Querido André,
nossa correspondência anda rareando, não por falta de
carinho, que sobra o carinho que sinto por você, mas é essa correria boba de
todo dia que me ocupa com inutilidades e grosserias que não levam a lugar
algum, apenas tiram o sossego da gente, sossego que preciso para sentar, tomar
da caneta, ajeitar o bloco de papel de cartas, limpar a cabeça, e começar a
escrever a você.
Pronto, comecei!
E começo por assunto de
sua preferência, a Literatura. (Apendi com você a escrever Literatura, Educação,
Evolução das Espécies etc, sempre com maiúsculas: sinal de respeito!) Estou
lendo romance do Amós Oz que tem o título mais bonito do mundo: Rimas da vida e
da morte. Quando vi o livro na prateleira pensei que tratava de poesia, mas é
prosa, e da boa. Já faço parte do fã clube do Oz, torcendo para que ele ganhe o
Nobel, em vez de algum tocador de viola besta por aí.
Mas o que eu queria
comentar, cá entre nós, é que você publicou um microconto no Louco por
cachorros falando da bunda de uma garçonete. Será que você também está lendo as
Rimas? Enquanto aguarda a hora da conferência, o escritor entra num botequim,
pede um café e repara na bunda da garçonete. Coincidência? Pode ser...
Mas é assim mesmo, tudo
que a gente lê fica girando na cabeça da gente, e sai de diversas formas, até
na forma de um ótimo microconto.
Pena que eu não tenho
com quem conversar sobre essas coisas, André. No salão onde trabalho ninguém lê
nada, nunca ouviram falar de Amós Oz. Gostam mesmo é de Caras e fofocas.
Pois fiquei conhecendo
um médico daqui da cidade – depois conto como isso aconteceu – que diz que no
meio onde vive é a mesma coisa, ninguém lê nadinha de nada. Será verdade,
André? Doutores! Se uma pobre cabeleireira como eu adora ler, por que gente educada
como os médicos não lê? (Estou concordando o verbo ler com gente educada; está
certo isso?) Sempre foi assim?
Ou a coisa está piorando? Ontem, no jornal, li a crônica de um colunista famoso, que às tantas diz que o Saramago é "muito chato". Pode isso? Opinião dele, claro que pode, mas fico pensando se ele é que não conseguiu penetrar na arte do português. Então não precisava confessar.
Vamos ao que interessa. Doutor T. apareceu no
salão para cortar cabelo e outra não poderia atendê-lo senão eu, a única que
corta cabelo de homem – e gosta! Ainda antes de se sentar, ele bateu o olho no
livro do Oz sobre o balcão e, surpreso, perguntou se eu gostava de ler. Pronto:
a conversa enveredou, porque ele adora ler e escrever, até já publicou um livro
de contos, e quando soube que eu também escrevo, T. enlouqueceu!
(Por falar em contos, estou escrevendo um conto que
espero seja publicado no Louco, se você aprovar, feitas todas as correções
que você achar necessárias. Combinado? Ainda estou procurando um pseudônimo par
assinar o texto. Pena que o Nelson já tenha se utilizado de Suzana Flag...)
Desquitado, educado, com
uma cabeleira de fazer inveja ao Javier Bardem (que eu amo de paixão!), nos
seus saudáveis 50 anos, leitor e escritor, T. balançou a Suzete, você acredita,
André? Mas estou para descobrir se ele é mais um desses mulherengos filhos da
puta que comem e largam. Isso dá medo numa mulher, sabe. Muito medo. Ninguém
conhece ninguém, mesmo depois de longa convivência. Imagine então de supetão,
você corta o cabelo do cara, ele te dá uma cantada em alto estilo – a
Literatura como isca – você fica sem-pai-nem-mãe, divagando, as pernas bambas,
viajando, a cabeça a rodar, delirando, meu deus!, alucinando, e aí... se fode.
Por que não nasci homem?
Querido André, tenha
paciência comigo. Desculpe o desabafo. Carta serve também para desabafar, não é
mesmo? É a tal escrita terapêutica de que você tanto fala! Mas eu precisava
falar sobre T., ou poderia parecer uma traição a você, meu amigo. Vamos ver no
que vai dar, se é que vai dar...
E ainda nem perguntei
por você! Recuperando-se do atropelamento? Espero que sim. Responda logo, com
notícias sobre você.
Da sempre sua,
Suzete.
P.S.: adoro isso de p.s. numa cartinha. Fica tipo chique. Para falar de
bobagem: encontrei um livro de conteúdo duvidoso, mas lindo, caríssimo, O Livro
dos Símbolos – Reflexões sobre imagens arquetípicas, da editora Taschen. São
vários os autores. Comprei. Coisa de cabeleireira. Depois escrevo mais sobre o
livro.
P.S 2: assim é demais, é vontade de continuar conversando com você.
Escrever carta para mim é isso, uma conversa, você ao meu lado, ouvindo,
falando... Mas queria perguntar se você acha que estou escrevendo um pouco
melhor. Responda sinceramente, please.
P.S.3: puta que pariu, nunca vi carta com 3 P.S.s.