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sábado, 11 de fevereiro de 2023

    A artista dos oceanos


    Quando a Paula passou no vestibular da UnB para Comunicação, começava uma jornada em direção a um futuro que certamente ela jamais imaginou. Passou de primeira contra as expectativas do pai: essa menina dorme demais, como é que vai entrar para a faculdade? Lá estava ela com seu jeito low profile de ser. A Paula é para dentro, fala discretamente, não faz mexericos. Ela pensa e planeja a própria vida, sempre com uma lista de objetivos que vai alcançando com muito método e trabalho. 
Desde cedo já tinha uns estágios remunerados. Econômica até o último fio de cabelo, só trocava o sapato por um novo quando o velho meio que furava. Não é exagero! De início escreveu no jornal da própria faculdade, depois editou junto com o pai o jornal do Hospital Universitário. Foi jornalista do Correio Braziliense, o jornal da capital da República. Sempre inquieta, movida por forte sentimento de independência e liberdade, ela criou a  própria empresa de publicidade que há pouco completou 20 anos de existência. Não é pouco! Não tem sócios, a empresa é ela e seus funcionários que comanda com inteligência, planejamento, firmeza.
    Não sei até que ponto influenciada pelo gosto de seu pai ou por puro interesse pessoal, logo cedo na faculdade foi estudar fotografia. Fotografou em preto e branco, aprendeu revelação em papel (tem quanto tempo isso???). Foi também graças a sua constante inquietação que considero saudável, porque não se acomoda, porque ousa, porque não se intimida diante de dificuldades mas ao mesmo tempo não avança além de suas possibilidades, que a Paula mudou de rumo. E mudou porque tem coragem para desbravar o novo, aprender, trabalhar muito, mergulhar concreta e simbolicamente nos seus projetos. Encontrou debaixo da água um mundo que lhe acolheu melhor e que trouxe, penso eu, outro sentido a sua vida e com ele novos desafios e lá vai outra lista de objetivos! 
    Agora estava lá do outro lado do planeta. Graças a sua arte, porque é assim que hoje denominamos a Paula, jornalista de formação, publicitária de profissão, depois mergulhadora amadora, profissional em seguida, Artista. Assim mesmo, com maiúscula, porque figura entre um seleto grupo de premiados fotógrafos subaquáticos. Ministra cursos, ganha concursos, tem suas fotos publicadas internacionalmente. A Paula é f. A atual viagem foi um prêmio por seu trabalho. No exótico conjunto de ilhas da costa da Indonésia chamado Raja Ampat (quatro reinos no idioma Bahasa, língua oficial da Indonésia) Paula olhou com seu jeito muito próprio de enxergar o que muitas vezes nem parece estar ali. Observou, reparou e registrou para deleite de nossos olhos a vida em águas tão distantes. Certamente traz imagens que lhe valerão outros tantos prêmios. 
    O André ficaria de início um pouco mais careca de preocupação, mas seguramente cheio de orgulho por essa pessoa que é a Paula Vianna! E hoje é aniversário dela: parabéns Paula!




Esse foi o veleiro onde a Paula viveu por uma semana, ou não, já que passava mais tempo mergulhando do que a bordo.



Paula tendo ao fundo a paisagem inacreditável de Raja Ampat.

sábado, 13 de agosto de 2022

O LUTO E A TORTA DE MAÇÃ

 

            O luto é o tempo da saudade, das lembranças, da solidão, do remorso, por vezes do desespero. A mente retorna à experiência de uma vida muito compartilhada numa conversação aberta, fértil troca de ideias e pensamentos expostos sem censura. Um ou outro desejo silenciado. É essa a tessitura da convivência harmônica. A vida transcorreu como se as ameaças cotidianas fossem unicamente vislumbres de um futuro muito, muito distante. Mas elas estavam lá sempre à espreita.

            Remorso não tenho das palavras atravessadas, do que poderia ter sido dito, de desculpas nunca verbalizadas. Não almejando a perfeição fui até onde consegui. O que me mortifica são as tortas de maçã que deixei de fazer. Numa gaveta da geladeira ficaram cinco maçãs verdes à espera de uma torta que foi sendo adiada. Foram ficando. O desinteresse pela vida contagia. Cozinhar para que? Qual é mesmo o sentido de acordar de manhã, se arrumar para o trabalho, tomar café (que difícil que desce esse café!), dirigir até o trabalho, escutar histórias banais tidas como trágicas, escutar histórias trágicas e prescrever um analgésico para dor de garganta? Então é disso que se trata estar vivo? É!

Hoje celebramos o dia dos pais com três pais ausentes: dois mortos e um distante. Todos muito importantes para as quatro filhas que aqui estamos. Cada um a seu modo absolutamente insubstituível como é natural que seja. Hoje a torta de maçã foi ao forno e sem falsa modéstia estava perfeita. Não poderei jamais e nem quero saber se minimamente se aproximou daquela feita pela mãe, aquela da memória afetiva. Por vezes tentei inovar: sem tampa, com creme de gemas, tarte tatin. Nenhuma convenceu: “eu gosto de torta com recheio massa em cima e em baixo.” Para os entendidos está dito. Que arrogância que é tentar competir com mãe! 

Gostava muito que você estivesse aqui comendo essa torta que foi feita para você, André. Servi um vinho italiano no almoço, fiz um churrasco de bife ancho muito bom, tomates, cebolas e abobrinhas assados na brasa como você gostava! E preciso contar que a Gabi está linda com o cabelo cortado curto e pintado de ruivo. Está a cara da Shirley MacLaine quando muito jovem, mas não pode falar que ela fica encabulada. As meninas estão com saudades e eu também. “Com açúcar e com afeto..."

domingo, 26 de junho de 2022

A vírgula e o buraco negro

Após longo período de silêncio sinto irresistível vontade de escrever. É que a cabeça anda vazia, os miolos consumidos pela doença, e desse oco não pode sair nada mesmo. Minha cabeça virou um buraco negro.

            Mas o desejo de escrever persiste, forte, autoritário, uma necessidade, ou mais que isso, uma ordem. Mas as ideias? Rosa Montero vem em meu socorro com seu novo livro A Boa sorte (Todavia, 2022). Meu improvável leitor não espere texto crítico sério, qualquer consideração literária de peso, mesmo porque a autora é das melhores que há nesta quadra, dona de escrita contemporânea privilegiada, livre de ranços e passadismos. (Se é para escrever puta, ela escreve puta.) Quase perfeita!

            Eu desejo apenas tocar num assunto do qual tenho me ocupado por longo tempo: o problema da vírgula. Que eu saiba, apenas Marcel Proust soube utilizar a vírgula com propriedade. Nem Machado, ouso dizer. (Isso veio do buraco negro.)

            Não sei por quanto tempo vou aguentar sentado diante do computador. Passemos sem perda de tempo à frase de Montero, à página 12.

