos filosóficos, Amadeus tornou-se ateu, a despeito (ou apesar) da rígida educação Católica Apostólica Romana que recebeu na infância. Também sobre suas convicções costuma manter absoluta discrição, e sempre que possível evita as querelas religiosas, adepto da máxima proferida por Walter Benjamin, a de que “todo convencimento é infrutífero”.
A expressão sempre que possível do parágrafo anterior tem sua razão de ser, não se trata apenas de modo de dizer ou pura retórica. Amadeus, contra sua própria vontade, com frequência vê-se envolvido em questões filosófico-religiosas que o embaraçam tremendamente. Ensimesmado, contrafeito, ele pensa Eu não mereço isso.
Homem inteligente, interessado nos mistérios do psiquismo humano, leitor de A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, é capaz de compreender a inevitável intromissão alheia em sua vida privada, Às vezes trata-se apenas uma provocação dos amigos mais chegados, ele pensa, e mesmo assim aborrece-se com o falatório.
Chega de suspense, caro leitor: o fato é simples, até singelo: Amadeus coleciona imagens sacras.
A coleção é composta por obras de altíssimo valor histórico e artístico, todas do período Brasil Colônia, incluindo duas peças de Aleijadinho, um dos  orgulhos de Amadeus. Mas que tipo de ateu é você, Amadeus, com a casa assim abarrotada de santos?, provocam os amigos. De qual deles você é mais devoto? Quantas promessas fez para conseguir aquele raríssimo São José? Vai me dizer que não reza à noite, a pedir proteção dos seus santinhos? Confessa, Amadeus, você é um crente...
Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, responde ele com disfarçada irritação.
Até que chega a época do casamento de Clotilde, filha única, o outro grande motivo de orgulho na vida de Amadeus. A expectativa em Minas Gerais, talvez até em todo Brasil, é de que seja o casamento do século! Amadeus, pai amoroso, quer presentear a filha com o que de mais valioso possa dispor. Como não é raro acontecer, embora houvesse recebido todas as facilidades para uma educação refinada, como a do pai, Clotilde nunca se interessou por qualquer manifestação artística, muito menos por arte sacra, Um saco..., para usar seu próprio vocabulário franco e rude, ela que não passa de uma menina mimada. Amadeus, pai dedicado, se entristece com o comportamento da filha, mas não perde a esperança, Algum dia ela há de despertar para o Belo, ele costuma dizer. Afinal, quem herdará sua magnífica coleção de arte sacra?
Às vésperas do casamento, Clotilde e o noivo dirigem-se à casa do pai para receber o presente tão generosamente ofertado, Escolham a imagem que vocês mais gostarem! Diante do enorme número de peças, sabe-se lá por obra de que artimanha, Clotilde não se demora na garimpagem, vai direto a uma determinada peça, Quero esta Sant’ Ana com o Menino Jesus.
O sangue gela nas veias de Amadeus! (O leitor perdoe o lugar-comum.) Apesar do amor que nutre pela filha, é como se um braço lhe tivesse sido arrancado: trata-se de sua peça preferida, e a mais valiosa de toda a coleção! Apenas o noivo nota o súbito empalidecimento do futuro sogro.
Palavra empenhada, palavra cumprida, É sua, minha filha, sentencia Amadeus. Afinal, trata-se do casamento da filha única. Abraçam-se, beijam-se os três, em confraternização emocionada, por quem dá e por quem recebe.
Uma companhia inglesa especializada em transporte de obras de arte foi contratada para o traslado de Sant’ Ana e seu Menino, a mesma que trouxe para São Paulo os quadros de Caravaggio recém expostos no MASP. Amadeus toma os cuidados de um verdadeiro profissional e a santa chega intacta ao seu destino, o novo apartamento da filha, igualmente presente do pai.
Retirada da caixa de pinho-de-riga onde estivera embalada, Sant’ Ana ganha o definitivo repouso num belíssimo oratório do século XVII, desnecessário referir a procedência do móvel barroco... Por precaução, pois o apartamento de mais de 800 metros quadrados ainda está bastante desarrumado com a mudança que não termina mais, Clotilde acha por bem manter o Menino Jesus na embalagem, envolto em papel bolha importado, Quando tudo estiver em seus devidos lugares Ele vai para o colo da avó, ponderou ela, com a aprovação do noivo.
Pronta a decoração do apartamento, a festa de inauguração terá como ponto culminante a consagração da Santa pelo arcebispo da arquidiocese, seguida da entronização do Menino Jesus. Dois dias antes do evento, Clotilde, ela mesma faz questão de ir buscar o Menino para transportá-lo, enfim, ao santíssimo colo.
Então, o impensável: Cadê o Santinho, Pai do céu? Cadê o santinho? Vasculhado o apartamento de alto a baixo, revirados todos os armários, revistados baús, malas, caixas, cômodas, gavetas, nada do santinho. Nada! Onde se meteu esse Menino? E agora, o que meu pai vai dizer?, Clotilde resmunga chorosa, ciente acima de tudo da inevitável desvalorização material da obra, agora faltante o divino complemento.
Após três dias de buscas minuciosíssimas, chega-se à definitiva e trágica conclusão, O Menino foi mesmo pro lixo!
Clotilde e o noivo pensam em adquirir um substituto, percorrem todos os antiquários da região, Dinheiro não é problema, alardeia o rapaz com arrogância, mas os meninos que encontram são feinhos demais, indignos do sacrossanto colo de Sant’ Ana, destoam diante da formosura da santa, agora com os bracinhos esticados e vazios, De cortar o coração, De cortar o coração, repete Clotilde.
Certo comerciante de obras de arte chegou mesmo a fazer velada referência ao fato de que havia um lindo Menino Jesus em uma determinada igreja de Mariana..., mas o assunto não prosperou.
Não surge outra opção senão comunicar o sumiço ao pai.
Amadeus permanece calado, em profundíssimo sepulcral silêncio. Os amigos mais íntimos, ao tomarem conhecimento do acontecido, vaticinam É castigo, é castigo, Um ateu não pode colecionar santos, Heresia das mais graves, Visto está, foi o próprio Pai que se encarregou de livrar Seu Filho do profano ambiente, é o que bradam, cada qual com sua metafísica teoria, fingindo consternação, os invejosos amigos de Amadeus.
Mas quando o próprio arcebispo toma Amadeus pelo braço, arrasta-o para um canto da sala, puxa conversa, insinua-se sutilmente com a voz melíflua de quem acredita na força do Diabo, Quem sabe não se trata de um aviso, meu filho, Amadeus não aguenta, perde a paciência, destempera-se, eleva o tom de voz, sem que se possa afirmar que chega a gritar, e diz:
– Padre, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Até hoje, embora ateu convicto, Amadeus espera por um milagre, o retorno do Menino Jesus aos sagrados braços de Sant’ Ana.


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Procura-se


O carteiro, atropelado em sua moto, teve a perna amputada. O agressor fugiu com a perna presa ao para-choque. A perna nunca foi encontrada.

Baseado em fatos reais...

terça-feira, 23 de abril de 2013

a tarde


no jardim do Outono
não há flores, nem por isso
ele é menos belo

Foto: A.Vianna, Outono de 2013, Brasília.