segunda-feira, 11 de outubro de 2021

O companheiro

Ao meu amigo Márcio 


 

– Vida de caminhoneiro não é fácil!

A frase favorita de Fábio era repetida a torto e a direito, qualquer que fosse a circunstância, em dias ruins e nos melhores dias. Até mesmo na solidão de uma longa viagem pelo interiorzão do país, na companhia apenas do ronco rouco do motor, Fábio repetia em voz alta, para ele mesmo ouvir, como se fora um mantra – vida de caminhoneiro não é fácil!

Ele não podia negar, gostava daquela vida. Com o passar dos anos aprendera a cultivar a solidão, suportar a exaustão física durante as intermináveis horas de trabalho, o desconforto dos banheiros-de-estrada sujos fedorentos, o sono intranquilo na boleia, a comida dos restaurantes-de-posto-de-gasolina.

Fábio gostava mesmo era de ser dono da própria vida. Se um capataz desejava contratar serviço dele, que não viesse com exigências descabidas ou recusasse o frete devido; mandava-o à merda, subia no caminhão, buscava outro destino. Desaforo, isso não levava pra casa!

Sim, porque depois de duas ou três viagens seguidas voltava para casa, onde lhe aguardavam mulher, dois filhos pequenos e Sansão, o enorme dócil rottweiler que recebia o dono com generosas lambidas de efusiva alegria. Dia de chegada era dia de festa e banquete: feijão bem temperado, arroz cozido em banha de porco, bife acebolado e farofa de ovo; de sobremesa, o indefectível doce de banana. Passados poucos dias, Fábio ganhava a estrada, trabalho não faltava.

Dessa vez a viagem seria longa, rumo a Floriano, no Piauí. No terceiro dia ele parou para o pernoite em posto-de-beira-de-estrada; cansado e faminto, lavou-se no precário banheiro, sentou-se na varanda do pequeno restaurante, esperou pelo atendimento. Foi quando percebeu a poucos metros um sujeito gritando e chutando um cachorro, para que o animal se afastasse das mesas e não incomodasse os clientes.

– Sai fora cão sarnento dos diabos!

O cão gania a cada pontapé, movia-se com dificuldade pela paralisia das pernas traseiras, quase não saia do lugar. Ao perceber a presença de Fábio, o homem achegou-se pressuroso, cumprimentou educado e lhe entregou pequena folha plastificada, com as três opções do cardápio. Era o garçom. Fábio, a cara amarrada, pediu cerveja bem gelada e o prato mais caro.

A demora foi pouca, o prato bem servido: arroz, feijão, couve cortada fininha, costela-de-porco assada, um ovo estrelado com gema mole. 

– Traz um desse também para meu companheiro, Fábio pediu entredentes, a voz abafada.

Ao trazer o segundo prato, o garçom ouviu um terceiro pedido.

– Por favor, retire o espeto da carne.

O homem obedeceu com misto de espanto e curiosidade, e perguntou.

– Seu companheiro, onde está?

– Bem alí..., e Fábio apontou para o cão que se mantinha sentado sobre as patas traseiras, atento ao desenrolar dos acontecimentos, com fome, esperando pelo melhor, o instinto de sobrevivência preservado.

Em seguida, ele mesmo fez questão de colocar o prato no chão, frente ao animal. Atônito, o garçom nem teve tempo de se retirar antes que a comida fosse completamente devorada pelo cachorro.

Fábio terminou sossegado a refeição, elogiou apenas para si mesmo a qualidade do jantar, pediu a conta, pagou e exclamou:

– Vida de caminhoneiro não é fácil!

Não esperou o dia amanhecer, tocou para Floriano, barriga cheia e alma lavada.


Brasil no espaço

Charge do dia 


Augusto Bier