 

“A maioria das lojas está fechada, e o fechamento deve ter ocorrido noutra era geológica.”

 

            Frase perfeita, dirão os leitores normais. Simples, clara, com arremate cheio de humor. De fato, não se pode apontar erro de qualquer espécie. Pergunto eu: para que essa vírgula? Peço que o leitor leia em voz alta a alternativa que ofereço:

 

“A maioria das lojas está fechada e o fechamento deve ter ocorrido noutra era geológica.”

 

            A ideia da autora é que a maioria das lojas está fechada há muito tempo. (Pois faz muito tempo que o povoado entrou em franca decadência.) A ideia é una, indivisível, o que vem depois da vírgula é inseparável daquilo que vem antes. A quebra da ideia por uma vírgula desnecessária enfraquece a frase. Não está errado, mas a ideia perde força. E uma ótima escritora deve manter a força de suas ideias e de sua escrita, se possível durante todo o livro.

 

            Tenho perfeita consciência da insignificância do texto acima, a não ser para os obcecados pela vírgula, como eu. Mas era tanta minha vontade de escrever! (Outra vez a Escrita Terapêutica.) De uma cabeça vazia, o que mais poderia sair? Apenas uma vírgula.

            Dois últimos comentários. Ao chegar à página 50, do total de 250, estou encantado com o livro. Ótima literatura, com destaque para a vívida construção e apresentação das personagens. Acho que vai continuar bom até o fim. Rosa Montero é uma craque; o leitor não perca seu livro anterior: A ridícula ideia de nunca mais te ver. (Alguém pode perguntar: se a leitura estava tão interessante, por que interrompê-la para escrever essa bobagem sobre uma ínfima vírgula?  Minha resposta é que UMA VÍRGULA É UMA VÍRGULA, É UMA VÍRGULA, É UMA VÍRGULA.)

            O segundo comentário refere-se à capa do livro. Poucas vezes vi coisa tão horrorosa. Portando, meu conselho é: não deixe de comprar um livro por causa da capa.

 

quarta-feira, 27 de abril de 2022

A educação de Montaigne




Michel de Montaigne 


 

O caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo publicou no último fim de semana (23 abr 2022) texto reproduzindo a aula magna proferida pelo empresário Luiz Frias, Publisher da Folha, no último 7 de abril, Dia do Jornalista, na Faap. A aula é magnífica, mas destaco aqui apenas o trecho em que Frias fala da educação recebida por Montaigne. O tema há de interessar a todos nós.

 

“Planejei comentar três sugestões/palpites práticos para a formação de futuros jornalistas e profissionais de mídia e comunicações e terminar com algumas considerações sobre tecnologia, a abundância e a disponibilidade de informações propiciadas pela rede, algumas palavras sobre fake news e sobre a importância do jornalismo profissional daqui para a frente.

Gostaria de começar falando um pouco sobre Montaigne. Não a avenida luxuosa e famosa de Paris, mas o pensador renascentista francês Michel de Montaigne. Ele nasceu em 1533 e morreu em 1592, vivendo, portanto, 59 anos. Sua existência transcorre no auge do Renascimento e num mundo recém-transformado pelas grandes navegações e pelo descobrimento das Américas.

Como referência, Montaigne estava a dez dias de completar 31 anos quando Michelangelo Buonarroti morreu. E nasceu quase 14 e 13 anos após as mortes de Leonardo da Vinci e Raphael (Sanzio), o pintor, respectivamente. Teve grande influência sobre numerosos autores do Ocidente, como Shakespeare, Descartes, Voltaire, Darwin, Marx, Emerson, Foucault, Nietzsche e Freud, entre outros. De família próspera, seu avô fez fortuna como comerciante de arenque, e seu pai foi prefeito de Bordeaux.

Mas o que gostaria de destacar é a educação sui generis de Montaigne, planejada e executada em detalhe por seu pai. Logo que nasce, é levado para uma pequena cabana, onde vive seus primeiros três anos exclusivamente na companhia de uma humilde família camponesa, de modo a, nas próprias palavras de Montaigne, "atrair o menino para perto das pessoas, e das condições de vida dessas pessoas, que necessitam de nossa ajuda".

Após esses três primeiros anos de vida espartana, Montaigne é levado de volta para o château do pai. Dos 3 aos 6 anos, a educação do menino é atribuída a um tutor alemão, especialmente contratado pelo pai, um doutor que não falava uma palavra em francês, mas fluente em latim, com o objetivo de fazer dessa língua seu primeiro idioma.

O pai também admitiu outros dois auxiliares que falavam latim, com ordens estritas para apenas se dirigirem à criança nessa língua. A mesma regra era respeitada pelos pais da criança e pelos funcionários que ali trabalhavam. Só a partir dos 6 anos é que Montaigne começa a falar e estudar o francês.

Outra curiosidade engendrada pelo pai foi acordar a criança todos os dias com música tocada ao vivo. Diz Montaigne no ensaio "Sobre a Educação das Crianças": "Quanto ao grego, meu pai tencionou que eu o aprendesse metodicamente. Mas de um jeito novo, de forma de brincadeira. Ele fora aconselhado a me fazer apreciar a ciência, mas sem forçar minha vontade, meu desejo; e a educar minha alma com doçura e liberdade, sem rigor nem coação. Alguns pretendem acordar crianças de manhã aos sobressaltos e com violência perturbar seu tenro miolo, meu pai chegou a mandar me acordar ao som de um instrumento, e nunca fiquei sem alguém que me prestasse esse serviço".

Ter como primeira língua o latim facilitou a Montaigne, leitor voraz, ler os clássicos gregos e romanos e colocou a sua disposição a maior biblioteca disponível na época. E nos leva a especular se Montaigne, sem essa peculiar formação, poderia ter escrito os "Ensaios", sua única obra, de três volumes e aproximadamente mil páginas.

Aos 38 anos (lembrando que naquela época poucos ultrapassavam os 40), resolve afastar-se de seus compromissos públicos e delega a administração de seus bens a terceiros. Dentro de uma torre de sua propriedade no château que herdara do pai, Montaigne instala sua impressionante biblioteca e seu quarto. Ali trancado a maior parte do tempo, dedica seus últimos 20 anos de vida à leitura de livros e à redação dos ensaios.

"Nunca viajo sem livros, seja em tempos de paz ou de guerra. Livros, creio, são a melhor provisão que um homem pode levar na jornada de uma vida." Com essa frase de Montaigne, elenco minha primeira sugestão na formação de qualquer jovem e, em particular, daquele que almeja ser um jornalista ou trabalhar no mundo das comunicações. Leia muito. Leia tudo o que possa despertar seu interesse. Não há como aprender a escrever bem sem escrever, mas ler ajuda muito a escrever bem. Em mais de 40 anos nesse negócio, nunca vi ninguém escrever bem, com inteligência, clareza, objetividade e estilo, que não fosse um leitor compulsivo. Escreva sempre e muito, mas leia muito mais do que escreva.  (Grifo meu.)

