terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Conto de Natal de 2015



            Busco um tema para escrever um conto de Natal, desejo antigo de meu pai, que pedia aos filhos que escrevessem contos de Natal, e a imagem que me vem à mente é esta –, para mim, a imagem do ano de 2015 –, a do menino sírio Aylan Kurdi, encontrado morto numa praia da ilha grega de Kos.

            A imagem me remete ao Velho Testamento, antes pois do nascimento do menino Jesus, pela violência bíblica absurda e insana de sempre. A família de Aylan fugia da guerra na Síria, do mesmo modo que a humanidade sempre fugiu de tantas guerras, desde o Êxodus. E a humanidade não aprende nada.

            Se penso que a religião não ajuda, ao contrário, com frequência causa ou agrava tais tragédias, como ocorre hoje na Síria, como escrever um conto de Natal, meu pai?

          Talvez eu possa sonhar os sonhos do menino Aylan, por uma vida melhor, onde ele pudesse brincar com os amiguinhos, ir à escola, jogar bola mesmo num campo de terra batida e descalço, sentar-se à mesa para comer os alimentos típicos de sua terra junto à sua família, ouvir histórias contadas por sua mãe que lê histórias para ele, ver desenhos animados na televisão, rir da vida, vez em quando chorar da vida.

          Talvez eu possa sonhar os sonhos do menino Aylan de ser alguém na vida quando crescesse. Jogador de futebol? Professor? Médico, advogado, engenheiro, comerciante? Qualquer trabalho.

Talvez eu possa sonhar os sonhos do menino Aylan de um dia educar-se, no sentido mais amplo da palavra, como a compreendiam os mesmos gregos, que agora recebem meninos mortos em suas praias. Educar-se, viajar, conhecer alguma coisa do mundo além de sua aldeia natal.

         Talvez eu possa sonhar os sonhos do menino Aylan de um dia amar e vir a constituir uma família, ter filhos saudáveis, que pudessem brincar com os amiguinhos, ir à escola, jogar bola...

Talvez eu possa sonhar os sonhos do menino Aylan de um dia chegar à velhice, conviver com os netos, contar-lhes as histórias que a mãe contava,  enfrentar as vicissitudes da velhice, para saber, de fato, o que é viver.

Nada disso foi possível para o menino Aylan, morreu cedo demais, nem Jesus Cristo morreu tão cedo. Não houve Natal para o menino Aylan. Embora o fato tenha ocorrido muito distante de mim, atinge-me diretamente, e me impede de escrever um conto de Natal, meu pai.

Posso sonhar, isso eu posso, os sonhos de todos os meninos refugiados e suas famílias - mais de um milhão de pessoas neste ano de 2015 -,  e que continuam vivos, lutando para chegar ao próximo Natal. Torço por eles, mas pedir a quem que não morram afogados no Mar Mediterrâneo?

Vontade de chorar

A foto do dia.


Incêndio destrói Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.

Foto: Nilton Fukuda / Estadão.

