Da série Abecedário Pessoal
Para alguns, escrever é martírio, suplício, penitência, castigo, sufocação, asfixia, ameaça de morte. O sentimento costuma ser expresso numa frase simples e definitiva: não gosto de escrever. Como quem diz: não gosto de cachorro. Ou, para outros: não gosto de gato. Dito assim, não há mais o que pensar sobre o assunto: não gosto e pronto.
Para muitos, escrever é como
respirar o ar da montanha, comer uma comida gostosa, beber água gelada ou vinho
bom, ler um ótimo romance. Mas ninguém é indiferente ao verbo escrever, a ponto
de podermos dividir a humanidade em duas categorias: as pessoas que gostam de
escrever e as que não gostam.
Visto está que pertenço à categoria
daqueles que gostam de escrever, ou o leitor não estaria lendo o que agora lê.
Mas estou só, escrevo só, que o processo é mesmo solitário e por ora ainda não
há leitor algum. Nesse instante, sou meu próprio leitor, ou leitor de mim
mesmo.
Quando um compositor registra as
notas da nova composição na partitura – vale dizer, no ato da criação – ainda
não há música, não ao menos como a conhecemos, nós meros ouvintes: uma
sequência de sons e silêncios. Bem verdade que já há um outro tipo de música,
aquela existente (ou pré-existente) na mente do compositor, e que só ele é
capaz de ouvir, porque feita de silêncio ainda. Podemos pensar então que a
música ganha existência real – ganha vida, podemos dizer – quando é tocada por
um ou múltiplos intérpretes, e por nós ouvida.
Com o escritor isso não acontece.
Antes mesmo que algum leitor se apresente, o texto já é um texto, ganha vida
própria assim que é escrito. Ele pode ser lido, relido, editado (até à exaustão,
caso o autor seja um neurótico perfeccionista), por aquele que acaba de
escrevê-lo. Torná-lo público é uma outra questão. Kafka que nos diga!
A esta fase, a da publicação,
aqueles que não escrevem evidentemente não chegam a ela. (Um problema a menos,
portanto.) Os que escrevem conhecem bem o dilema: publicar ou não publicar, eis
a questão! Porque traz à luz a existência do Outro. Aquele que escreve, em
teoria ao menos, pode escrever apenas para si. (O escritor profissional escreve
sempre para o outro.) Quando o autor pensa em publicar, o Outro surge com força
e a repercussão deste fato sobre aquele que escreve torna-se inexorável. O
autor projeta suas ideias e pensamentos e, em seguida, esta projeção volta-se
para ele mesmo, em sua direção, e ao recebe-la ele já não será o mesmo, e seu
texto já não será o mesmo.
Independentemente do dilema da
publicação, ou antes dele, para alguns surge aquilo que podemos chamar de a
necessidade de escrever. Não se trata apenas de um desejo, capricho, veleidade,
veneta, extravagância, esdruxulez, frivolidade, mania, telhice, luada,
destempero, pendor (ou falta de pendor), mas de uma necessidade. Como pré-requisito,
apenas este gosto pelas palavras. Gosto que também se manifesta no ato da
leitura. Para aquele que escreve, ler e escrever são irmãos siameses: desde
sempre. Mas há um momento em que a necessidade da escrita suplanta o prazer da
leitura; o escritor já não pode ler o que o Outro escreveu; está concentrado
(condenado?), possuído mesmo pela própria necessidade de escrever, e esta não
pode ser perturbada; a busca agora é da própria palavra original, pessoal, sem
contaminação.
Daí o sentido de se encontrar o abecedário próprio de
cada um. Para alguns, E é de Espanto; ou Estorvo; ou Erudição; ou Engravidar;
ou Espernear; ou Erradicar; ou Experimentar; ou Epifania; ou Empreendimento; ou
Escape; ou Estupidez; ou Estultícia; ou Esperança; ou Esperanto;
Entre-outras-coisas...
Em meu abecedário atual: E de
Escrever.