E, se for em português, leia Machado de Assis, aconselhava Cláudio Abramo, grande jornalista brasileiro, talvez um dos mais influentes jornalistas, tanto na história da Folha como na do Estado de S. Paulo.”

 

            No início de século XVI, o pai de Montaigne sabia como educar uma criança. Os resultados comprovam a eficácia de seu método. E hoje, o que sabemos sobre isso? O que praticamos sobre isso? Vale a pena refletir.

 

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/04/apartidarismo-e-base-para-jornalismo-critico-e-independente-diz-publisher-da-folha.shtml

 

domingo, 24 de abril de 2022

É isto um juiz?

 


Alfredo Ceschiatti



O ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, votou pela condenação à prisão de Daniel Silveira (PTB-RJ). Detentor da sagrada posição de ministro ‘terrivelmente evangélico’, este seu voto causou rebuliço entre os apoiadores evangélicos, que reagiram à altura, especialmente no Twitter. 

            Até aqui, nada demais, num país como o Brasil. O espanto aumenta com a reação imediata do ministro:

            – “Diante das várias manifestações sobre o meu voto ontem, sinto-me no dever de esclarecer...”

            Pasmem, ele disse isso pelo Twitter! É o veículo de expressão escolhido pelo ministro do Supremo para se comunicar com seus ‘seguidores’ (falaremos disso mais adiante). Ele se sentiu no dever de justificar seu voto! Está inaugurada uma nova era na Justiça Brasileira: agora ministros do Supremo precisam justificar seus votos para a sociedade, ou parte específica dela. Isso deve complicar muito a vida dos ministros, pois na hora de votar, eles devem se perguntar, Como vou explicar isso amanhã?

            Mas isso é só o começo, caro leitor. Vamos aos esclarecimentos que o ministro tem o dever de apresentar, e que ele próprio dividiu em dois itens:

 

“Diante das várias manifestações sobre o meu voto ontem, sinto-me no dever de esclarecer que: [a] como cristão, não creio tenha sido chamado para endossar comportamentos que incitam atos de violência contra pessoas determinadas; e…”

 

            Como cristão, assim vota o ministro! Ele não se pauta, antes de tudo, pela Constituição Brasileira, da qual o Supremo Tribunal Federal constitui o guardião. Ele se pauta pela Bíblia. Mas há uma atenuante, no segundo item declarado pelo ministro:

 

“[b] como jurista, a avalizar graves ameaças físicas contra quem quer que seja. Há formas e formas de se fazerem as coisas. E é preciso se separar o joio do trigo, sob pena de o trigo pagar pelo joio. Mesmo podendo não ser compreendido, tenho convicção de que fiz o correto.”

 

            Ah! ele também se constitui de uma parte jurista, ainda bem. Porém, a justificativa apresentada é mais que pífia, é reles, ridícula, canguinhas: “Há formas e formas de se fazerem as coisas.” Que saber jurídico, senhores! Trata-se praticamente da reencarnação de Ruy Barbosa. Imediatamente após a frase luminar, o ministro acrescenta: “E é preciso se separar o joio do trigo, sob pena de o trigo pagar pelo joio.” Ele não se aguenta, não pára em pé sem o suporte do Livro Sagrado, seu guia fundamental (ou fundamentalista?), citando a conhecida parábola bíblica contada por Jesus, segundo o evangelho de Mateus (13: 24-30).

Resta comentar o parêntese entreaberto no texto acima, a respeito da possível existência dos tais ‘seguidores’. Causa estranhamento que um ministro do Supremo tenha seguidores. O que vem a ser isso? Eles seguem a pessoa do juiz, espécie de guia espiritual? Obedecem à religião pregada pelo ministro, em busca de uma verdadeira teocracia?  Sim, é isso mesmo que está ocorrendo, são de carne-e-osso os fanáticos seguidores que afinal o colocaram na Suprema Corte, tendo como ilustre adoradora a primeira-dama do país. 

Para concluir, é certo que o ministro conhece do assunto muito mais que este pobre blogueiro, mas não custa lembrá-lo, está no seu Livro Guia: “Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro” (Mateus 6:24-33). Em português mais claro, não se pode servir a Deus e ao Diabo! 

 

domingo, 10 de abril de 2022

Banditismo evangélico segundo Marilene Felinto

 

A crônica de hoje para a Folha de S. Paulo (9 abr 2022) recebeu o sugestivo título: Banditismo evangélico corrói na surdina instituições republicanas – Enquanto minha mãe se põe a morrer, encolhida e ainda crente, minha raiva de pastores falsários se avoluma. Escrito por mulher inteligente, lúcida, corajosa, o texto é daqueles que entram para a História de nossa República.

Marilene confessa que escreve “cheia de raiva desses evangélicos”. No instante em que escreve, sua mãe agoniza em um leito de hospital. Ela fora criada frequentando a Assembleia de Deus, e já “reconhecia há tempos que a promessa evangélica de paraíso carrega uma nódoa de falsidade, indecência, exploração e trapaça”; “desiludida, a mãe mudou-se para a Metodista e depois para a Batista”. Crítica de todas elas, ficou com sua “própria Bíblia”.

Marilene agora diz o que sente: “Eis que a farsa já pode receber o nome de fraude, de banditismo. Banditismo evangélico. ...O banditismo grassa de norte a sul, faz negócios no balcão da promiscuidade entre política e religião evangélica. A recente revelação de que o demitido ministro da Educação, o pastor presbiteriano Milton Ribeiro, fazia tráfico de influência com recursos públicos da pasta já não seria o bastante para indiciá-lo por crime? Indiciar a ele e a seu superior imediato, o fascista Jair Bolsonaro.”

         O áudio que todo mundo ouviu dizia que "Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim", afirma o Ministro.

         As negociatas eram lideradas por dois pastores da Assembleia de Deus, Gilmar Santos e Arilton Moura, acusa Marilene Felinto. E ela prossegue: “O banditismo evangélico vai corroendo na surdina as instituições republicanas, cagando em cima de uma Constituição supostamente laica. Ora, o ethos político e o ethos moral são diferentes, ressaltam os estudiosos do tema, "e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder". Mascarados, criminosos, bandidos. Pois esses moralistas, esses fascistas vestidos de pastores serão vetados!”

         “Enquanto minha mãe se põe a morrer”: assim a jornalista e escritora resume a situação da própria mãe, enquanto tudo isso acontece! E exprime uma mágoa enorme: “Perder mãe é ver perder-se um pouco de todo o resto. Naquela infância evangélica, ao menos um pai ateu nos esperava em casa, fazia o contraponto. Amém.”

*


         Antes de tudo, é preciso respeitar os sentimentos de Marilene Felinto. É a frustração de uma vida inteira, ao ver a mãe iludida e aprisionada por uma igreja após outra, pelas promessas vãs de um pastor após outro, e morrer só, com a “própria” Bíblia.

