domingo, 15 de maio de 2022
segunda-feira, 8 de novembro de 2021
"A transitoriedade"
“Algum tempo atrás, fiz um passeio por uma rica paisagem num dia de verão, em companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem, mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário que nos rodeava, porém não se alegrava com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Tudo o mais que, de outro modo, ele teria amado e admirado, lhe parecia despojado de valor, pela transitoriedade que era o destino de tudo.
Sabemos que tal preocupação com a fragilidade do que é belo e perfeito pode dar origem a duas diferentes tendências na psique. Uma conduz ao doloroso cansaço do mundo mostrado pelo jovem poeta; a outra, à rebelião contra o fato constatado. Não, não é possível que todas essas maravilhas da natureza e da arte, do nosso mundo de sentimentos e do mundo lá fora, venham realmente a se desfazer em nada. Seria uma insensatez e uma blasfêmia acreditar nisso. Essas coisas têm de poder subsistir de alguma forma, subtraídas as influências destruidoras.
Ocorre que essa exigência de imortalidade é tão claramente um produto de nossos desejos que não pode reivindicar valor de realidade. Também o que é doloroso pode ser verdadeiro. Eu não pude me decidir a refutar a transitoriedade universal, nem obter uma exceção para o belo e o perfeito. Mas contestei a visão do poeta pessimista, de que a transitoriedade do belo implica sua desvalorização.
Pelo contrário, significa maior valorização!”
Sigmund Freud
A transitoriedade (1916)
Obras completas, volume 12, p 248
Companhia das Letras, 2010
Tradução de Paulo César Lima de Souza
O texto prossegue por mais quatro páginas, sempre belo, elegante, claro e profundo. E Freud conclui:
“Superado o luto, perceberemos que a nossa elevada estima dos bens culturais não sofreu com a descoberta da sua precariedade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes.”
O pequeno texto mostra um Freud otimista, apesar da guerra, corajoso, a valorizar a arte ao extremo. Um filósofo que escreve com clareza absoluta, acessível a um grande número de leitores que talvez desconheçam essa sua característica. E que elegância!
quinta-feira, 10 de junho de 2021
Mentira e verdade
Ao comentar as mentiras que são ditas CPI da Covid, Hélio Schwartsman (8 jun 2021) traz informação importante sobre a natureza humana:
“Meu intuito hoje é desmitificar um pouco a carga moral negativa que pesa sobre o engodo. Por mais doloroso que seja reconhecê-lo, a fraude está inscrita em nosso DNA. Mais até, está inscrita na natureza. Camuflagem, mimetismo e tanatose (fingir-se de morto) são alguns dos mecanismos pelos quais seres vivos tentam ludibriar predadores e presas. ”
O que há de mais interessante no comportamento humano com relação à mentira diz respeito aos bebês e crianças:
“Como ensina o psicólogo Robert Feldman, bebês com só seis meses já simulam choro para atrair a atenção dos pais. Entre os três e sete anos, crianças submetidas a experimentos em que se comprometem a não espiar às escondidas um objeto que precisam identificar desobedecerão à regra em 82% das ocasiões e mentirão sobre isso em até 95% das vezes.”
É evidente que Schwartsman não faz a apologia da mentira, apenas reconhece o fenômeno, e conclui:
“Existem vários tipos de mentira. Há desde as socialmente necessárias — você não deve falar mal da comida de seu anfitrião mesmo que ela esteja intragável— até as assassinas. Não vamos acabar com as mentiras, que são parte do mundo, mas devemos nos esforçar para bani-las ao menos dessas esferas mais estratégicas.”
A Psicanálise trata do tema Verdade e Mentira desde Freud, quando na interpretação dos chistes ele assinala a existência do “mentiroso que fala a verdade”. W.R.Bion destaca em Cogitações(Imago Editora, 2000), em texto intitulado Necessidade de verdade e necessidade de reajustar constantemente os desajustes (1959), aspecto fundamental:
“Os procedimentos psicanalíticos pressupõem que haja, para o bem-estar do paciente, um constante suprimento de verdade, tão essencial para sua sobrevivência quanto o alimento é essencial para a sobrevivência física. Além disso, pressupomos que uma das precondições para sermos capazes de descobrir a verdade, ou pelo menos para procurá-la na relação que estabelecemos conosco e com os outros, é descobrirmos a verdade sobre nós mesmos.”