O Senhor Serôdio

            
             Seu nome completo, Serôdio Dias de Oliveira, 51, gaúcho de nascimento e coração; primava pela circunspecção e sobriedade, qualidades que herdara em linhagem direta do avô e do pai. Por isso mesmo, apreciava muito de seu primeiro nome: Serôdio, nome de macho.
            Nunca soube quem lhe dera o nome, nem perguntara. Intuía que só podia ser o próprio pai, talvez inspirado pelo avô. Ambos eram homens cultíssimos, quando comparados aos agricultores da Serra Gaúcha, onde Serôdio passara toda a sua existência até então. Serôdio mesmo, não era homem de leituras, tinha o segundo grau incompleto; preferia o cultivo de uvas e fabricação de vinho aos livros. A vida me ensina tudo de que preciso, gostava de alardear, mostrando as mãos rudes e calejadas.
Até que chegou o inesperado dia de conhecer a cidade de São Paulo, digo inesperado porque este nunca fora um desejo genuíno do nosso agricultor, apegado de carne e osso à terra onde vivia. Também seria a primeira viagem de avião, uma aventura aos 51 anos de idade, para um solteirão carrancudo, solitário, sistemático, avesso a imprevistos. A obrigação falou mais alto, era uma viagem de negócios, na tentativa de vender melhor os seus vinhos, que de fato não eram maus, tinham personalidade, vinhos de macho, ele gostava de dizer.
E a tal aventura teve início súbito e mais que inesperado quando, já no embarque no avião, Serôdio sentou-se ao lado de uma bela paulistana, pele alvíssima, cabelos e olhos negros, que foi logo puxando conversa, dizendo-se portadora de “fobia de voar”. Parecia culta a mulher, 45, formada em Filosofia pela USP, onde lecionava, divorciada, vivida.
Na decolagem, posso segurar sua mão, senhor...? Permita-me que me apresente, me chamo Letícia, tenho pavor de avião, e o senhor? Serôdio Dias de Oliveira, às suas ordens. Bonito nome! Quem lhe batizou? Não sei, talvez meu pai ou meu avô, que bom que gostou, igualmente aprecio muito o meu nome. E o senhor sabe o que ele quer dizer? Não sei. E o assunto ficou por terminar, assim achou mais prudente a professora, ocupada mesmo naquele momento com a decolagem, o suor frio escorrendo pelo pescoço bem torneado.
A não ser pelas fortes turbulências ao sobrevoarem Santa Catarina, quando Letícia novamente agarrou-se nas mãos de Serôdio, a viagem transcorreu agradável, conversa animada entre ambos, O que o senhor vai fazer em São Paulo?, Já conhece a cidade?, Gostaria de mostrar-lhe alguns pontos turísticos, o Colégio dos jesuítas, a Avenida Paulista, quem sabe entramos no Masp, conhece? Serôdio não conhecia nada e aceitou entusiasmado a oferta caída do céu. Mais uma turbulência sobre o Paraná e Letícia mais agarrada...
A semana paulistana foi maravilhosa! Serôdio fechou negócios vantajosos, conheceu a Capital ciceroneado pela competência de quem nasceu na cidade e lá viveu 45 anos, mulher interessada em cultura, bem educada. Foram a teatros, museus, cinemas, comeram em bons restaurantes. E Serôdio levou Letícia para a cama.
No dia seguinte voltaria a Serra Gaúcha; foi quando lhe bateu uma melancolia atroz. No fundo, desejava que aquela relação perdurasse, quem sabe um namoro mais prolongado, depois o noivado, e daí para o casório seria um pulo. Com muito cuidado para não espantar a caça, Serôdio insinuou tais ideias à moça. Ela ouvia calada, o olhar distante, cheia de incertezas. Também gostara daqueles dias em que flanaram por São Paulo, junto daquele homem simples, rude e bom. Afeiçoara-se a ele, talvez ainda não fosse o amor. Além do que havia um sério problema, aquele nome. Serôdio! Letícia precisou ir ao dicionário, para inteirar-se do significado da palavra.
Serôdio, vou ser franca com você. É o seu nome! Não é um nome próprio...
Nosso gaúcho, magoadíssimo, não compreendeu aquelas frases curtas e diretas como um murro na testa. Por que não era próprio o seu nome? Por acaso Letícia era próprio? Abespinhou-se, amarrou a cara, no dia seguinte voltou para o Rio Grande. Catrâmbias!, foi só o que disse.
            (Caro e paciente leitor, essa história bem que poderia terminar por aqui. Quem já conhece o significado da palavra serôdio saberia do que Letícia estava falando, ao afirmar que aquele não era um nome próprio. Quem não conhece, provavelmente irá ao Houaiss e matará a charada. Fim de caso.
            Porém, nesta altura dos acontecimentos, o autor já não é mais o dono da história, ela adquiriu vida própria, quem escreve ficção sabe disso perfeitamente e por experiência própria, as ideias continuam fervilhando dentro da cabeça do autor, teimosas, impertinentes, a exigir que venham à luz, e o autor precisa obedecer. Talvez seja esta uma espécie de loucura mansa dos que sofrem da mania de escrever. Melhor obedecer.)
            Ao chegar em casa, Serôdio foi direto ao pai, com o interrogatório pronto e um indisfarçável sentimento de raiva. Pai, me diga, quem me botou este maldito nome? O pai, passado dos 80, não se lembrava bem da história, e pediu ao filho que fosse perguntar ao Domingos, velho capataz aposentado, português de nascimento, e que conservava até hoje uma linguagem tipicamente lusitana, às vezes difícil de ser compreendida, a despeito dos seus 60 anos de vida no Brasil, ele que viera para cá fugido do alistamento militar no exército de Salazar. Diga, Domingos, quem me botou esse nome?
            Ora pois pois, faz tempo isso, patrão, mas me lembro bem. Seu pai, ocupado com a vindima, pediu-me que levasse você à cidade para o registro no cartório, 10 dias depois de nascido. Fomos eu, minha mulher Maria e você, de charrete, debaixo de chuvinha miúda, cerração pesada, um frio do caralho. Seu pai recomendou-me que lhe desse o nome de Sinfrônio, agora me lembro bem, nunca mais esqueci, mas na hora do registro não houve o que me fizesse lembrar de nome tão horroroso, o nome de seu bisavô. Dito está, ora pois. Ocorreu-me então que lá em Portugal, quando um menino nascia fora de tempo, temporão como se diz também por aqui, o que aconteceu com você que nasceu 10 anos depois de seu irmão mais velho, dizemos que ele é serôdio. Eu e Maria aprovamos a troca, o cartorista nada acrescentou, ficou Serôdio. Na roça, todos gostaram, nome de macho, disseram. Graças a Deus, você também gostou!
            Serôdio ouviu com profundo respeito o relato do velho português. Seus pensamentos voaram para junto de Letícia. Quem sabe agora, que ele conhecia a origem e o significado da palavra – e a história não era de todo má, tinha sua pitada de poesia –, ela já não daria tanta importância ao nome? Encontrou o número do telefone anotado num guardanapo de bar, ligou imediatamente, o coração a sair pela boca.
            Uma voz metálica respondeu: este número de telefone não existe.
            Catrâmbias!, a vida me ensina tudo de que preciso e, às vezes, até do que não preciso.