sábado, 28 de abril de 2012

Último recurso

Por ciúme, o autor resolveu matar sua personagem predileta. Arrependeu-se. Passou então a psicografá-la.

Monólogo

Gostava muito de conversar. Pena que não sabia ouvir...

Viver em brancas nuvens

Resolveu escrever sua autobiografia. Não encontrou o protagonista: viveu como um mero figurante.

A arte de conversar



No prólogo de Sobre a amizade e outros diálogos, em parceria com Osvaldo Ferrari, Borges (2009) afirma: “Uns quinhentos anos antes da era cristã aconteceu na Magna Grécia a melhor coisa registrada na história universal: a descoberta do diálogo”. Se tal descoberta é tão antiga, por que ainda é tão raro que seja praticada, tão difícil de se realizar? Por que os homens têm tanta dificuldade para aprender a conversar?
Passamos a chamar de conversa o que comumente se chama de diálogo (haverá quem discorde: vamos conversar?), e sempre que possível, procuraremos estabelecer analogias entre a possibilidade de conversa cotidiana, dita “comum”, e a conversa particularíssima, dita psicanalítica, entre analista e analisando.
A dificuldade maior para se estabelecer uma conversa começa com a dificuldade de escutar. Borges poderia ter dito que a grande descoberta foi esta: a arte de escutar. Na epígrafe do Ensaio sobre a cegueira, Saramago (1995) adianta que “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Uma paráfrase possível: se podes ouvir, escuta; se podes escutar, repara.
O verbo reparar tem duplo significado: prestar atenção, mas também consertar. Este pode ser um dos efeitos do ato de ouvir-escutar-reparar, sobre aquele que fala - o efeito reparador. De certa maneira, reparar aqui está bem próximo de cuidar, pois quem ouve-escuta-repara, cuida. Pode-se então estabelecer o início de uma conversa.
          Bem, não basta ouvir para que se estabeleça o diálogo, é preciso dizer, manifestar-se, expor-se, diante daquilo que foi escutado. Dizer algo a respeito, ressoar, vibrar em consonância. Agora as coisas começam a se complicar: ouvir, escutar, reparar, e responder em consonância. A necessidade do reconhecimento do outro e de si mesmo torna-se imprescindível. Montaigne (2001), no ensaio intitulado Da arte da conversação, assinala que “o mais proveitoso e natural exercício de nosso espírito é, em minha opinião, a conversação. Acho sua prática mais doce do que qualquer outra ação de nossa vida; é a razão por que, se agora fosse forçado a escolher, creio que antes concordaria em perder a visão do que a audição ou a fala.” Torna-se ainda mais relevante esta observação de Montaigne, considerando-se que se trata do mestre do ensaio, gênero que aparentemente se caracteriza por verdadeiro monólogo. A menos que se considere o leitor partícipe de uma conversa denominada leitura (voltaremos ao tema mais adiante).
            E a palavra retorna àquele que primeiro falou, e aquele que primeiro ouviu torna a escutar. Parece tão simples, pois, conversar. Porém, Narciso - outra invenção dos gregos - intromete-se. Ainda que seja antiga a prática da conversa, o tempo da crueldade narcísica é mais antigo. Já não se ouve, muito menos se escuta, e a resposta não vem em consonância, desconversa-se, desanda o diálogo.
Usando a sexualidade como modelo, esse impasse equivale a “relação sexual” onde um dos parceiros não realiza que está na presença do outro, mas diante de um receptáculo para suas “ejaculações verbais”, sem qualquer intenção de troca, de parceria. Uma conversa é um ato mútuo de atenção, consideração, respeito e expectativa de aprendizagem, o que no sentido psicanalítico caracteriza a “primazia da genitalidade”, como expressão maior da entrega, do encontro e da renúncia de aspectos narcísicos destrutivos (inveja, intolerância às diferenças, ausência de humildade para o aprender a dois).
            É verdade que aquele que está disposto ao exercício da conversação tem a expectativa de receber de seu interlocutor idéias de valor, de espírito, concatenadas e vigorosas. Não espera conversar com um tolo. Ainda em Montaigne (2001 b), no mesmo ensaio, encontramos valioso alerta: “A tolice é uma qualidade má; porém não poder suportá-la, e irritar-se e roer-se por causa dela, como me acontece, é uma outra espécie de doença que pouco fica devendo à tolice em importunidade.” O desenvolvimento da tolerância (não no sentido moral ou religioso da palavra, porém no autêntico reconhecimento das diferenças), portanto, nos parece outro elemento fundamental para o diálogo.
Certa paciente, tendo nascido em berço de ouro, digamos que exercitou muito pouco a necessidade de pensar, privada que foi de muitas das frustrações cotidianas desde seu nascimento. Em certa altura do processo analítico, que se desenvolvia penosamente para ambos, paciente e analista, ela exclama: “Se Deus queria punir os homens e enviou o dilúvio, por que então não criou tudo de novo, como da primeira vez, em lugar daquela trabalheira danada da Arca de Noé, com os casais de bichos e tudo mais?” O que poderia ser tomado como uma grande tolice, em uma conversa “comum”, pôde ser interpretado como tentativa de pensar com a própria mente, ao contestar atos divinos incutidos pelo processo civilizatório. Bem verdade que agora estamos falando do tipo particular de conversa, o diálogo analítico, onde bobagem ou tolice quase sempre têm sua serventia; apenas com tolerância e paciência podemos ouvi-los. Então, ouvir, escutar e reparar podem constituir-se em algo terapêutico, ou melhor, algo que propicie transformações em direção ao crescimento psíquico.