Quão longe dessas ideias estão nossos políticos que mentem descaradamente, em público, em defesa de interesses escusos. Eles não sabem que a Verdade é o alimento do espírito.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/06/mentiras-na-cpi.shtml
quinta-feira, 1 de abril de 2021
Giannetti experimenta o anel
Ainda no prefácio, o autor adverte: “O corpo vê-se; o coração advinha-se. Silêncios, segredos, manobras, despistes. Que sabem os outros do que nos vai pela alma? O que sabemos, afinal, nós mesmos? Respeito às leis e costumes morais à parte, o que significa ser – não só parecer – ético? Como a certeza da impunidade mexeria com o nosso modo de ser e agir?” O primeiro parágrafo já instiga. Falo de O anel de Giges, de Eduardo Giannetti, Companhia das Letras, 2020.
Antes de qualquer outro comentário, o livro é tremendamente acessível, a despeito da enorme erudição do autor; a leitura é agradabilíssima, fluente; a escrita, o estilo, são da melhor qualidade literária. Dá gosto ler.
Bem, o assunto é surpreendente! Giannetti explica ainda no prefácio: “O experimento mental da fábula de Giges permite abordar o comportamento humano e a ética pelo prisma do anel. O que esperar de uma pessoa comum detentora do anel? Como provavelmente reagiria e o que faria com tal poder? Humilde pastor, o Giges da fábula de Gláucon transfigurou-se: foi para a capital do reino, seduziu a rainha, assassinou o rei com a cumplicidade dela, usurpou o trono da Lídia, tentou subornar os deuses e tornou-se fabulosamente rico. A posse do anel atiçou a fera da ambição desmedida e fez visível o sonho de glória e poder adormecido em sua alma. Mas quão representativo ou generalizável é o modelo do Giges-sem-lei?”
Sugiro que um provável leitor do Anel, antes de iniciar a leitura propriamente dita, se detenha por alguns minutos a estudar o índice do livro, disposto em oito partes, que detalham com minúcia o escopo da obra. Giannetti inicia por Heródoto e Platão e termina por perguntar: “E agora, Giges? Olhemo-nos nos olhos. Sem intermediários. E se o anel que Rousseau preferiu jogar fora viesse parar no dedo de um de nós?”
O último capítulo, Devaneios do viajante solitário: coração a nu, é mesmo surpreendente! O autor dá um cavalo-de-pau, subverte completamente o estilo, a escrita torna-se fragmentada, são pensamentos esparsos, ideias inacabadas, ousado exercício intelectual sobre os usos e abusos do anel pelo próprio autor.
Belíssimo livro, em minha modesta opinião.
domingo, 14 de março de 2021
O anel de Giges 1
“Gelo e fogo. Dois perigos assombram as sociedades humanas: a ordem excessiva e o colapso da ordem. O exagero da ordem destrói a liberdade e represa o indivíduo; levado ao paroxismo, é o gelo totalitário. O dissolução da ordem insufla o individualismo sem freios e leva a anarquia autodestrutiva – é a fogueira do caos e da guerra de todos contra todos.
O combate ao terror da autoridade opressiva e da polícia do tirano, de um lado, e a busca de remédios para a anemia da autoridade e a insegurança generalizada, de outro, definem em larga medida a tônica dominante das diferentes correntes de pensamento na história da ética e da filosofia política. Não raro, porém, o afã de corrigir um excesso dá ensejo ao seu oposto.”
O trecho acima está em O anel de Giges, de Eduardo Giannetti, Companhia das Letras, 2020, p.75. A fábula do anel é esmiuçada sob todos os ângulos possíveis, pretexto para que o autor escreva sobre filosofia e política de modo perfeitamente acessível, mesmo revelando profunda erudição.
Gelo e fogo representam a perigosa polarização em que vivemos, daí a atualidade do texto.
