Longe de ser um especialista em música
erudita, pois nunca tive qualquer tipo de educação formal sobre o assunto,
tenho a meu favor o hábito de ouvi-la com regular frequência há quase meio
século. E espero continuar a fazê-lo até a morte.
Mais recentemente, tornou-se um prazer
adicional, uma hora antes de cada concerto na Sala São Paulo, ouvir Leandro de
Oliveira, pianista, compositor, professor de história da música, carioca bem
falante e culto, uma simpatia de moço, apresentar suas considerações sobre o
programa da noite.
Há pouco tempo pude ouvi-lo discorrer
sobre a vida de Dmitri Shostakovich (1906-1975), mais precisamente sobre seu Concerto
para piano no 2, peça que já conhecia, pois o
russo é um dos meus favoritos. Foi quando fiquei sabendo que o tal concerto
fora composto especialmente para seu filho, Maxim, estudante no Conservatório
de Moscou à época (1957), como um presente de aniversário nos seus 19 anos.
Shostakovich, empenhado em que o filho se tornasse um bom pianista, incluiu na
composição elementos particulares de técnica, visando a formação do artista.
Desde
então, sabedor deste detalhe, passei a ouvir o concerto de uma forma diferente,
não necessariamente melhor nem pior, e isso ocorre independentemente de minha
vontade (ou consciência), ou seja, já não tenho controle sobre isso.
O segundo movimento do Concerto
n. 2 para piano e orquestra, um belíssimo andante, pode ser ouvido no Youtube, apresentando
o que poderíamos chamar de uma feliz curiosidade. Ele é regido pelo próprio
Maxim Shostakovich, e interpretado por seu filho, Dmitri
Shostakovich Jr., acompanhado pela I Musici, de Montreal.
Foi
também com Leandro que aprendi o significado da expressão “pensar a música”. Não
se trata apenas de ouvir a música, o que por si só é ótimo, mas poder pensá-la,
e aí entram inúmeros outros elementos, históricos, biográficos, técnicos,
filosóficos, que fazendo parte de nosso patrimônio intelectual, modificam nosso
modo de ouvir uma determinada composição.
Diz-se
do Adágio para cordas, opus 11, do compositor americano Samuel Barber
(1910-1981), que se trata de uma das músicas mais tristes de todos os tempos,
tanto que foi executada nos funerais de Roosevelt, J. F. Kennedy, Albert
Einstein, da Princesa Grace de Mônaco, em memória do 11 de setembro no “Proms”
no Royal Albert Hall, em Londres, ou mais recentemente nas trilhas sonoras dos
filmes Platoon, e Melancolia, do diretor Lars von Trier. Acontece que a música
foi composta em 1936, quando Barber passava o verão na Europa com seu
companheiro Gian Carlo Menotti, também compositor. Em carta endereçada aos seus
pais, Barber fala da grande felicidade que estava vivendo naqueles dias! Como
explicar então que compusesse adágio tão cheio de melancolia?
Há
quem afirme que a inspiração veio das Geórgicas, de Virgílio, conjunto de 4
livros, cada um com 500 versos, com fortes conotações bucólicas, sem que se
possa, no entanto, explicar a origem da tristeza da peça.
Ou ela não é tão triste assim? Quando
se lança a dúvida sobre a origem da composição, e considerando o momento de
extrema felicidade em que vivia o autor, é possível que, ao ouvi-la novamente,
ela já não nos pareça tão melancólica!
Ao leitor ouvinte, a sugestão do Adagio
para cordas, pela Orquestra Sinfônica de S. Paulo, regente León Halegua:
Outras
vezes, o que ocorre são idiossincrasias muito individuais, quando dizemos que
uma determinada música nos emociona profundamente, e não sabemos bem por quê.
Podemos pensar então nas associações inconscientes que formulamos frente àquele
determinado estímulo.
Enfim,
o que parece um ato simples, até singelo, como o de ouvir música, guarda
intricados mistérios. Se desejarmos “complicar” nossa audição, podemos aprender
um pouco mais sobre o compositor, sua vida, sua obra, para então poder pensar a
sua música. Penso que vale a pena.