sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O médico e a relação com seu paciente


    (Roteiro para discussão em grupo
com estudantes de Medicina)

            Muito se tem falado e escrito sobre a relação médico-paciente (RMP), quase que invariavelmente destacando-se a situação de fragilidade física e mental em que se encontra a pessoa que adoece. O que é bem verdade, e por isso mesmo, a exigir do médico enorme parcela de disponibilidade, também física e mental, para cuidar da pessoa doente.
            Terá o médico, em toda e qualquer circunstância, tal disponibilidade? Esta a abordagem deste pequeno texto, uma tentativa de observar a RMP sob o vértice da pessoa do médico. O termo RMP implica na atuação de dois indivíduos, um dos quais está doente, e o outro, supostamente, são. Considerando as dificuldades e pressões a que o médico muitas vezes está submetido em seu exercício profissional, tal distinção entre saúde e doença, sob o ponto de vista psíquico, nem sempre é clara. E para início de conversa, é bom que o médico não perca de vista este conceito, o de que ele também é gente, em oposição à ideia (inconsciente) de onipotência e onisciência.
            O exercício da Medicina, ao menos em nosso país, não tem sido fácil para a maioria dos profissionais, por diversas razões. Em seguida, passo a destacar alguns fatores que podem interferir nas ações desempenhadas pelos médicos, e que terão como consequência maior ou menor dano para a RMP. A discussão em grupo há de levantar outros pontos relevantes, a partir das experiências de cada um dos participantes, e os tópicos aqui enumerados servem apenas para motivar a discussão, sem qualquer intuito de esgotar cada um dos subtemas apresentados.

1-    Precárias condições de trabalho

Quer no sistema público, e hoje até mesmo na chamada medicina privada, as condições de trabalho a que os médicos estão submetidos são bastante desfavoráveis. Área física inadequada, ambientes insalubres, número excessivo de atendimentos por período de trabalho, pacientes insatisfeitos com o sistema e que acabam por responsabilizar o próprio médico pelo precário atendimento, impossibilidade de investigação diagnóstica adequada pela insuficiência de exames complementares, são alguns dos problemas encontrados diuturnamente pelos médicos. A limitação da internação hospitalar por falta de vagas, tanto para os procedimentos investigativos mais complexos, quanto para os procedimentos terapêuticos cirúrgicos, por exemplo, constituem outra fonte de enorme frustração para o médico, que não pode ver seus esforços para um atendimento adequado ser concretizado. Todas as mazelas do sistema de saúde tendem a recair sobre a linha de frente do atendimento (sobre o médico, principalmente), inclusive a frustração seguida de raiva das pessoas que necessitam atendimento, exames, retornos, e não o conseguem. 
As empresas de seguro de saúde, ao visar o lucro acima de tudo, prejudicam pacientes e frustram médicos, dificultando, ou impedindo mesmo, o bom atendimento.

2-    Baixa remuneração

Na medicina pública, a regra é a precária remuneração. Na privada, o médico empregado também é mal remunerado. Quem ganha dinheiro hoje com medicina?
A necessidade de múltiplos empregos, especialmente em grandes centros urbanos, é fator de estresse e angústia para o profissional.

3- Ausência de perspectivas de aperfeiçoamento profissional

Da mesma forma, nas medicinas pública e privada há pouco ou nenhum incentivo para o aprimoramento técnico-profissional. Na chamada vida acadêmica, os esforços para o aperfeiçoamento, incluindo a pós-graduação, devem-se muito mais às aspirações individuais, e há pouca  compensação sob o ponto de vista financeiro.
A ausência da perspectiva de crescimento acarreta sentimento de estagnação profissional, baixa autoestima, depressão, com graves implicações para a RMP. Não possuo dados objetivos para a afirmação que faço em seguida, mas estimo que, nos dias de hoje, este processo tem início precocemente na vida do médico, por volta dos 5 anos de formado. Não se trata, portanto, de sentimento que acomete os “velhos profissionais”, desiludidos com a carreira.

4-    Dificuldades de relacionamento no local de trabalho

Parece quase impossível relacionar as dificuldades encontradas pelos médicos em seus locais de trabalho, tendo em vista os inúmeros fatores causais, porém não há dúvida de que se trata de importante fonte de insatisfação e frustração por parte do profissional. Há um ditado bastante difundido entre os profissionais, relatado à guisa de piada, que reza: “o problema não é a medicina, são os médicos...”
Parece que há um problema mais específico, que agrava o relacionamento no trabalho; é a dificuldade do médico para trabalhar em equipe. Relações muitas vezes difíceis com a enfermagem ilustram bem esta situação.
É possível inserir aqui, com alguma boa vontade, a questão da escolha da especialidade por parte do recém formado, realidade com a qual ele deverá confrontar-se, às vezes, para o resto da vida (por exemplo, especialidades clínicas versus cirúrgicas).

