domingo, 21 de dezembro de 2014

A escrita e o luto


             Há poucos dias postei neste blog a crônica O diário de Boris Fausto, expressando minha opinião sobre O brilho do bronze (Cosacnaify, 2014), livro recém publicado pelo famoso historiador, um diário iniciado após a morte da querida esposa, com quem esteve casado por 40 anos.  (http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/2014/12/o-diario-de-boris-fausto.html). Naquele momento, dizia-me frustrado, porque o autor – um escritor experiente – não assumiu publicamente o valor terapêutico da escrita, particularmente para quem precisava vivenciar o luto e desejava vencê-lo.
            Hoje deparo-me com a entrevista de Fausto a Marco Rodrigo Almeida, intitulada O historiador e o luto, na Folha de São Paulo (21/12/2014), na página de Literatura do caderno Ilustríssima. O jornalista pergunta, “A escrita pode ser um consolo?” Boris responde:

“Acho que ajuda, pois você inventa uma missão na vida. Corta um pouco aquela sensação de que nada mais tem sentido. Escrever foi bom, foi útil, mas foi muito penoso em certos momentos.”

            Volto ao tema, pois julgo interessante comentar alguns aspectos desta resposta, que contém aspectos conflitantes em meu ponto de vista.
Comecemos pela última frase: é claro que é sempre penoso enfrentar o processo do luto, e não, fugir dele. Não só no ato da escrita, mas em todos os momentos da vida cotidiana, após uma grande perda. Tudo traz a lembrança do ente querido, e o consequente sofrimento; evitá-lo (recalcá-lo) não parece a melhor solução psíquica, pois o recalcado sempre retorna.
Ao passo que, “inventar uma missão na vida”, pode ajudar, mas me parece muito mais um não-enfrentamento, uma fuga, um subterfúgio, apenas um consolo, e como todo consolo, tem efeito transitório. Isso não é viver o processo do luto.
Boris tem razão, a “sensação de que nada mais tem sentido” é sentimento característico da pessoa enlutada. Confunde-se muitas vezes com a doença chamada Depressão, mas luto não é doença. Nesse ponto é que a escrita pode ajudar, não como consolo, mas como um aprofundamento psíquico no processo de elaboração do luto.
O que a escrita pode fazer é ajudar a organizar os pensamentos e emoções que nos invadem quando estamos tomados pela dor da perda. A este processo chamo de função terapêutica da escrita. Escrever é mergulhar profundamente no próprio Eu, o que, de fato, pode ser muito penoso. Ao final desta experiência, um novo ser pode emergir.
            Ainda na referida entrevista, o jornalista pergunta, “O senhor não tem religião, mas cita no livro um trecho do “Diário do luto”, que Roland Barthes escreveu após a morte da mãe: “Que barbárie não acreditar nas almas, na imortalidade das almas! Que verdade imbecil é o materialismo.” Ficou tentado a se apegar à fé?”
            Ao que Fausto responde: “Eu concordo com o Barthes (risos). Pouco depois da morte da Cynira, eu vi “Além da Vida” (2010), o filme de Clint Eastwood no qual vivos e mortos trocam experiências. Eu saí do cinema eufórico, dizendo “é isso aí, vou me encontrar com Cynira”. Porque não era Jesus quem afirmava, era o Clint. Ele é mais confiável (risos).”
            Embora este curto diálogo tenha se passado entre risos, trata-se de um assunto seríssimo, o dilema entre os que creem e os que não creem, diante das agruras desta vida. O tema cabe perfeitamente quando se discute o processo do luto, tanto para uns quanto para outros. Não é preciso mudar de ponto de vista quanto à crença ou não crença, ao se vivenciar o luto. O que não se pode é fugir do processo, escamoteá-lo, em busca apenas de um consolo.
            Pode-se tratar do assunto apenas como literatura, o que certamente tem seu valor, pois é o relato de uma experiência de vida, ou aproveitar-se da escrita como elemento fundamental no processo de vivenciar o próprio luto, e vencê-lo.