sábado, 7 de junho de 2014

Mercado de flores

A foto do dia.


Flores dependuradas no teto do Mercado de flores em Amsterdam.



Fotos: A.Vianna, maio 2014.

Insólito pedido

Baseado em fatos reais.

Antes de morrer, pediu à mulher que seu corpo permanecesse no sofá da sala, as janelas abertas, para ser devorado pelos pássaros.

O alfandegário lusitano


Passar por uma alfândega em outro país que não o nosso traz sempre algum desconforto, mesmo quando não devemos nada a ninguém, ou não estamos fazendo nada de errado. O sentimento deve vir da infância, quando a mãe severa fazia no filho a rigorosa inspeção antes que ele saísse de casa para a escola – até as orelhas ela examinava, para checar que estavam limpas. Muita gente treme ao ver de longe um guarda de trânsito: agora, a culpa é do pai...
            Passar pela alfândega em Portugal traz outro fator de imprevisibilidade que pode perturbar o viajante. Embora não haja grandes problemas com a língua – às vezes não entendemos nada que os patrícios falam –, há o modo de pensar dos portugueses, muito particular, para dizer o mínimo. Há quem chame o fenômeno de a lógica portuguesa. Se você pergunta a um deles, Você tem horas?, ele responde , Tenho. E pronto, conversa encerrada. Coisa do gênero nos aconteceu quando por lá passamos no último mês de maio, minha mulher e eu.
            Depois de serpentear por uma boa meia hora na fila – ou é bicha? – da alfândega, chegou a nossa vez. O funcionário, rigorosamente fardado e blindado em sua caixa de vidro, olhou para os passaportes, olhou para nós, voltou a olhar para os passaportes, conferiu alguma coisa em seu computador, tornou a olhar para nós, e perguntou em tom grave:
            – Ficam em Portugal ou vão para algum outro país?
            – Vamos para Amsterdão, respondi em bom português local.
            O homem tornou a olhar para os passaportes, novamente consultou o computador, fez uma longa pausa e disse:
            – Vocês sempre viajam em maio, pois não?!
            Preciso confessar que durante alguns segundos nos vimos bastante atrapalhados. O que este homem quer dizer com isso? Está insinuando alguma coisa? Será que está se intrometendo indevidamente em nossas vidas? Ou apenas admirado, talvez com uma pontinha de inveja, porque sempre viajamos em maio.
Pensei, O que ele tem a ver com isso?
(Esta é uma pergunta interessante e que pode ser formulada interiormente de duas maneiras diferentes, e que precisa ser compreendida tanto por quem ouve como por quem fala. A primeira delas é a pergunta raivosa, desaforada, desafiadora, O Que Você Tem A Ver Com Isso?, como quem chama o outro para a briga, cheio de ódio. Pode até ser complementada com Seu filho da puta. O Que Você Tem A Ver Com Isso, Seu filho Da Puta?
O segundo modo de compreendê-la é que não se trata de pergunta malcriada, desaforada, odiosa, de quem toma satisfações com o interlocutor. Trata-se de pergunta genuína e sincera, O Que Você Tem A Ver Com Isso, Meu Amigo? Não é contra nós que a pergunta é formulada; o interlocutor apenas deseja se informar. Para quê, não sabemos. Aí está a questão! Se não sabemos, há uma boa chance de que inconscientemente a tomemos contra nós. Mais uma vez, reminiscências infantis...)
            Chega de psicologia, voltemos à checagem alfandegária. Quando recobrei alguma presença de espírito diante da insólita pergunta, arrisquei uma resposta, sem muita convicção:
            – O clima é bom em maio...
            – É, mas até a semana passada isto aqui estava um calorão dos infernos!, respondeu grosso o alfandegário.
            Lá se foi por terra minha desculpa para viajar em maio. Sem mais a acrescentar, permanecemos calados. O homem carimbou os passaportes, desejou-nos boas férias, e prosseguimos nossa viagem rumo a Amsterdam.
            O certo é que jamais saberemos a intenção daquele funcionário da alfândega portuguesa, se ele desejava saber mais alguma coisa, ou se apenas obedecia a tal “lógica portuguesa”, mas nos serviu para divertidas divagações ao longo de toda a viagem, e de mote para esta crônica.