         Esta é a história dos evangélicos que hoje dominam a política no Congresso Nacional, nos meandros insondáveis do Poder Executivo, chegando mais recentemente ao Supremo Tribunal Federal, para constrangimento do país.

         A mãe de Marilena representa milhares de mães, pais, famílias inteiras, todos iludidos pela promessa de um lugar no Paraíso, a custo de muito dinheiro. Este dinheiro alimenta e faz crescer o poder desses evangélicos a que Marilene se refere, que se atrevem a desvirtuar as funções mais nobres da administração pública, saqueando os Ministérios da Saúde e da Educação, logo os mais importantes, amputando assim a possibilidade de crescimento e desenvolvimento das novas gerações.

         Obrigado Marilene Felinto, por sua manifestação de resistência.

 

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilene-felinto/2022/04/banditismo-evangelico-corroi-na-surdina-instituicoes-republicanas.shtml

 

 

terça-feira, 5 de abril de 2022

Doraibu mai kā ou Drive my car

 

 

 

Doraibu mai kā, ou Drive My Car é um épico japonês com 3 horas de duração. Minha tentativa será a de resumi-lo aqui, após tê-lo visto numa noite, e revisto no dia seguinte, tantas as emoções que em mim despertou. (Até o momento, na plataforma MUBI.)

            Mais uma vez ficção e realidade se entrelaçam a ponto de se tornarem indistintas, com um olhar extremamente humano e com o “tempo” dos orientais, muito lento, repleto de detalhes tão pequeninos que talvez seja necessário mesmo ver o filme várias vezes.

            A direção é de Ryûsuke Hamaguchi, roteiro de Ryûsuke Hamaguchie e Takamasa Oe. Elenco: Hidetoshi Nishijima, Park Yu-rim, Reika Kirishima, Tôko Miura. São nomes que me soam pouco familiares, nem sei como pronunciá-los, porém, ao final, são pessoas que eu gostaria de conhecer, conversar com elas. A informação de que disponho é a de que Hamaguchi e Oe se basearam em diferentes contos do escritor japonês Haruki Murakami para escrever o roteiro.

       Hamaguchi acredita que histórias salvam vidas, e enumera cuidadosamente personagens que aos poucos vão revelando suas histórias pessoais. No princípio, Oto, a esposa do diretor e ator de teatro Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) cria histórias (e assim sobrevive) após ter relações sexuais com diferentes parceiros e com o próprio marido, responsável por anotá-las.

       Com a morte de sua mulher, Kafuku se muda de Tóquio para Hiroshima e se entrega de corpo e alma a uma nova montagem da peça Tio Vanya, de Anton Tchekov. As experiências de vida recentes de Kafuku se misturam com as relações que ele desenvolve durante o ensaio da peça, principalmente com o galã Takatsuki (Masaki Okada), ex-amante de Oto. 

        O mesmo ocorre com a atriz surda Lee Yoo-na (Park Yu-rim), a única sul-coreana no elenco, que ensaia originalíssima comunicação através da linguagem de sinais com o diretor, os colegas de teatro e com o público. Considero este um dos pontos altos do filme.

        Porém, a relação mais impactante ocorre com a motorista Misaki (Tôko Miura), exigência feita pelos administradores para que Kafuku pudesse trabalhar; ele é obrigado, muito a contragosto, a ceder o carro antigo de estimação à motorista. Ao final do filme, conhecemos os dramas vividos por Misaki, motorista desde adolescente.

        Cada uma dessas personagens se esmera em contar suas próprias histórias, e de como chegaram até aquele presente momento de suas vidas, agora entrelaçadas a outras personagens. A totalidade delas, as histórias, é contada dentro do carro, quando Kafuku se desloca de um lugar a outro. (Uma das exigências de Kafuku aos administradores foi a de que sua moradia ficasse a uma hora do teatro, local dos ensaios diários, para que durante o trajeto ele pudesse repassar os textos.)

        Durante os ensaios, os dramas pessoais de cada um se mesclam com a história de Tio Vanya. Ficções que dão forças para essas pessoas seguirem adiante, encarando não só o trauma da realidade já vivida, como também a incerteza do que está por vir.

             Ao final, o expectador será capaz de apontar a personagem com quem ele mais se identifica. Detalhe de menor importância é o fato de Drive my car ter ganho o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2022. É o Filme que valoriza o Prêmio, não o contrário.

             Um filme inesquecível, para ser revisto de tempos em tempos.

segunda-feira, 28 de março de 2022

Vendilhões do Templo segundo Saramago

 100 anos de José Saramago

 

O trecho a seguir, de autoria de José Saramago, está em O Evangelho segundo Jesus Cristo (Companhia das Letras, 1991, p. 425-426):

 

“Chegados às portas da cidade, logo se viu que maiores diferenças de variedade e número na multidão não as havia, e que, como de costume, iam ser precisos muito tempo e muita paciência para abrir caminho e chegar ao Templo. Não foi assim, contudo. O aspecto dos treze homens, quase todos descalços, com os seus grandes cajados, as barbas soltas, os pesados e escuros mantos sobre túnicas que pareciam terem visto o princípio do mundo, fazia afastar a gente amedrontada, perguntando uns aos outros, Quem são estes, quem é o que vai à frente, e não sabiam responder, até que um que tinha descido da Galileia disse, É Jesus de Nazaré, o que diz ser filho de Deus e faz milagres, E aonde vão, perguntava-se, e como a única maneira de o saberem era seguiram-nos, foram muitos atrás deles, de modo que ao chegarem à entrada do Templo, da parte de fora, não eram treze, mas mil, mas estes ficaram-se por ali, à espera de que os outros lhes satisfizessem a curiosidade. Foi Jesus para o lado onde estavam os cambistas e disse aos discípulos, Eis o que viemos fazer, acto contínuo começou a derrubar as mesas, empurrando e batendo a eito nos que compravam e vendiam, com o que se levantou ali um tumulto tal que não teria deixado ouvir as palavras que proferia se não se desse o estranho caso de soar a sua voz natural como um estentor de bronze, assim, Desta casa que deveria ser de oração para todos os povos, fizestes vós um covil de ladrões, e continuava a deitar as mesas abaixo, fazendo espalhar e saltar as moedas, com enorme gáudio de uns quantos dos mil que correram a colher aquele maná. Andavam os discípulos no mesmo trabalho, e por fim já os bancos de vendedores de pombas eram também atirados ao chão, e as pombas livres, voavam por sobre o Templo, rodopiando doidas, além, em redor do fumo do altar, onde não iriam ser queimadas porque havia chegado o seu salvador.” 

 

            O estilo é inconfundível, a agilidade com que as falas se sucedem é impressionante, isso é o melhor de Saramago. O tema, conhecidíssimo, é apropriado ao momento político que vivemos. Que eu saiba, este é o único momento em todo o Novo Testamento em que Jesus perde as estribeiras, deita fumo pelas orelhas, solta fogo pelas ventas, destrambelha, ensandece, descarrilha e desce o sarrafo nos que vendem e nos que compram, isso é muito importante!