Outros destaques sobre o livro virão, à medida que dou continuidade à leitura. Chamam a atenção a quase perfeição da escrita, o estilo primoroso, a “musicalidade” do texto, para utilizar termo de meu irmão Paulo.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021
Parábola das batatas
Impressionado com o que lera em Saint-Exupéry, o jovem procurou o Sábio da Aldeia.
– Sábio, é verdade que “é melhor descascar batatas pelo amor de Deus que edificar catedrais”?
O Sábio:
– Meu filho, prefiro batatas assadas com casca.
quinta-feira, 5 de novembro de 2020
Por quê tanto sofrimento?
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Por quê tanto sofrimento no mundo? Quem pergunta é toda a humanidade, independentemente de raça, cor, religião, posição política, ou qualquer outra diferença entre pessoas, países, continentes.
Voltemos a Viviane Mosé, em seu livro Nietzsche hoje, já apresentado nesse blog:
http://loucoporcachorros.blogspot.com/2020/10/nietzsche-hoje.html.
Vamos ao capítulo Sobre o Sofrimento (p. 100-101):
“A dor advém, antes de tudo, do choque que caracteriza a vida como eterna expansão, eterna superação de si mesma. Em outras palavras, a dor é própria da vida, não tem como eliminá-la completamente, especialmente a dor psíquica, a dor de existir, de ter que fazer escolhas, lidar com as perdas, com o erro, com a morte...”
E Viviane complementa:
“A dor é uma positividade, possui uma função no organismo; ela é um sinal, um alarme, portanto é preciso aprender a interpretá-la considerando o fluxo da vida, considerando as forças que estão em questão. A dor é sinal de recolhimento, retração, requer cuidados.”
Nos anos 70, era professor em tempo integral e dedicação exclusiva no Hospital de Sobradinho, cidade satélite de Brasília, o então hospital de ensino da Universidade de Brasília, que vinha desenvolvendo interessante projeto de Medicina Integrada. (Um pobre coitado residente no sul do Piauí, com apendicite aguda, tinha acesso ao nosso hospital com mais facilidade do que encontrava atendimento em outra cidade, incluindo a capital de seu estado.) Tínhamos contato com as patologias as mais variadas, e com os respectivos sofrimentos que as acompanhavam.
Menina mirrada, perto de 5 anos de idade, chega ao hospital com enorme inchaço em um dos tornozelos, sem outros comemorativos – no jargão médico –, sem febre, sem dor no local da lesão. Ao exame físico, a manipulação do local afetado não ocasiona qualquer sinal de dor. A radiografia revela fratura grave da tíbia e de alguns ossos do tornozelo. Ela nega dor.
Renomado Professor de Pediatria, natural do Chile, atraído a Sobradinho pelo tal projeto de ensino, como tantos outros o fizeram e convidado ver a menina mirrada. Ele a ouve, examina, olha a radiografia, chama a enfermeira e solicita uma agulha hipodérmica, dessas de injeção. Pede gentilmente que a menina desvie o rosto para o outro lado, toma-lhe o fino bracinho, e em frente de todos nós, o transfixa com a agulha. A menina não se mexeu. Com certo tom teatral, anuncia o diagnóstico:
– Agenesia Congênita da Dor, doença incompatível com a vida.
Complemento eu: uma simples apendicite aguda, uma pneumonia, levam à morte, pois na ausência de dor não se suspeita de que algo esteja errado, não se faz diagnóstico precoce. (A menina continuava andando, o que agravava ainda mais as lesões, por não sentir dor.)
Inspirada em Nietzsche, Viviane aponta: [a dor] “possui uma função no organismo; ela é um sinal...”
Outro conceito que desejo enaltecer nos dois pequenos trechos apresentados por Viviane, sempre inspirada no filósofo alemão, é que “a dor é sinal de recolhimento”. Em se tratando da dor psíquica, penso que o recolhimento significa prudência e ao mesmo tempo terapia. (Talvez por isso tantos procurem o silêncio e a penumbra de uma igreja.)
Diante do sofrimento psíquico alguns gritam, esbravejam, amaldiçoam, praguejam, o que só faz aumentar o desequilíbrio mental. O recolhimento propicia o olhar para dentro, permite sentir a dor – aprendi com a psicanálise que esta dor pode doer muito, mas não mata.
