Capítulo VII
(Romance em construção,
vivido em Londres nos anos 80)
Durante três meses Beatriz
tentou localizar Westby, o professor orientador. A secretária da Unidade
informou-a de que ele estava de férias, seguidas por estágio num hospital ao
norte de Londres, mas que estaria de volta em poucos dias,
– você vai gostar dele, é um bom homem, você vai ver,
o que despertava nela
alguma esperança, atormentada pelo ócio daqueles dias, por não ter o que fazer –
cirurgiã acostumada a fazer –, embora se dedicasse obstinadamente a
aprimorar seu inglês. Começara o segundo caderno de colagens, os artigos
selecionados um pouco mais complicados, as idas aos dicionários já não eram tão
frequentes, mas ainda apanhava muito das manchetes e expressões idiomáticas
: Curiosity killed the
cat,
: Dog days of summer,
: It’s rainning cats
and dogs,
– onde já se viu chover gatos e cachorros, só mesmo em cima dos britânicos,
ela brincava, pura
implicância, Beatriz não era burra, sabia muito bem o significado de expressão
idiomática. (Porque a vida não tem mesmo sentido, podemos dizer que a vida no
planeta Terra é uma expressão idiomática do universo!)
Bem, naqueles primeiros fins de semana de ócio desesperador na Unidade, Beatriz
tratou de iniciar a exploração de Londres. Afinal, este havia sido o principal
motivo daquela aventura, viver numa espécie de capital do mundo. Ao entrar pela
primeira vez na National Gallery, e fez questão que este fosse o
primeiro local a ser visitado pois conhecia de longa data a riqueza do acervo
do museu, sentiu-se recompensada. Durante vários meses, este foi seu programa
nas tardes de sábado, com a vantagem de que o ingresso era gratuito.
A galeria fica na Trafalgar Square, bem no centro
da cidade, lugar sempre movimentado, cheio de gente do mundo inteiro, e era de
gente que Beatriz sentia falta, cansada dos zumbis e da objetividade burra
(mais uma vez o gênio de Nelson Rodrigues) dos nativos da Unidade. E Bia pôde
entrar em contato com outro tipo de gente: Leonardo da Vinci, Botticelli, Caravaggio, Rembrandt, Jan van Eyck, Rubens, Vermeer, Thomas Gainsborough,
Turner, Renoir, Monet, Van Gogh, Toulouse-Lautrec, Gauguin, Degas, Manet, Berthe Morisot, Picasso. Um
deslumbramento.
Beatriz nunca soube o porquê, porém ao deparar-se com O Casal Arnolfini, o mais
famoso quadro do pintor flamengo
Jan van Eyck, pintado em 1434, desatou num choro
convulsivo. Durante intermináveis minutos ela procurou pelo quadro nas
sucessivas salas da galeria, resolveu que não pediria informações sobre sua
exata localização, desejava encontrá-lo sozinha, descobri-lo por si mesma, era
a realização de um sonho antigo prestes a se concretizar, o que bem expressava
sua determinação e autoconfiança, andou andou andou até que deu de cara com a
pequena tela de 82 x 60 cm, mostrando o rico comerciante Giovanni
Arnolfini e sua esposa Giovanna Cenami, que viveram na cidade de Bruges entre 1420 e 1472, de pé em sua alcova.
Há um que de cerimônia e teatralidade na cena: o marido, com expressão severa
no rosto abençoa sua mulher, que por sua vez lhe oferece a mão direita enquanto
repousa a mão esquerda em seu próprio ventre. Estará grávida Giovanna Cenami? A
visível protuberância em seu ventre sugere o prenúncio da maternidade.
Possivelmente uma manifestação de um forte desejo, pois ela não chegou a
conceber. As vestes luxuosas de sóbrias cores indicam a elevada posição
sócio-econômica do casal. Em tudo revela-se a riqueza material, no vestuário,
nos móveis, nas frutas no parapeito da janela. As laranjas são claro sinal de
luxo e talvez indiquem a origem mediterrânea
dos protagonistas. A cama, lugar onde se nasce e onde se morre, revela
intimidade e paixão, este sentimento tão privado também representado pelos
tecidos vermelhos, em contraste com o verde musgo da veste de Giovanna. Os
tamancos de Giovanni no canto inferior esquerdo do quadro sinalizam que se
trata de uma cerimônia religiosa. Os sapatos vermelhos de Giovanna estão perto
da cama: acredita-se que estar descalça assegure a fertilidade. O pequeno
espelho ao fundo, medindo 5,5 cm de diâmetro, certamente o mais intrigante
detalhe de toda a obra, contendo ao redor as dez cenas da Paixão de Cristo, cada uma
medindo 1, 5 cm, minúcias da minúcia, e afirmando a fé cristã do casal, reflete
todo o ambiente, o mobiliário, os nubentes, a janela com a vista de Bruges. O
candelabro contem uma única lâmpada a simbolizar a chama do amor; é
costume acender uma vela no primeiro dia de casamento.
Um casal em carne-e-osso que visitava aquela sala do museu viu Beatriz
debulhar-se em lágrimas diante da pequena tela e afastou-se em respeitoso
silêncio. (O que uma obra de arte pode mobilizar em nós: insuspeitas incontidas
emoções guardadas na mais recôndita dobra de nossa alma e que vêm à tona sem
que tenhamos qualquer controle sobre elas.) Durante muitos anos Beatriz
debruçou-se sobre a história desta pintura, fascinada pelo misto de realidade e
fantasia que contem. O casal Arnolfini existiu de fato, residiu em Bruges entre
1420 e 1472, mas foi o retrato
pintado por van Eyck que se encarregou de tornar sublime e eternizar aquela
cena. A força da arte. Agora, Beatriz podia senti-la,
–
uma experiência que vale por uma vida inteira,
pensou, e
guarda até hoje com enorme emoção a reprodução emoldurada daquele quadro numa
parede de seu próprio quarto.