(Roteiro para discussão em grupo
com estudantes de Medicina)
Muito
se tem falado e escrito sobre a relação médico-paciente (RMP), quase que
invariavelmente destacando-se a situação de fragilidade física e mental em que
se encontra a pessoa que adoece. O que é bem verdade, e por isso mesmo, a
exigir do médico enorme parcela de disponibilidade, também física e mental,
para cuidar da pessoa doente.
Terá
o médico, em toda e qualquer circunstância, tal disponibilidade? Esta a
abordagem deste pequeno texto, uma tentativa de observar a RMP sob o vértice da
pessoa do médico. O termo RMP implica na atuação de dois indivíduos, um dos
quais está doente, e o outro, supostamente, são. Considerando as dificuldades e
pressões a que o médico muitas vezes está submetido em seu exercício
profissional, tal distinção entre saúde e doença, sob o ponto de vista
psíquico, nem sempre é clara. E para início de conversa, é bom que o médico não
perca de vista este conceito, o de que ele também é gente, em oposição à ideia
(inconsciente) de onipotência e onisciência.
O
exercício da Medicina, ao menos em nosso país, não tem sido fácil para a maioria
dos profissionais, por diversas razões. Em seguida, passo a destacar alguns
fatores que podem interferir nas ações desempenhadas pelos médicos, e que terão
como consequência maior ou menor dano para a RMP. A discussão em grupo há de
levantar outros pontos relevantes, a partir das experiências de cada um dos
participantes, e os tópicos aqui enumerados servem apenas para motivar a
discussão, sem qualquer intuito de esgotar cada um dos subtemas apresentados.
1- Precárias condições
de trabalho
Quer no sistema
público, e hoje até mesmo na chamada medicina privada, as condições de trabalho
a que os médicos estão submetidos são bastante desfavoráveis. Área física
inadequada, ambientes insalubres, número excessivo de atendimentos por período
de trabalho, pacientes insatisfeitos com o sistema e que acabam por
responsabilizar o próprio médico pelo precário atendimento, impossibilidade de
investigação diagnóstica adequada pela insuficiência de exames complementares,
são alguns dos problemas encontrados diuturnamente pelos médicos. A limitação
da internação hospitalar por falta de vagas, tanto para os procedimentos
investigativos mais complexos, quanto para os procedimentos terapêuticos
cirúrgicos, por exemplo, constituem outra fonte de enorme frustração para o
médico, que não pode ver seus esforços para um atendimento adequado ser
concretizado. Todas as mazelas do sistema de saúde tendem a
recair sobre a linha de frente do atendimento (sobre o médico, principalmente),
inclusive a frustração seguida de raiva das pessoas que necessitam atendimento,
exames, retornos, e não o conseguem.
As empresas de seguro
de saúde, ao visar o lucro acima de tudo, prejudicam pacientes e frustram
médicos, dificultando, ou impedindo mesmo, o bom atendimento.
2- Baixa
remuneração
Na medicina pública, a
regra é a precária remuneração. Na privada, o médico empregado também é mal
remunerado. Quem ganha dinheiro hoje com medicina?
A necessidade de
múltiplos empregos, especialmente em grandes centros urbanos, é fator de
estresse e angústia para o profissional.
3- Ausência de perspectivas de aperfeiçoamento
profissional
Da mesma forma, nas medicinas
pública e privada há pouco ou nenhum incentivo para o aprimoramento
técnico-profissional. Na chamada vida acadêmica, os esforços para o
aperfeiçoamento, incluindo a pós-graduação, devem-se muito mais às aspirações
individuais, e há pouca compensação sob
o ponto de vista financeiro.
A ausência da
perspectiva de crescimento acarreta sentimento de estagnação profissional,
baixa autoestima, depressão, com graves implicações para a RMP. Não possuo
dados objetivos para a afirmação que faço em seguida, mas estimo que, nos dias
de hoje, este processo tem início precocemente na vida do médico, por volta dos
5 anos de formado. Não se trata, portanto, de sentimento que acomete os “velhos
profissionais”, desiludidos com a carreira.
4- Dificuldades
de relacionamento no local de trabalho
Parece quase
impossível relacionar as dificuldades encontradas pelos médicos em seus locais
de trabalho, tendo em vista os inúmeros fatores causais, porém não há dúvida de
que se trata de importante fonte de insatisfação e frustração por parte do
profissional. Há um ditado bastante difundido entre os profissionais, relatado à
guisa de piada, que reza: “o problema não é a medicina, são os médicos...”