Gosto muito da palavra recolhimento. Penso que escrever é uma forma de
Segundo Nietzsche, a dor é própria da vida.
quinta-feira, 29 de outubro de 2020
Nietzsche hoje
Cansadas, exaustas mesmo desses tempos de peste, acossadas pelas dificuldades materiais de toda ordem, pelo medo da morte, diante de uma praga que persiste, prevalece, avança inexorável, reaparece quando supúnhamos exterminada, enfim, diante do desconhecido, as pessoas perguntam Qual o sentido disso tudo?
A resposta não é fácil, nunca é fácil. Vem em minha ajuda o livrinho – porque é pequeno, 150 páginas – de Viviane Mosé intitulado Nietzsche Hoje – sobre os desafios da vida contemporânea (Ed. Vozes, 2018). Uma preciosidade para quem se interessa pelo filósofo alemão, comentado com palavras amigáveis de Viviane.
Qual o sentido disso tudo? Viviane Mosé escreve à página 55:
“No fundo, todos sabemos que não é o sentido, a verdade, mas a ausência de sentido e verdade o fundamento de tudo o que vive. Somos parte desse jogo complexo que se chama vida, não um ser de fora capaz de julgar: por mais que o pensamento, a razão, a ciência, possam construir cidades, ferramentas, produtos, ainda somos animais presos à determinação natural, atados a infinitas galáxias em um processo muito maior do que nós e que nos inclui.
O projeto filosófico de Nietzsche é, portanto, uma crítica da civilização em nome da afirmação da vida. A vida em si mesma é o valor que deve ser afirmado, o desafio do instante; todo o resto é narrativa, interpretação, e deve ser tido como tal. Podemos aprender sobre a vida se nos dedicarmos a lê-la. Mas quanto de verdade ousa um espírito? Quanto de verdade suporta?”
A densidade e clareza desse pequeno trecho dão mostra de quanto a autora nos facilita a compreensão do pensamento nietzscheano, incluindo o tão discutido sentido do niilismo. Nietzsche defende ardorosamente a “afirmação da vida”, “o desafio do instante” a ser vivido.
Vale a pena conferir Nietzsche Hoje, de Viviane Mosé.
sábado, 3 de outubro de 2020
O certo e o errado
Primeiro foi “Por que torço para que Bolsonaro morra”; depois veio “Vender a Amazônia – seria boa ideia os gringos comprarem-na”; e ontem (2 out 2020), “Por que torço para que Trump não se recupere”.
Os três artigos foram publicados recentemente na Folha de S. Paulo e são de autoria de Hélio Schwartsman, por quem nutro profunda admiração, vou logo adiantando. O homem sabe pensar, é o que admiro nele, avis rara nos dias de hoje.
Hélio defende com vigor o Consequencialismo, e explica mais uma vez a filosofia que abraça, na coluna de ontem:
“Na ética consequencialista, que a maioria das pessoas abraça, desde que os problemas sejam apresentados de forma abstrata e sem nomes, ações são valoradas por seus resultados. Se há um trem desembestado prestes a atingir um grupo de cinco que caminha sobre os trilhos e existe a possibilidade de um agente acionar um dispositivo que desvia o comboio para um ramal no qual se encontra um único passante, cerca de 90% das pessoas dizem que puxariam a alavanca, salvando quatro vidas.”
“Desde que os problemas sejam apresentados de forma abstrata e sem nomes”, afirma o mesmo Schwartsman. Mas não é o que ele vem fazendo nas crônicas anunciadas, em que cita nominalmente Bolsonaro, Trump e a Amazônia, particularizando assim seu modo de pensar.
Desejar a morte de alguém me parece intensa manifestação de ódio, difícil de ter o apoio de alguma escola filosófica. Porém não há ódio nas palavras de Schwartsman, é preciso reconhecer isso. Ele defende uma ideia usando apenas a razão, deixando de lado os sentimentos. É o que me parece.
Errado mesmo é o “trem desembestado”.
