domingo, 8 de novembro de 2015

Férias com Manoel de Barros


Pedrinho passou de ano – Primeiro Lugar do Estabelecimento!, embora não soubesse o significado da palavra estabelecimento – e ganhou de presente do pai um mês de férias em casa de Manoel de Barros, no Pantanal Mato-grossense.
            – Quem é esse Manoel de Barros?, perguntou o menino pequeno.
            – É um menino feito você, só que mais velho, respondeu o pai.
            O poeta o recebeu com entusiasmo e foi logo dizendo:
            – Vamos brincar no quintal!
            – Brincar de quê?, perguntou Pedrinho desconfiado.
            – “Brincar com palavras, tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!”
            De início o menino assustou-se, depois acostumou-se com a ideia de que “A gente gostava das palavras quando elas perturbavam o sentido normal das ideias”, explicou o poeta. O menino ainda não sabia que estava brincando de poesia, “Porque a gente também sabia que só os absurdos enriquecem a poesia”.
            Pedrinho adorou as palavras “desbocadas”. “Tipo assim: Eu queria pegar na bunda do vento”. Era a maneira deles de “sair do enfado”. “Quando o menino disse que queria passar para as palavras suas peraltagens até os caracóis apoiaram.”
            Pedrinho logo compreendeu que seu novo amigo Manoel “fazia parte da natureza como um rio faz, como um sapo faz, como o ocaso faz. E achava uma coisa cândida conversar com as águas, com as árvores, com as rãs.”
            Exclamou o poeta:
– “Lugar mais bonito de um passarinho ficar é a palavra”.
Pedrinho “não sabia nem o nome das letras de uma palavra. Mas soletrava rãs melhor que mim”, disse o poeta.
            Aos poucos o menino foi gostando cada vez mais daqueles absurdos, sentia-os mais que os compreendia, sempre em silêncio, e Manoel disse que era assim mesmo:
– “E como eu poderia saber que o sonho do silêncio era ser pedra!”
Perguntado sobre a razão de tanta invencionice, Manoel respondeu:
– “Invento para me conhecer”.
Pedrinho gostou, ainda em silêncio.
            – E pra que serve essa tal de poesia?, perguntou o menino.
            – “Escrever o que não acontece é tarefa da poesia.”
E arrematou o poeta:
– “Pra meu gosto a palavra não precisa significar – é só entoar”.
            Diante do silêncio atento de Pedrinho, o poeta prosseguiu:
– “Eu sempre guardei nas palavras os meus desconcertos. Eu sustento com palavras o silêncio do meu abandono. Eu queria mesmo que as minhas palavras fizessem parte do chão como os lagartos fazem.”
            Hora de voltar para casa, findo o primeiro dia de peraltices no quintal, ambos morrendo de fome e de sono. Dia recheado de coisas inúteis? Manoel então explicou:
– “Ele sabia que as coisas inúteis e os homens inúteis se guardam no abandono. Os homens no seu próprio abandono. E as coisas inúteis ficam para a poesia”.
            Dia seguinte, e nos seguintes, as brincadeiras prosseguiram, e a poesia.


Em tempo: As falas do poeta foram extraídas do livro Menino do mato (Alfaguara, 2015), não obedecida a ordem em que aparecem no texto.