sábado, 21 de julho de 2018

Memórias coloniais



Pouca gente até agora ouviu falar de Isabela Figueiredo, nascida em Lourenço Marques, hoje Maputo, Moçambique, residente em Portugal desde 1975, onde é professora e escritora. Seu segundo livro, Caderno de memórias coloniais (Ed. Todavia, 2018), publicado em Portugal em 2006, há de torná-la conhecida também no Brasil. 
            O passado colonial de Portugal é tratado pela autora na primeira pessoa, cruamente, onde brancos são brancos e pretos, pretos. A luta íntima contra o pai amado e racista e bruto talvez tenha sido exorcizada pela autora, através de relato de tamanha sinceridade. Talvez.
            A par do conteúdo interessantíssimo, de enorme valor histórico, o livro nos oferece estilo forte, duro, por vezes áspero, porém original e elegante. Eis pequena amostra:

“Nunca tinha batido em ninguém, mas dei-lhe uma bofetada, porque ela me irritou, porque não concordou comigo, porque eu é que sabia e que mandava e estava certa, porque ela tinha dito uma mentira, porque me tinha roubado uma borracha, sei lá por que lhe dei a maldita bofetada!
Mas dei-lha, na Escola Especial, no intervalo da manhã, encostada aos fundos da sala da 4aclasse. Uma parede branca. Era a Marília.
Foi premeditado. Tinha pensado antes, se ela voltar a me irritar, bato-lhe. Podia perfeita e impunemente bater-lhe. Era mulata. E a rapariga comeu e continuou em pé, sem se mexer, com a mão na cara, sem nada dizer, fitando-me com um estranho olhar magoado, sem um gesto de retaliação. Disse-lhe, já levaste, e depois afastei-me para o fundo do pátio, absolutamente consciente da infâmia que tinha cometido, esse exercício de poder que não compreendia, e com que não concordava. Não por ser uma bofetada, mas porque tinha sido à Marília. A Marília era um alvo fraco. Nada podia contra mim. Queixasse-se, e depois?! Eu era branca. Quem poderia cantar vitória logo à partida?”

            O racismo português à flor da pele, as mágoas do colonialismo. Vale a pena conferir!