            Vou desenhar, expressão em voga: O Templo é o nosso vilipendiado Ministério da Educação – casa destinada ao Ensino e à Cultura. Templo, porque de lá poderiam sair regras e normas capazes de salvar o Brasil – só a Educação salva um povo. 

            Os lobistas tomaram conta do Templo; barracas onde variados produtos de compra e venda se espalham por todo o ministério; negocia-se a peso de ouro, literalmente; os “pastores” exibem a sanha dos insaciáveis intermediários; o sumo sacerdote se esquiva de qualquer responsabilidade, diz que age a mando do presidente; desmente-se a si próprio no dia seguinte, estratégia para confundir, um tal de disse-não-disse que atordoa os de ouvidos moucos; são muitos os testemunhos de velhacaria; processos são abertos...

            

Deixemos a conclusão para José Saramago. Com a chegada de grande número de guardas do Templo, sob comando do sumo sacerdote, armados de espadas e lanças, os Treze ficaram em evidente desvantagem. Jesus adverte com sabedoria:

 

“Disse André para Jesus, que a seu lado brigava, Bem é que digas que vieste trazer a espada e não a paz, agora já sabemos que cajados não são espadas, e Jesus disse, No braço que brande o cajado e maneja a espada é que se vê a diferença, Que fazemos então, perguntou André, Tornemos a Betânia, respondeu Jesus, não é a espada que ainda nos falta, mas o braço.”

 

            Ao povo, falta-nos braço para brigar com os canalhas.

domingo, 27 de março de 2022

Ofir tocava piano!

10 anos do Louco 



Qual das netas sabia que o Vô Ofir tocava piano?! A música preferida dele, e nossa, minha e do Paulo, era La cumparsita
        - Toca pai, toca pai, mais uma vez... ainda me lembro.
        A casa, em Guaratinguetá, era de nossos avós, Breno e Cici, de nome Lucila. O quarto em que está o piano não era aberto às crianças. Visitas de gente importante ou conversas reservadas ocorriam naquele cômodo, que se abria para uma linda varanda, cercada de plantas.
        Havia uma estante localizada na parede oposta ao piano, com muitos livros do avô, incluindo o Tesouro da Juventude. Esta "enciclopédia" foi a fonte de informação e prazer durante toda nossa infância. Duas cadeiras de palhinha e uma escrivaninha pesada, de madeira escura, completavam o ambiente.
       Não posso identificar a figura no medalhão acima do piano, infelizmente.
           A Galeria de Família, espero eu, sirva de memória de um tempo muito distante, mas que vale a pena conhecer.   
       Minha homenagem aos meus avós e meu querido pai.


sábado, 26 de março de 2022

O labrador de Bruges




Em outubro de 2008 foi lançado no Brasil o ótimo filme In Bruges, com a estúpida tradução para o português, Na mira do chefe, sob direção e roteiro de Martin McDonagh. Todo o mundo viu, só eu que não fiquei sabendo. 

            Vi o filme muito tempo depois e fiquei ensandecido! A história era boa, uma comédia, os dois protagonistas ótimos atores, e Bruges, a oitava maravilha do mundo! Na viagem seguinte que minha mulher e eu fizemos a Paris, pedimos ao agente de viagem, nosso amigo, reserva para quatro dias em Bruges.

            – Vocês estão loucos! Tomem o trem em Paris bem cedo, almocem em Bruges, deem uma volta pela cidade e tudo estará visto. Regressem à tardinha.

            Passamos quatro dias em Bruges, e passaríamos oito dias em Bruges. Chegamos no dia do aniversário de Mercêdes; não foi difícil, mesmo debaixo de chuva, encontrar restaurante com ótima carne e deliciosas batatas fritas, a especialidade da cidade (do país?). 

            Tudo muito lindo! A história da cidade, de origem medieval, é interessantíssima. Tudo muito bem preservado. Mas o ponto alto (expressão muito usada por minhas filhas, quando pequenas, para expressar o melhor de um lugar, de qualquer boa experiência) do passeio era uma volta pelos canais que cortam toda a cidade. Lá pelas tantas, vejo no batente de uma janela um lindo labrador bege, a apreciar a paisagem. Era uma cena do filme, e lá estava eu, ao vivo, diante do cachorro! Me recordo da minha forte emoção. 

            Recomendei com entusiasmo ao meu irmão, com viagem marcada para a Europa, que não deixasse de visitar Bruges. Ele foi, e lá estava o cachorro. Hoje, muitos anos depois desses alegres acontecimentos, encontro no Twitter a fotografia do labrador (eu o havia fotografado, mas perdi a imagem). Fidel, era seu nome, morreu em 2016. 

       Fica a doce lembrança, expressa na fotografia. Hoje ele encima esta pequena crônica.

            

segunda-feira, 21 de março de 2022

Jargão ondiniano?

 



A crônica do erudito Mario Sergio Conti para a Folha, no último sábado, trata do novo livro de Roberto Pompeu de Toledo, O Espelho e a Mesa. “O livro traz as memórias de infância de, como ele se descreve, um "rapaz singelo", nascido em 1944: o autor.” Parece muito interessante.

Conti prossegue: “... o ser singelo pertence à classe média oriunda de migrações europeias. Mas foi essa gente dura e orgulhosa, provinciana e com fumos de cosmopolitas, que construiu as atitudes associadas à condição paulista — dos caipiras aos modernistas.”

E chega ao ponto em que provoca em mim enorme surpresa, uma grande descoberta: “O livro está cheio de expressões desse meio: há males que vem para bem, "bocca chiusa", o barato sai caro, bater perna, o que não tem remédio remediado está, USP, não se faz isso na mesa, revolução constitucionalista.”

            O cronista segue falando do livro e seu autor, eu estaquei por aqui.

            Há muitos anos que eu e meu irmão Paulo conversamos – e rimos muito – das expressões utilizadas por nossa mãe, já falecida. São incontáveis modos de falar, expressões que ouvimos desde a infância até a idade adulta, e que julgávamos fossem criadas por ela, uma espécie de jargão ondiniano, cheio de humor, às vezes ácido, provocador, absolutamente único e pessoal. 

            Agora encontro na crônica de Conti os mesmos termos por ela empregados, segundo ele provenientes da classe média oriunda de migrações europeias, ... essa gente dura e orgulhosa, provinciana e com fumos de cosmopolitas”. A descrição não podia ser melhor!

É a Dona Ondina falando! Mais importante do que isso, é este o ambiente em que fomos criados, eu e meu irmão Paulo, nascidos em 1947 e 1949, vivendo entre caipiras e modernistas. Vou ler o livro.