5-    As dificuldades do médico que adoece

Há um sem-número de trabalhos publicados mostrando as dificuldades que o médico tem para com a preservação da própria saúde física. As razões são igualmente inumeráveis, porém o sentimento de onipotência (infantil) de que ele é imune à doença quase sempre está presente.
Os quatro subitens listados a seguir, que com frequência acometem os médicos, poderão ser discutidos em grupo, segundo o interesse dos estudantes, e de acordo com pesquisa bibliográfica a ser realizada pelos mesmos.

5.1- Alcoolismo
5.2- Síndrome de burnout
5.3- Drogadição
5.4- Depressão
5.5- Predisposição ao suicídio

Leitura recomendada: Suicídio entre médicos e estudantes de medicina. A.M.A.S. Meleiro. Rev Assoc  Med Bras, vol.44, n.2, São Paulo, Apr/June 1998.

6-    Preservação da saúde mental

Desde os tempos de estudante o médico é sabedor das pressões e exigências a que é submetido pela profissão. Não será possível que, desde cedo, ele possa buscar alternativas para a preservação de sua saúde psíquica? Por que não se interessa por arte, música, literatura, cinema? Por que muitas vezes se recusa a tirar férias? Por que descuida de sua vida pessoal, incluindo aqui a conjugal, em favor da vida profissional?
Dentre as alternativas possíveis que podemos lançar mão para preservar nossa saúde mental, não devemos esquecer de algum tipo de terapia ou ajuda psicológica, quando necessária.

8- Conclusão

A RMP é considerada, hoje e sempre, um dos pilares da Medicina. A ideia de que ela, em si mesma, carrega uma função terapêutica, dá a exata medida de sua importância. O primeiro olhar que trocam entre si, médico e paciente, pode constituir-se no início do tratamento. Estamos falando da importância da primeira consulta. Porém, a cada nova consulta outros sentimentos vão se acumulando. Há momentos críticos da RMP, especificamente na clínica cirúrgica, que precisam ser observados pelo médico, desde a primeira consulta até a alta hospitalar, passando pelo momento da operação, aspectos estes destacados no capítulo intitulado Paciente e cirurgião em busca de uma relação terapêutica (Controle clínico do paciente cirúrgico, última edição). 

Embora desigual e assimétrica, a relação médico-paciente envolve necessariamente duas personalidades e seu caráter de reciprocidade não pode ser olvidado.  A noção predominante na sociedade, incluindo a comunidade médica e o contingente enorme de indivíduos doentes, é a de que o problema a ser resolvido situa-se sempre na pessoa do paciente.  É ele quem sofre, é ele quem precisa de ajuda. Entretanto, não se pode esquecer que a pessoa do médico está sujeita às mesmas dificuldades impostas pela vida, aos mesmos infortúnios, à eventualidade da própria doença.  Que ele também sofre e que com frequência precisa de ajuda.  Admitir tais contingências propicia ao médico uma visão mais humana de sua tarefa perante a sociedade, tornando mais equilibrada, menos desigual, a RMP.  Além do mais, estar bem consigo mesmo, por parte da pessoa do médico, parece constituir-se em pré-requisito fundamental para o estabelecimento da boa RMP.  Não se pode estar bem com o outro, a não ser que se esteja bem consigo mesmo.
Obedecidas estas premissas, assumido pelo médico o compromisso para com o paciente, que por sua vez aceita compartilhar a experiência por que está passando, ambos acreditando na reciprocidade do vínculo estabelecido, criam-se as condições para uma RMP ideal.  Esta relação deixa de ser, assim, apenas um meio de coleta de dados e prescrições técnico-farmacológicas, para constituir a tão almejada relação terapêutica.
  