Parece que há um
problema mais específico, que agrava o relacionamento no trabalho; é a
dificuldade do médico para trabalhar em equipe. Relações muitas vezes difíceis
com a enfermagem ilustram bem esta situação.
É possível inserir
aqui, com alguma boa vontade, a questão da escolha da especialidade por parte
do recém formado, realidade com a qual ele deverá confrontar-se, às vezes, para
o resto da vida (por exemplo, especialidades clínicas versus cirúrgicas).
5- As
dificuldades do médico que adoece
Há um sem-número de
trabalhos publicados mostrando as dificuldades que o médico tem para com a
preservação da própria saúde física. As razões são igualmente inumeráveis,
porém o sentimento de onipotência (infantil) de que ele é imune à doença quase
sempre está presente.
Os quatro subitens
listados a seguir, que com frequência acometem os médicos, poderão ser
discutidos em grupo, segundo o interesse dos estudantes, e de acordo com
pesquisa bibliográfica a ser realizada pelos mesmos.
5.1- Alcoolismo
5.2- Síndrome de burnout
5.3- Drogadição
5.4- Depressão
5.5- Predisposição ao suicídio
Leitura recomendada: Suicídio entre médicos e estudantes de medicina. A.M.A.S. Meleiro. Rev Assoc Med Bras, vol.44, n.2, São
Paulo, Apr/June 1998.
6- Preservação
da saúde mental
Desde os tempos de
estudante o médico é sabedor das pressões e exigências a que é submetido pela
profissão. Não será possível que, desde cedo, ele possa buscar alternativas
para a preservação de sua saúde psíquica? Por que não se interessa por arte, música,
literatura, cinema? Por que muitas vezes se recusa a tirar férias? Por que
descuida de sua vida pessoal, incluindo aqui a conjugal, em favor da vida
profissional?
Dentre as alternativas
possíveis que podemos lançar mão para preservar nossa saúde mental, não devemos
esquecer de algum tipo de terapia ou ajuda psicológica, quando necessária.
8- Conclusão
A RMP é considerada, hoje e sempre, um dos pilares da
Medicina. A ideia de que ela, em si mesma, carrega uma função terapêutica, dá a
exata medida de sua importância. O primeiro olhar que trocam entre si, médico e
paciente, pode constituir-se no início do tratamento. Estamos falando da
importância da primeira consulta. Porém, a cada nova consulta outros
sentimentos vão se acumulando. Há momentos críticos da RMP, especificamente na
clínica cirúrgica, que precisam ser observados pelo médico, desde a primeira
consulta até a alta hospitalar, passando pelo momento da operação, aspectos
estes destacados no capítulo intitulado Paciente e cirurgião em busca de uma relação terapêutica
(Controle clínico do paciente cirúrgico,
última edição).
O texto também pode ser encontrado em: http://loucoporcachorros.blogspot.com.br/2012/12/paciente-e-cirurgiao-em-busca-de-uma.html
Embora desigual e assimétrica, a relação médico-paciente envolve
necessariamente duas personalidades e seu caráter de reciprocidade não pode ser
olvidado. A noção predominante na sociedade,
incluindo a comunidade médica e o contingente enorme de indivíduos doentes, é a
de que o problema a ser resolvido situa-se sempre na pessoa do paciente. É ele quem sofre, é ele quem precisa de
ajuda. Entretanto, não se pode esquecer que a pessoa do médico está sujeita às
mesmas dificuldades impostas pela vida, aos mesmos infortúnios, à eventualidade
da própria doença. Que ele também sofre
e que com frequência precisa de ajuda.
Admitir tais contingências propicia ao médico uma visão mais humana de
sua tarefa perante a sociedade, tornando mais equilibrada, menos desigual, a
RMP. Além do mais, estar bem consigo
mesmo, por parte da pessoa do médico, parece constituir-se em pré-requisito
fundamental para o estabelecimento da boa RMP.
Não se pode estar bem com o outro, a não ser que se esteja bem consigo
mesmo.
Obedecidas estas premissas, assumido pelo médico o compromisso para com
o paciente, que por sua vez aceita compartilhar a experiência por que está
passando, ambos acreditando na reciprocidade do vínculo estabelecido, criam-se
as condições para uma RMP ideal. Esta
relação deixa de ser, assim, apenas um meio de coleta de dados e prescrições
técnico-farmacológicas, para constituir a tão almejada relação terapêutica.