 

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2022/03/roberto-pompeu-de-toledo-retrata-sao-paulo-de-novo-em-o-espelho-e-a-mesa.shtml

 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Da morte de um animal de estimação

 


Blimunda



A morte de um animal de estimação, cadelinha querida, pessoa especial que me acompanhou nos últimos sete anos, me fragiliza de tal maneira que faz aflorar em mim sentimentos ancestrais, do tempo em que a vida do homem era permanentemente ameaçada pela natureza bruta, agressiva, cruel, nada menos que ameaça de morte, de aniquilação. E este homem primitivo, desde os tempos imemoriais, implora por dois tipos de ajuda.

          A primeira e mais imediata solicitação é a presença do ser que se encontra mais próximo, humano ou mesmo animal, alguém que ao menos possa emprestar o calor do corpo e, se possível, alguma manifestação de afeto. Nada mais, nada menos, que a indispensável presença do outro, algo fundamental desde o nascimento.

          O outro apoio, há milênios, vem daquele de ser imaginário, superior e onipotente, capaz de proteger o homem da tenebrosa escuridão da noite, do rugir da tempestade, da devastação dos vulcões e terremotos, da besta-fera que também busca sobreviver. 

          Esse apelo por proteção e sobrevivência ressurge agora em mim, com a morte de um pequenino animal de estimação. Uma frase emerge súbita e intensa, inesperadamente pronta, acabada, vinda de algum lugar desconhecido – talvez do inconsciente mais antigo e profundo –, em forma de oração dodecassilábica:

          – O murmurar de uma fonte é a prece do ateu.

          Aqui estou eu, frágil desprotegido ameaçado pela ideia originária da morte, os sentimentos mais primitivos desencadeados por outra morte, a atestar minha permanente vulnerabilidade. Entretanto, posso pensar. Sofro, mas o sofrimento não mata. Posso então analisar a ideia que me vem como um presente. 

            O murmurejar da fonte é ouvido e sentido como carícia, afeto, calor de gente ou de animal. Em forma de prece, porque vem da pessoa que pede socorro. Porém, ela está intimamente ligada à palavra ateu, inexorável e definitiva, de alguém que já pode re-conhecer a própria fragilidade, admitir a finitude, dispensar – sem arrogância! – a proteção do onipotente e, por fim, admitir que está só no mundo, fator inerente à condição humana. 

            Sofro, posso sentir. A memória que me resta vem em meu auxílio e me informa que não há apenas dor. Permanecem em mim os momentos de felicidade propiciados pela convivência junto ao pequeno animal, que nada pedia além do alimento para a própria subsistência, e tudo ofertava. Essas preciosas lembranças estarão comigo enquanto eu viver. 

            Aos poucos, muito devagar, na medida do tempo geológico, o homem caminha, prossegue na saga da evolução das espécies.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Imagens de infância

À memória de meu pai



 

 

Criança pequena, talvez aos quatro ou cinco anos, ouvia meu pai dizer:

– Céu pedrento, chuva ou vento!

Durante toda minha infância matutei sobre esta frase. O pai a pronunciava olhando para o céu, naturalmente, e eu também olhava para o céu, na ânsia de compreender. 

Primeiro, me intrigava a palavra pedrento, que me soava feia, e ainda por cima colocada junto ao céu, um lugar tão bonito. Afinal, não era para lá que a gente ia quando morresse? Soava feia, mas penso que ainda não conhecia a palavra nojento, pior que feia, não sei, mas soava igual; de rima, isso eu não sabia. (Eu sabia do que sabia? E tudo aquilo que eu já nasci sabendo! Fora o que aprendia a cada dia – tudo na vida era novidade!)

Não demorou para que me ocorresse o significado de pedrento, embora ainda parecesse estranho. Pedras no céu? Nuvens de pedra? Como foram parar ali? Poderiam cair sobre minha cabeça?

De repente compreendi que se tratava de prenúncio – palavra que, sem dúvida, eu desconhecia. A chuva ou o vento chegariam com certeza se o céu fosse pedrento. Foi então que firmei convicção (infantil) que era a chuva ou o vento que já vinham se aproximando, quando o céu ficava pedrento. Uma descoberta e tanto!

Hoje, ao ver as fotografias desse tipo de céu, me ocorre que foi na tenra infância que comecei a prestar atenção nas palavras, gostar delas, procurar decifrá-las, mas ainda sem saber o que fazer com elas. (Até hoje não sei!) Desconfiei que elas tinham vida própria, mesmo ignorando como pedras foram parar no céu.

Foi assim que céu pedrento nunca mais saiu de minha memória e de minha vida. Meu pai também não.



 







Em Tempo: as fotos são de autores desconhecidos por mim.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Razão e emoção a partir do teatro grego

 

 

Das funções mais nobres da leitura, uma é a de provocar o leitor. Ela depende de dois fatores fundamentais: um bom texto, inteligente, de conteúdo instigador e boa forma literária, capaz de atrair aquele que o lê pela força da arte; em segundo lugar, o próprio leitor, se ele se deixa provocar, se preserva a curiosidade infantil e está aberto a novas ideias e especulações, se não se encontra cristalizado e imobilizado pelos ‘pré-conceitos’.

            Das formas mais eficientes de aceitar e elaborar a provocação contida numa boa leitura, uma é a de escrever sobre o que se leu e agora pode analisar, questionar, interrogar, aceitar, rejeitar ou duvidar do que se acaba de ler. Tal exercício, no mínimo, traz em si a capacidade de expandir entendimento, sentimentos e emoções, sobre o tema em questão.

            Adriane da Silva Duarte, professora de língua e literatura gregas na USP, faz a apresentação do livro O melhor do teatro grego (tradução de Mário da Gama Kury, Zahar editores, 2013), que contém as peças Prometeu acorrentadoÉdipo reiMedeia e As nuvens. Reproduzo aqui um parágrafo do belíssimo texto de Duarte:

 

“A emoção está no cerne da experiência dramática dos gregos. Platão e Aristóteles discorreram sobre o papel das emoções no teatro, especialmente no que toca à tragédia. Para Platão, buscar deliberadamente comover os expectadores, como fizeram, os tragediógrafos, é nocivo, pois enfraquece a parte racional da alma, debilitando o cidadão. Daí, entre outras razões, os poetas trágicos estarem excluídos da cidade ideal juntamente com os épicos. Já Aristóteles, embora tenha sido discípulo de Platão, compreende diversamente a questão. Para ele, o prazer da tragédia está em suscitar e purgar certas emoções, processo que ele denomina catarse. No caso da tragédia, essas emoções seriam o terror e a piedade, o que exigiria uma identificação entre o expectador e o herói trágico, de modo que aquele pudesse se colocar no lugar do último e temesse passar pelo que ele passa, apiedando-se dele, que sofre sem merecer. Desse processo, que Aristóteles não se digna a explicar na Poética, derivaria o prazer que sentimos ao contemplar obras de natureza artística.”