Gosto de acompanhar o modo livre de pensar de Schwartsman, admiro a coragem dele, leio as críticas a ele endereçadas, algumas plenas de ódio, e concluo ao afirmar que o grande valor do filósofo é pensar e fazer pensar. (Há quem pense que o Hélio está precisando de umas férias...)
Deixemos de lado o certo e o errado.
quinta-feira, 13 de agosto de 2020
Pensar a Moral
O psicanalista Contardo Calligaris publicou há 8 dias (5 ago 2020) artigo instigante na Folha de S.Paulo, ao relacionar moral e fé religiosa.
Informa Calligaris: “O Pew Research Center acaba de publicar uma pesquisa em que indivíduos de 34 países, geográfica e culturalmente diversos, responderam à pergunta: “É preciso ser religioso para ter moralidade.”
O resultado da pesquisa revela que “a ideia de que só há moralidade graças à religião prospera nos lugares de menor desenvolvimento econômico e cultural — entendendo por “desenvolvimento” cultural a proximidade com as ideias da modernidade ocidental.”
Eis alguns dados pinçados por Calligaris:
Na Indonésia e Filipinas, 96% estão convencidos de que não há moral sem religião.
Espanha e Itália, berços do catolicismo, ficam em 23% e 30%.
França, grande pátria da modernidade, 15%.
Estados Unidos: 54% respondem que é possível sermos morais sem religião, e 44% pensam o contrário.
Os menos convencidos são a Suécia: 9%.
No Brasil e África do Sul, 84% pensam que a religião é a condição da moralidade, logo atrás da Nigéria e do Quênia.
Completa Calligaris: “A modernidade recusa a ideia de que os valores morais estão fora da gente — numa escrita sagrada ou nas palavras do camarada Stálin, do pastor, do padre, do papa ou do PCC, tanto faz. A modernidade é contra a elevação dos braços para convidar o rebanho a adorar, e pouco importa que a gente levante uma hóstia, uma Bíblia ou uma caixa de cloroquina — para a modernidade, o gesto de levantar os braços pedindo adoração é imoral em si. Para a modernidade, a fonte da moralidade está na gente. Ela não se mede na conformidade a mandamentos externos. Ela é uma responsabilidade de foro íntimo.”
Ao aceitar “liberdade moderna”, o homem assume a responsabilidade daquilo que é a moral para cada um de nós; “procurar o certo e o errado na conformidade com prescrições (divinas ou terrenas, tanto faz), isso é sempre o mais imoral dos atos”, resume Calligaris.
Tudo parece muito bem posto pelo conhecido psicanalista. Até que ontem o mesmo jornal publica crônica de Hélio Schwartsman, De onde vem a moral?, em resposta à provocação de Calligaris.
Segundo Schwartsman, “De fato, não há boçalidade muito maior do que imaginar que não exista moralidade fora da religião. Acho até que podemos radicalizar o argumento. Não há nada mais imoral do que a moral diretamente extraída das Escrituras, que nos autorizam a vender filhas como escravas (Ex. 21:7) e nos obrigam a matar gays (Lv. 20:13).”
Prossegue o filósofo: “Acredito, contudo, que a moralidade seja um fenômeno com fortes componentes externos (situacionais). Ela é forjada na teia de relacionamentos sociais que mantemos com nossos semelhantes.” ...
Para Schwartsman, “A moralidade é a solução encontrada pela evolução para compatibilizar os impulsos egoístas do indivíduo e a necessidade de reduzir conflitos dentro do grupo. Essa permanente tensão entre bichos que são ao mesmo tempo rivais e aliados desemboca em emoções e sentimentos socialmente relevantes como inveja, raiva, gratidão, compaixão, vergonha, culpa, que são a tabela periódica com a qual cada sociedade constrói seu código moral.”
É possível pensar que as ideias aqui expostas se complementam. É Igualmente razoável admitir que uma pessoa profundamente religiosa – e que pensa com liberdade – seja capaz de reconhecer naquele que não crê a moralidade perfeitamente estabelecida. Penso que a tal “modernidade” deve implicar necessariamente liberdade de pensamento e expressão, e acima de tudo, tolerância para com aquele que pensa diferente.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2020/08/de-onde-vem-a-moral.shtml