sábado, 24 de outubro de 2020

Perseu e Medusa, Medusa e Perseu


 


Medusa com a cabeça de Perseu,

obra do artista argentino Luciano Garbati

Jeenah Moon/The New York Times

 

“Estátua de Medusa pelada e sexy é abraçada e atacada pelo MeToo em Nova York”, informa a reportagem de Julia Jacobs para The New York Times (14.out.2020).

Luciano Garbati fez a escultura de Medusa segurando a cabeça de Perseu sem preocupar-se com ideias feministas; realizou apenas genial inversão do antigo mito. A obra é de 2008, bem antes do MeToo, e as discussões sobre gênero que despertou não interessam para esta crônica.

Garbati inspirou-se em escultura em bronze do século 16, “Perseu com a Cabeça de Medusa”, de Benvenuto Cellini. 

 



Perseu com a cabeça de Medusa

Benvenuto Cellini

esculpida entre 1545 e 1554

 

Num golpe de mestre, ele inverteu o papel dos agentes, contando “a história da perspectiva de Medusa – escultura com mais de 2 m de altura – e revelando a mulher por trás do monstro”, exposta na calçada oposta ao tribunal criminal da rua Centre, ao sul de Manhattan.

Acrescenta Julia Jacobs: “Em sua inscrição no programa "Art in the Parks", que revisa propostas para obras de arte em instalações públicas como a da estátua, Garbati apontou para o fato de que Medusa foi estuprada por Poseidon no templo de Atena, de acordo com o mito. Como punição, Atena volta seu rancor contra Medusa e transforma seus cabelos em serpentes. A inscrição afirmava que a história “comunicou às mulheres por milênios que, caso fossem estupradas, a culpa seria delas”.

         “Desestabilizar a narrativa usualmente feita sob uma lente patriarcal é o verdadeiro poder da obra”, afirmou Garbati. “Isso faz com que as pessoas parem para pensar.”

          E parar para pensar é uma das inúmeras funções da Arte.

 

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/10/estatua-de-medusa-pelada-e-sexy-e-abracada-e-atacada-pelo-metoo-em-nova-york.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha

 

O especialista

 Cenas inglesas


 Denmark Hill Station



Perto do hospital onde eu trabalhava, o King`s College Hospital, ou simplesmente King`s, localizado em Brixton, sul de Londres, há uma bonita estação de trem – não havia metrô naquela região – chamada Denmark Hill, e na estação, um lindo pub com o mesmo nome. Com a frequência que as condições financeiras permitiam, almoçávamos lá, o pequeno grupo de pesquisadores da Liver Unit, renomado centro de estudos e tratamento das doenças do fígado, todos estrangeiros. 

No frio Serviço chefiado pelo gelado Dr. R.W., homem severo com olhos cor de água, trabalhavam cinquenta pesquisadores, estrangeiros em sua grande maioria, e tratados como tal, subalternos serviçais de segunda classe a fazer aquilo que os autóctones desprezavam. Depois de dois anos de trabalho na Unidade, percebi que poderia agrupar alguns desses desvalidos, e chegamos mesmo a incomodar os ingleses com a elevação da autoestima do grupo. Os almoços no Denmark Hill faziam parte dessa estratégia.

         Dentre os membros do “seleto” grupo havia um italiano que merece destaque e ainda hoje me lembro dele com carinho, por duas particularidades especiais, pelo menos para mim: era louco por futebol e conhecia tudo sobre a vida dos papas. Luiggi era torcedor fanático do Catanzaro, time da pequena cidade do mesmo nome, na região da Calábria, ao sul da Itália, e conhecia a fundo o futebol do Brasil, capaz de citar de cabeça a escalação da seleção brasileira campeã da Copa de 58, na Suécia. Assunto melhor não poderia haver, entre dois melancólicos saudosos expatriados.

         O que me fascinava mesmo em Luiggi era seu conhecimento enciclopédico sobre a vida dos papas, de todos os papas! Ele discorria com o entusiasmo próprio dos italianos sobre as qualidades dos pontífices, para ele homens extraordinários, de grande estudo inteligentíssimos cultíssimos, políticos de primeira grandeza, porque só assim poderiam chegar à posição de Papa, numa instituição em que o vencedor precisava lutar incontáveis ferrenhas batalhas em uma guerra feroz, até que a chaminé do Vaticano soltasse a fumacinha branca.

         Parece que Luiggi conhecia os intestinos do Vaticano! Sabia de escabrosos escândalos da cúria romana. Mas nada era capaz de diminuir a admiração dele pelos papas. Daí que desenvolveu interessantíssima teoria, sobre a qual discorria longamente, fazia uma pausa para causar suspense – mesmo tendo contado a história várias vezes – e em seguida vaticinava:

         – Todo papa é ateu!

         O espanto era inevitável para quem escutasse a teoria pela primeira vez. Era a oportunidade que Luiggi precisava para discorrer com o arrebatamento de sempre:

         – Homens de tanto estudo, inteligentes, cultos, grandes políticos, teólogos por excelência, conhecedores das raízes da religião, da história da Igreja, dos subterrâneos da fé, esses homens notáveis só poderiam ser ateus! Eles conheciam a verdade.

         Ríamos todos, saboreando um delicioso scotch egg, regado a uma caneca de Guiness, em Denmark Hill.