 

            “Buscar deliberadamente comover os expectadores” é o que chamei de provocação. A literatura faz isso magistralmente, mas não apenas a literatura; se dermos um salto para os tempos atuais, poderemos enfrentar o mesmo problema diante do cinema, tipo de arte de penetração extraordinária em todas as camadas sociais, e que por isso serve ao propósito deste texto quase ingênuo. 

            Há o filme e há o expectador. Por que existe o aficionado pelos filmes de terror? O que pretende ele ao desafiar o medo que as imagens lhe causam? (Porque se não causam, não faz sentido ver filme de terror...) Deseja apenas provar que é corajoso e valente? Ou se trata de desafiar as próprias emoções, na tentativa de dominá-las? 

            Há quem prefira ‘filme de amor’. Tipo sessão da tarde, daquele romantismo derramado que provoca suspiros e derrama lágrimas. Por que chorar diante da fantasia? Isso causa prazer ou dor? A emoção, represada, precisa transbordar? Para outros, serão lágrimas de enfado.

            Cinema de violência explícita e incontida faz sucesso mundo afora: são murros, tiros, rajadas de metralhadora, golpes de espada a transfixar o inimigo, jugulares esguichando suco de tomate, cenas horripilantes de tortura, tudo é apreciado a ponto da saliva escorrer pelo canto da boca de certo tipo de expectador. Para que? O que está a extravasar agora? Agressividade? Ódio? Ou é simplesmente a catarse aristotélica! Enquanto isso, “Alguns, achando bárbaro o espetáculo prefeririam (os delicados) morrer”, afirma Drummond em Os ombros suportam o mundo

            Filmes de suspense costumam ser apreciados, exceto pelos que não toleram sustos, seja porque prefiram a calma contemplativa, ou porque talvez vivam permanentemente assustados. As razões de tais preferências e aversões quase sempre nem o expectador conhece, bem guardadas no inconsciente de cada um. 

            O que todos ‘pré-sentem’ é a necessidade de aprender a lidar melhor com os próprios sentimentos e emoções. Para tal, há quem prescreva os clássicos da literatura; outros, a rodriguiana “vida como ela é”; ouvir Mozart ou Beethoven pode vir a ser um santo remédio; o cinema também serve, e muito – terminado o filme, é bom conversar sobre ele. Para os adeptos do bungee jumping, talvez seja necessária mesmo uma terapia.

            Estas são apenas algumas associações que me ocorreram diante das magníficas provocações de Adriane da Silva Duarte. Meu eventual leitor, pensa o quê?

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Seu Afonso, Sérgio Rodrigues e o anglicismo

 


Houaiss

 

De pouca gente me lembro com tanta afeição e carinho quanto de meu antigo professar de Português, Seu Afonso, como era chamado. Estávamos no final dos anos 50 e a escola era o renomado Instituto de Educação “Conselheiro Rodrigues Alves”, em Guaratinguetá, SP. 

            Seu Afonso era de um rigor insuperável. Somava, em sua caderneta, décimos e centésimos de pontos atribuídos ao desempenho dos alunos em atividades como leitura mensal de livro, o decorar semanal de um poema, as temidas redações, o comparecimento à sessão do Grêmio Literário, até chegar à nota final. (No início do curso ginasial ele me prestou o favor de me deixar em segunda época; no exame final, fui aprovado.)

            Aprendi com ele que não se devia fazer uso de anglicismos, ou de estrangeirismos de qualquer espécie. Ai de quem...

            Hoje voltei ao Houaiss, só para confirmar o uso de anglicismo: “acepção de determinada palavra de nossa língua que é exótica, em relação às acepções vernáculas registradas durante a sua evolução no português, por ter sido tomada recentemente de empréstimo ao inglês (p.ex.: dramático, no sentido de grande, assombroso, incrível, notável  [alterações dramáticas]; assumir, no sentido deter como certo, imaginar, admitir, supor, calcular, crer  [assumi que já havia conseguido o emprego]; realizar, no sentido de dar-se conta de, perceber [só então realizei o engano em que incorrera] etc.)”.  

            Até hoje gosto desse uso ‘purista’ da língua portuguesa, que Seu Afonso me ensinou a amar. Gostava. Hoje aprendi com Sérgio Rodrigues, mestre da Língua Brasileira, que as coisas não se passam bem assim. Em sua crônica Testei positivo para anglicismo, para a Folha de S. Paulo (12 jan 2022), ele afirma: 

 

“O fenômeno teve início alguns anos antes, mas a pandemia de Covid deu o empurrão que faltava para espalhá-lo pelo mundo, língua atrás de língua: a construção "testar positivo (ou negativo)", com essa sintaxe importada do inglês, é mais contagiosa do que a ômicron. Eu já sabia disso em tese, mas só depois de testar positivo para Covid, domingo passado, compreendi melhor a questão. Dar a notícia a um monte de gente – por escrito ou por telefone, meu isolamento é total – me fez ver que, entre outros parangolés como o imperialismo linguístico, está em jogo a economia expressiva. Ah, o abismo entre "testei positivo" (construção decalcada do inglês) e "fiz um teste e o resultado foi positivo" (construção respeitosa da sintaxe portuguesa) não parece tão grande?”

            

            E Sérgio (me considero íntimo dele, de tanto que o leio, daí este tratamento tipo assim “meu chapa”) arremata:

 

“... a funcionalidade de uma fórmula sucinta como "testar positivo" vai além da oralidade – a ponto de, como parece ser o caso, acabar falando mais alto do que o impulso de conservação das estruturas vernaculares. ...estamos em terreno difícil –mais do que polêmico, o tema é escorregadio, movediço. No fundo há uma única diferença entre o modismo estrangeirista bocó e o estrangeirismo que, maneiro e fecundo, logo deixa de ser percebido como tal: este pegou, aquele não.”

 

            Seu Afonso que me perdoe, mas quando a palavra “pega”, pega mesmo!    

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/

 

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

O canto livre de Nara Leão

 


 

O canto livre de Nara Leão é uma série documental recém produzida pela Original GloboPlay, de qualidade excepcional, que não pode deixar de ser vista por todos que viveram o início da Bossa Nova, e pelos que não viveram mas desejam conhecer aquele período fundamental da música popular brasileira. A magistral direção é de Renato Terra.

Os cinco episódios da série oferecem uma imagem quase completa de quem foi a mulher e a cantora Nara Leão (19 de janeiro de 1942 – 7 de junho de 1989), aquela que “não se deixava conduzir por nada nem ninguém”, nas palavras de Chico Buarque, compositor de destaque e amigo pessoal.

Dona de temperamento forte, a despeito da aparência (e da voz) frágil e timidez acentuada, ela tinha posições muito bem definidas tanto naquilo que desejava fazer como artista, quanto na participação da vida política do país. Nara enfrentou a ditadura militar como poucos, com desabrida coragem. Ela e os artistas da época acreditavam que podiam mudar o Brasil... e o mundo (!), através de suas participações culturais, em especial na música popular e no teatro.

