terça-feira, 24 de março de 2020

Os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
                                                        [edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

                                                                                                      C.D.A.


Nota de Carolina Marcello, sobre o poema.

“Publicado em 1940, na antologia Sentimento do Mundo, este poema foi escrito no final da década de 1930, durante a Segunda Guerra Mundial. É notória a temática social presente, retratando um mundo injusto e repleto de sofrimento.
O sujeito descreve a dureza da sua vida sem amor, religião, amigos ou sequer emoções ("o coração está seco"). Em tempos tão cruéis, repletos de violência e morte, ele tem que se tornar praticamente insensível para suportar tanto sofrimento. Deste modo, sua preocupação é apenas trabalhar e sobreviver, o que resulta numa solidão inevitável.
Apesar do tom pessimista de toda a composição, surge um laivo de esperança no futuro, simbolizada pela "mão de uma criança". 
 Aproximando as imagens da velhice e do nascimento, faz referência ao ciclo da vida e à sua renovação.
Nos versos finais, como se transmitisse uma lição ou conclusão, afirma que "a vida é uma ordem" e deve ser vivida de forma simples, focada no momento presente.”


Contragolpe fatal

Para quem já estava sentindo falta do magistral microcontista Moisés Tito Lobo Furtado, aqui vai mais uma série, de 4 em 4.


Contragolpe fatal

Quando se via imobilizado pelo monólogo interminável de um tagarela, olhava nos olhos do rival e desferia a pergunta:
– Você acha isso bonito?



Usucapião

– Ouçam! Tudo ainda é meu e sou eu, principalmente o que perdi e o que não consegui ser.




Contato imediato

Entre a vertigem da queda inevitável e o chão, percebeu algo de bom lhe conduzindo.



Outro patamar

Aprendeu a vencer jogando mal.


                                            Moisés