Encontros com diferentes propósitos, culturais, políticos, científicos - como os congressos de psicanálise, por exemplo - ocorrem com o pretexto (legítimo) de se trocar ideias sobre os mais diversos temas; enfim, conversar sobre eles. Com frequência, de fato, trocam-se ideias: porém, cada um sai dos encontros com suas mesmas ideias de antes. Difícil, e muito mais interessante, é trocar de ideias, abrir mão de um ponto de vista em favor de outro, o que pode significar efetivamente uma transformação (Machado Neto, 2010).
         Outro elemento surge nesse processo, não menos importante, embora de mais difícil percepção: o silêncio. É preciso fazer silêncio (interior) para poder escutar o que de fato o outro está dizendo, com a menor interferência possível de nossa própria mente. Aqui surge o que pode ser visto como um distanciamento entre a conversa “comum” e o diálogo analítico; o silêncio do analista, quer seja o do vazio continente, quer seja o da abstinência verbal (Green, 2004), difere do silêncio daquele que escuta o outro na conversa “comum”. Nesta última situação não deverá haver qualquer intenção interpretativa, ou não se trata de uma conversa “comum” (o “furor interpretativo” de algum analista deve ser contido, para o bem de sua convivência social).
      Em Água viva, Clarice Lispector (1998) propositadamente confunde o significado do silêncio nesses dois tipos de conversa: "...será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue a pergunta sem resposta? ...Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa...” Torna-se evidente aqui a riquíssima interface entre literatura e psicanálise: a possibilidade da conversa entre autor e leitor. Thomas Ogden (1996) assinala que “Ler não é uma simples questão de examinar, ponderar ou até pôr à prova as idéias e experiências apresentadas pelo escritor. Ler implica uma forma de encontro muito mais íntima.” Nesse sentido, ler é conversar - um outro tipo de conversa.
Na psicanálise atual dá-se ênfase na observação da relação, da parceria, principalmente na forma como os dois participantes conversam e se comunicam. Daí a necessidade de uma linguagem que não os distancie da linguagem comum. Tarefa árdua na medida que requer da dupla, e principalmente do analista, paciência, tolerância, respeito e capacidade para suportar diferenças de opinião e de vértices. É claro que no âmbito da conversa analítica aparece um complicador maior: o estado subjacente de angústia que a conversa traz. Estamos nos referindo a uma especificidade de diálogo, que Freud chamou de comunicação de inconsciente para inconsciente. A questão se reverte de mais complexidade, e, no entanto, é um cenário que oferece a possibilidade de pesquisa das dificuldades inconscientes para conversar.
Nunca um autor esteve tão empenhado na questão da comunicação analítica como Wilfred R. Bion, e uma invariante temática em toda a sua obra toca a questão da disciplina para se escutar, observar, respeitar a conversa,  lembrando que a memória, o desejo e a necessidade de compreensão podem sabotar a capacidade de ouvir, escutar, reparar e cuidar. Em Seminários Romanos, Bion (2002) enfatiza sua preocupação metodológica quando escreve: "Volvamos de nuevo a las preguntas: que observamos y qué debemos hacer con nuestras observaciones? Recuerdo que una vez me preguntaram "Usted hace algo más que hablar?", contesté: "Si, estar callado". Temo que sea difícil de creer para vosostros mientras yo estoy aquí hablando, pero en análisis me gusta poder estar callado. Es muy difícil de hacer, como sabemos, porque sobre nosostros existe la presión para que digamos o hagamos algo." ..."Pienso, por tanto, que es muy importante hacer que vuestro lenguaje sea lo más exacto posible, tanto si lo utilizáis para comunicarnos com vosostros mismos como para comunicar con alguíen ajeno a vosostros.”
Note-se o cuidado com a relação, o respeito pelo diálogo e a preocupação de procurar sempre uma forma específica de linguagem que diga respeito a cada dupla. Quando, em  determinados momentos não tão frequentes numa sessão de análise, a dupla entra em sintonia - exemplo de “social-ismo” -, deixando de lado a contenda narcísica, a rivalidade, a onipotência e a onisciência, então acontece o diálogo, a conversa, a arte da troca, e por consequência, a reparação interna. Nesse momento, o momento interpretativo-mútuo, ocorre a experiência de transformação, quando ambos saem de seus refúgios autísticos para a capacidade genital de se relacionar, de gerar, fecundar, criar filhos, acrescer recursos para intercomunicação. Essa conversa se transforma num cenário de projeções-introjeções estruturantes, expandindo  o mundo interno dos parceiros analíticos, expandido também o mundo das relações sociais.
Voltemos pois ao início do presente trabalho, para ressaltar que, no citado livro de Borges e Ferrari, e não de maneira fortuita, a palavra diálogo vem acompanhada da palavra amizade. Como manter tão longo e produtivo diálogo -  que resultou na publicação de três volumes - se não amparado na amizade entre ambos? Difícil definir amizade; nem mesmo Platão, ao dar voz a Sócrates em Lísis ou da amizade, conseguiu fazê-lo (Baldini, 2000). Entretanto, Guimarães Rosa, em sua simplicidade e gênio, nos socorre: “Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou - amigo - é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.”
Conversar com um amigo é outra coisa, diríamos. A amizade constitui-se então em uma condição facilitadora do diálogo, especialmente pela existência de intimidade e confiança recíprocas. Desaparecem o temor, a preocupação com o interesse, a tendência ao julgamento: desarmam-se os espíritos. Concordar ou divergir tornam-se nada mais que qualidades intrínsecas do diálogo, nunca uma ameaça, mesmo que isso represente um “sacrifício” narcísico. Uma conversa entre dois amigos tem o poder de transformá-los a ambos.

(Originalmente publicado em "O mito do vaso partido e outros escritos", Ed. ExLibris, 2010.)