Os cinco episódios da série se desenvolvem num ritmo quase lento, sem pressa, 

com fotos raras da adolescência de Nara, com o áudio da primeira apresentação em público da cantora, em 13 de novembro de 1959, na Escola Naval, no Rio de Janeiro. 

      A sequência de pessoas entrevistadas transmite com extrema fidelidade o clima reinante no início do movimento mais importante da música brasileira, a Bossa Nova, do qual Nara foi considerada a musa. Tais entrevistas aconteceram com Chico Buarque, Edu Lobo, Fagner, Maria Bethânia, Marieta Severo, Nelson Motta, Paulinho da Viola, testemunhas da personalidade marcante de Nara Leão. 

       Depois veio o rompimento com a Bossa Nova, desencadeada pela desilusão amorosa com o então namorado Ronaldo Bôscoli. Em seguida veio o estrondoso sucesso de A banda, que Nara cantou em companhia do Chico no festival de 1966. Interessante a participação de Fagner, Dominguinhos (1941 – 2013), Sidney Miller (1945 – 1980) e Nelson Motta.

Quero que vá tudo para o inferno é o título do quarto episódio de série, quando Nara resolve gravar músicas de Roberto Carlos e Erasmo Carlos e provoca irada reação dos puristas defensores da chamada MPB. Há quem defenda a ideia de que a MPB teria começado com o primeiro LP da cantora, em 1964, com músicas de Baden Powell (1937 – 2000), Cartola (1908 – 1980), Nelson Cavaquinho (1911 – 1986) e Zé Kétti (1921 – 1999). Importante depoimento de Maria Bethânia revela a participação de Nara junto à Tropicália. 

Fiz a cama na varanda é o quinto e sensacional episódio, quando os filhos de Nara – Isabel Diegues é consultora da série –, falam da mãe que recusava shows e entrevistas para ficar em casa em companhia dos filhos. Cacá Diegues, em depoimento emocionado, lembra que foi Nara quem o pediu em casamento e que decidiu ter filhos. 

Os depoimentos de Roberto Menescal, presente em toda a série e com participação decisiva na vida e música de Nara Leão, e dos filhos Isabel e José Bial, que Nara teve com Cacá Diegues, encerram o documentário de forma extremamente emocional. 

       Só resta dizer que Nara não morreu! E que O Canto Livre de Nara Leão é imperdível!


 

https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2022/01/08/nara-leao-ressurge-docil-e-indomada-em-serie-documental-sobre-a-vida-livre-da-cantora.ghtml

 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Contos morais de J. M. Coetzee

 


No Natal, os Anos de chumbo, de Chico Buarque; na entrada do ano novo, os Contos morais, de J. M. Coetzee. Chico publica seu primeiro livro do gênero conto; Coetzee é escritor de fama internacional, ganhador do Nobel de Literatura em 2003. De qualquer modo, vale a pena comparar estilos e escolhas de temas. (Minha opinião sobre Anos de chumbo está em

 http://loucoporcachorros.blogspot.com/2021/12/anos-de-chumbo.html).

            Vejamos o primeiro parágrafo do primeiro conto de Coetzee, O cachorro:


"A placa no portão diz Chien méchant e o cachorro é méchant mesmo. Cada vez que ele passa, ele se joga contra o portão, uivando de desejo de alcançá-la e despedaçá-la. É um cachorro grande, um cachorro sério, alguma espécie de pastor-alemão ou rottweiler (ela sabe pouco sobre raças de cachorros). Em seus olhos amarelos ela sente ódio do tipo mais puro brilhando para ela.”


      Em meu ponto de vista, este texto poderia estar no livro do Chico Buarque; tem a mesma crueza, que se prolonga pelo restante da narrativa. Rubem Fonseca também poderia ter sido o autor. Talvez Dalton Trevisan ou Sergio Sant'Anna. Esta é a literatura contemporânea, moderna no sentido de atual, que eu aprecio e muita gente detesta. Gostei de encontrá-la no primeiro conto do Coetzee, datado de 2017.

      O segundo texto, cujo título é Conto, de 2014, vai pelo mesmo caminho:

 

“Ela não sente culpa. Isso é que a surpreende. Nenhuma culpa.

Uma vez por semana, às vezes duas, ela vai ao apartamento do homem na cidade, se despe, faz amor com ele, se veste, sai do apartamento, dirige até a escola para pegar sua filha e a filha do vizinho.”


           A partir daí seguem-se os contos Vaidade (2016), Quando uma mulher envelhece (2003-2007), A velha e os gatos (2008-2013), Mentiras (2011) e O matadouro de vidro (2016-2017). Em todos eles, está presente a relação entre mãe e dois filhos, e esta mãe é ninguém menos que Elizabeth Costello, o alter ego do escritor. Estilo e conteúdo são outros, bem mais parecidos com a literatura anterior do sul-africano.            

           Há vinte anos eu e minha mulher éramos leitores assíduos de Coetzee; adorávamos a fala corajosa e incisiva de Elizabeth Costello em defesa dos animais (A vida dos Animais (1999) e Elizabeth Costello (2003) são livros preciosos!). Depois vem Desonra, livro assustador, talvez o melhor de Coetzee; seguem-se À espera dos bárbarosDiário de um ano ruimO homem lento, e muitos outros.

            Agora, é uma alegria reencontrar Costello, ainda vociferando a favor dos animais! A velha e os gatos é uma pequena obra-prima! Transcrevo o primeiro parágrafo para que meu eventualíssimo leitor note a diferença de estilo:

 

“Ele acha difícil aceitar que, para ter essa conversa comum, mesmo que necessária, com sua mãe tenha de vir até onde ela mora nessa aldeia atrasada do platô castelhano, onde se passa frio o tempo todo, onde o jantar que servem é um prato de feijão com espinafre, e onde, além disso, é preciso ser polido sobre os gatos semisselvagens dela que se espalham para todo lado cada vez que alguém entra na sala. Por que, na noite de sua vida, ela não pode se instalar em algum lugar civilizado?”


            Gosto muito desses longos períodos, mas há que deteste.

            Contos morais poderia ser criticado por uma possível falta de unidade entre os textos. Penso que não: a leitura é tão agradável, tão elegante, a alma do escritor desnudada por inteiro, os temas tão bem escolhidos, com destaque para o processo de envelhecimento do homem, que nada mais importa.

            Em O matadouro de vidro, título que mais parece ter saído de um conto de Kafka, Costello admite que a senilidade está avançando: “Eu não sou mais eu mesma, John. Está acontecendo alguma coisa comigo, com minha mente”. Parece não haver dúvida que Coetzee fala de si próprio. (O tema tem a preferência deste blogueiro, nos textos contidos em Diário da demenciação, no Louco por cachorros.)

       Um grande livro, sem dúvida!