           
            

Prognóstico do paciente terminal


(Roteiro para discussão em grupo
com estudantes de Medicina)

Meu interesse pelo denominado paciente terminal foi despertado, de forma intensa e definitiva, por conferência proferida pela psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross (1926-2004), em congresso do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, ao final dos anos 70. Desde então tenho coordenado seminários com estudantes de Medicina e médicos residentes, realizado conferências e publicado sobre o assunto. Ao longo desses 40 anos, pude observar marcada mudança de atitude (para melhor) dos estudantes e médicos em geral, especialmente no que diz respeito a “contar a verdade” ao paciente, sobre a natureza de sua doença. O que antes parecia uma crueldade, algo desumano, passou a ser considerado uma obrigação ética por parte do médico, a de prestar as informações solicitadas pelo paciente, de forma sensível e cuidadosa. Não vamos nos deter, pois, nesse aspecto, que vem evoluindo de maneira satisfatória na maioria das vezes.
No entanto, há um ponto em que, invariavelmente, os estudantes não concordam com a abordagem que proponho durante os seminários. Daí a ideia deste pequeno ensaio, e que possa ser lido e considerado, antes da discussão em grupo.
Questão frequentemente colocada pelo paciente é a do prognóstico: -“Doutor, quanto tempo tenho de vida?”  Muitas vezes, é assim que  ele se manifesta, de maneira direta e contundente, podendo surpreender o próprio médico. Já que a proposta atual, quase um consenso, é de que o médico permaneça fiel à verdade, a tendência dos estudantes é a de responder a questão utilizando-se da média de sobrevida, estabelecida pela literatura médica pertinente a cada patologia. Embora também faça a opção pela verdade, tenho ponto de vista diferente neste particular.
Minha resposta à pergunta “quanto tempo tenho de vida?”, invariavelmente é: NÃO SEI. Em primeiro lugar, porque não sei mesmo. Se pensamos que sabemos, se arriscamos um palpite, fruto de nossa onipotência e onisciência infantis, acumularemos equívocos, o que será de toda forma danoso ao paciente que confiou em nós.
Em segundo lugar, pelo que exporei em seguida. Tomemos como ilustração um gráfico de dispersão, onde cada ocorrência individual é representada por um ponto, ocorrências estas dispostas, na ordenada, segundo o tempo de sobrevida de cada paciente, medido em anos. O traço horizontal no interior do gráfico indica o valor médio destas ocorrências.
                           

                                   Sobrevida  10 – |                                . A
                                     em anos    9 – |                   .        .     .
                                                      8 –  |                  .     .    .     .     .   
                                                      7 –  |                     .    .    .  . ..    .
                                                      6 –  |                      .  .    .   .     . 
                                                      5 –  |                M .   .   .    .    ____ Média
                                                      4 –  |                 .  .  .  .    .    .   . .  .
                                                      3 –  |                        .  .      .   .   ..
                                                      2 –  |                            .  .   .  . .
                                                      1 –  |                                  . B
                                                             |_______________________________                      
      Pacientes

Se o paciente que me pergunta “quanto tempo tenho de vida?” coincidir com o ponto A do gráfico, deverei responder que ele terá 10 anos de sobrevida. Se coincidir com o ponto B, direi que ele tem 1 ano de vida. Se a coincidência estiver no ponto M, portanto próximo à média, então direi que ele terá 5 anos de vida. Definitivamente, quando determinado paciente me faz esta pergunta, não posso saber em que ponto situá-lo no gráfico, e não há como sabê-lo. A única resposta possível, portanto, é NÃO SEI.
Tanto a disposição das ocorrências individuais em um gráfico, como o cálculo da média, acompanhada do respectivo desvio padrão, constam da metodologia da ciência estatística, baseada na ótica dos grandes números. Quando o médico está diante de seu paciente, está diante de uma singularidade. E não é possível aplicar tratamento estatístico à unidade.
Ocorre que, se oferecemos ao paciente um determinado número, em dias, meses ou anos, mesmo que ele seja informado que se trata de média, tal número pode passar a ser encarado como um prazo, uma data limite, verdadeira sentença a ser cumprida após exaurir-se aquele período. Desde que recebe tal notícia, ele passa a “contar o tempo”, até a data pré-fixada, o que certamente há de interferir com sua qualidade de vida. Esta perspectiva por parte do paciente prende-se muito mais a fatores emocionais, do que à razão. A ameaça de morte provoca reações emocionais intensas e primitivas, e não podemos esperar que ele possa pensar de forma racional, como o médico pensa ao falar em médias.
A alegação de que é importante para o paciente a ideia de quanto tempo ele dispõe de vida, pois precisa tomar providências práticas relativas à sua vida, nos parece bastante relevante. Devemos conversar então sobre a gravidade da doença, apoiá-lo e estimulá-lo a tomar as medidas de ordem prática, e ao mesmo tempo, falar das limitações da Medicina e do médico, de nosso não saber, de nosso “poder” limitado ou, melhor dizendo, de um “não-poder”, com a humildade genuína de quem está falando a verdade.

Sugestão de leitura adicional: Vianna, A, Piccelli, H. O estudante, o médico e o professor de medicina perante a morte e o paciente terminal.
http://www.scielo.br/pdf/ramb/v44n1/2004.pdf