terça-feira, 18 de outubro de 2016

Mordomia carioca



Os cariocas estão sempre nos surpreendendo com suas novidades, algumas curiosas e bastante inventivas. Da última vez que fui a Ipanema, encontrei da orla do mar a tal altinha, um jogo de bola novo e criativo, bem democrático, ao incluir todos os gêneros.
 Desta vez, ao chegar à praia de Copacabana lá pelas 10 da manhã, o sol já queimando os banhistas, temperatura perto dos 35 graus, notamos vários rastros na areia, que iam do calçadão até onde estavam armadas as barracas, próximas à água do mar.
            Olhando de perto, vimos que se tratavam de trilhas de areia molhada, obtidas com irrigação através daqueles tubos de borracha contendo pequenos orifícios, como os utilizados na irrigação de hortas, gramados e jardins. E a coisa funcionava mesmo! Areia fresquinha, boa de se pisar descalços, sem o perigo de queimar a delicada sola dos pés de turistas como nós.
            Que beleza! Mas assim de graça?! Sem mais nem menos?!
            Bem, agora vem a esperteza do carioca, que não dá ponto sem nó. O rapaz que ficava esperando pelos banhistas no calçadão, nos conduziu pela trilha molhada até a barraca para a qual ele trabalhava: O senhor quer duas cadeiras, duas barracas, água, cerveja, caipirinhas, água de coco, é só pedir, estou à sua disposição, basta me chamar...
            Sentamos, pedimos, bebemos, estava mesmo ótima a praia de Copacabana, com mais uma “mordomia” carioca.

Foto: A.Vianna, out 2016, Rio de Janeiro.

Quarenta dias


Maria Valéria Rezende já havia publicado Vasto mundo, O voo da guará vermelha e Modo de apanhar pássaros à mão. Com Quarenta dias ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de melhor romance de 2015.
            A experiência de vida da autora é extraordinária. Nasceu em Santos, SP, e em 1965 entrou para a Congregação de Nossa Senhora, Cônegas de Santo Agostinho, freira portanto aos 24 anos.
            Sempre envolvida com educação popular e alfabetização, primeiro em São Paulo, depois no Nordeste, exilou-se por conta da ditadura militar. Formou-se em Literatura Francesa pela Universidade de Nancy.
            Quarenta dias é um romance envolvente, intenso, perturbador. Dona de uma linguagem originalíssima, Valéria Rezende descreve as privações de Alice, uma nordestina perdida nas ruas de Porto Alegre, levada à loucura pela busca incessante de um rapaz desaparecido que nem ela conhece. Porém, o que Alice perdera era a ela mesma.
            Vejamos um trecho da escritura de Maria Valéria:

“Entrei neste apartamento – ainda não consigo dizer “em casa”, tento, mas não há jeito – agora há pouco, exausta, carregando um furdunço no peito, sem saber onde despejar esta balbúrdia de imagens, impressões, sentimentos acumulados por quarenta dias, dei com o olho na Barbie e soube logo em quem vou descarregar tudo isso. Por sorte o caderno estava ali mesmo, perto da porta de entrada, na mesinha do telefone onde eu deixei desde que desfiz as malas sem ter o que fazer com ele, nem tranquei a porta, nem fui ao banheiro, nem bebi um copo d’água, muito menos pensei em telefonar a Norinha, a Elizete ou a quem quer que seja, aquela sensação de existir solta, no meio do mundo, sem nenhuma determinação alheia, mas exposta a tudo, uma conquista dura, persistindo como se eu ainda estivesse na rua, peguei o caderno, procurei uma caneta, joguei a bolsa e os sapatos por aí, desabei no sofá branco que eu detesto com você, Barbie, no colo, apoiada numa almofada roxa de babados que eu também detesto, mas Norinha adorou, comprou e até combina com você, “my dear friend”.

Alice, a personagem central do romance, confessa desde o início que escrever tem mesmo uma função terapêutica. E o Louco gostou disso.

            

A Jangada e o Mar



A JANGADA E O MAR

Sobre a areia, deitada,
diante das ondas do mar,
cisma, quieta, a jangada,
cansada de navegar.

E o mar chamava a jangada,
saudoso  de sua vela.
O mar, sem barco, é nada,
o vento é nada, sem ela.

E a jangada respondia:
“Quanto mar já naveguei,
quanto vento e maresia!
Ai de mim, que me cansei...

Deixa que eu fique aqui mesmo,
aqui também se passeia,
deixa que eu navegue a esmo
sobre as ondas da areia...”

Do mar soou um lamento
e do vento um triste canto,
ficou sem vela o vento
e o mar sem seu encanto.


Inspirado na foto já publicada neste blog (http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/2016/10/jangadas.html)
o poeta Paulo Sergio acrescentou à primeira quadra os demais versos do lindo poema!
Também publicado no Blog do Paulo Sergio Viana.