sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

A Picada

Charge do dia



A bicicleta de carga




Não é a primeira vez que cito um certo saudoso amigo, completamente desaparecido, pessoa cultíssima, e que gostava de repetir a frase “O Brasil É Um País De Contistas!”; ele o fazia, porém, com o intuito de depreciar a literatura brasileira de modo geral, ao afirmar que os escritores nacionais não passam de contistas, e com isso diminuía também a importância do gênero conto. Com uma paulada matava dois escritores...
            Nunca concordei com isso, muito menos que o conto seja um gênero menor. Para citar apenas um autor, os contos de Machado de Assis são reverenciados até hoje, e o serão para sempre. 
            Acompanho, portanto, tanto quanto possível, o lançamento de novos autores contistas. Tudo isso para dizer da grata surpresa ao ler A bicicleta de carga e outros contos, de Miguel Sanches Neto, Companhia das Letras, 2018. O autor, nascido no Paraná, é autor de mais de 30 livros, entre romances, poesia, crítica literária, contos e crônicas. Não se trata, portanto, de um neófito, mas do lançamento de novo livro de autor de reputação sobejamente reconhecida.
            O presente volume traz 17 contos da melhor qualidade literária, dos quais destaco Pintado para a guerra, e reproduzo aqui pequena amostra dele:

“Coloca o travesseiro sobre a cadeira da escrivaninha, para ter algum conforto. Mesmo assim ele trabalha um pouco, se levanta para acender o cigarro e vem a paz junto com a tontura. Sente alívio, põe café numa xícara suja e molha os lábios, sempre rachados depois do tratamento. Volta ao computador e tenta construir mais uma frase. Procura longe, numa região qualquer do cérebro, a palavra exata, que vai ser mudada três ou quatro vezes, e preenche mais uma linha, pensando em desertos. Sempre que começa a escrever vem a imagem de deserto, camelos, homens perdidos, o sol, areia por tudo, sede, muita sede, a sonolência, está desmaiando... Levanta-se da cadeira e se deita no sofá para dormir um instante, acordando não no deserto, mas em seu escritório, o barulho da pequena hélice do computador e a necessidade de mais algumas linhas. Começa lendo o pouco que já escreveu, corrige um ou outro termo, vai ao dicionário, volta com um sinônimo raro e conhece então o primeiro prazer da manhã. Acho que ninguém antes usou essa palavra assim. Fica contemplando o texto até que a bunda volta a doer. Daí levanta e segue para a cozinha.”

Miguel Sanches Neto é um mestre! Procurar a “palavra exata” em um “deserto” é uma belíssima imagem...
            A capa – ah! a capa, obsessão deste blogueiro – não é bonita, mas é bem interessante: na roda de trás de uma bicicleta vemos a roda dentada, a corrente encaixada, e os aros por onde se espalham o título, nome do autor e editora. Autoria de Guilherme Xavier, a ilustrar com criatividade o título do livro.