2/8/2009
Tem dia que gosto
de escrever para mim mesma, por falta de vontade de escrever para alguém em
particular, mas por uma vontade danada de escrever. Depois eu posso até contar
o que escrevi, para a Maria Clara por exemplo, uma colega do Salão que anda
bisbilhotando, no bom sentido, os livros que levo para ler entre um corte de
cabelo e outro, sempre de homem. Ela pega o livro, vira pra lá, vira pra cá, lê
a contracapa, Suzete, é bom?, digo que é, Suzete, é difícil?, digo que não, acho
que ela tem medo, ela torna a botar o livro no lugar e muda de assunto. Ela não
lê nada.
Mas por
enquanto, é para mim que escrevo. Quero falar do encontro que tive semana
passada. Quando digo encontro, todo mundo já sabe que se trata de alguém, um
homem, é claro, de quem cortei o cabelo. Pois me apareceu no Salão um rapaz de
seus 40 anos, alto, muito alto, olhos claros, fala mansa, que me pediu um corte
bem rente, Mas não me deixe careca, ele brincou, amável desde o começo.
Preparava-me
para iniciar meu trabalho quando ele viu o livro do Ferreira Gullar, Poema
sujo, sobre a penteadeira, e me perguntou se eu gostava de poesia. Pronto, foi
o suficiente para começarmos uma conversa que não acabava mais, e ao final ele
me perguntou se eu conhecia uma poeta chamada Ana Cristina Cesar. Tomei logo
nota do nome para não me esquecer, pois confesso que fiquei meio atarantada com
o rapagão de nome Sérgio, o sobrenome me pareceu judeu, não consegui guardar.
(Preciso conferir se está certo isso de chamar uma mulher de poeta; no
primário, aprendi que o correto é poetisa, mas é tão fresco, tão mulherzinha,
como se diz hoje em dia, que parece até diminuir o valor da escritora, ela vira
uma coitadinha que faz versos para crianças.) Na saída, com um sorriso lindo no
rosto, Sérgio recomendou, Não deixe de ler a Ana Cristina... Agradecida pela
indicação, retruquei.
Pois não é que
encontrei no sebo um livro da tal poeta chamado Inéditos e Dispersos, publicado
em 1985, e estou impressionadíssima com ele! Às vezes parece um diário, onde
ela escreveu no dia 10.1.82:
“Hoje que Mary está indo para Paris retomo o caderno
terapêutico depois de ter dito que a
minha cura era “falar tudo”, que me desse e viesse, e assim, angustiada com a
partida que me cala ou um flanco de mim, escrevo como quem fala tudo, querendo
dizer que hoje, com o Patinho, senti que o meu compromisso primeiro era com a
mãe, com as mulheres, com o colo delas, e só secundariamente com ele, com um
apelo da realidade muda.”
Tem
mais, ainda não acabou, mas interrompo aqui para dizer que fiquei paralisada
com a expressão “caderno terapêutico”, achei lindíssima, interessantíssima, maravilhosa
mesmo, pois acho que meus cadernos (que não podem se comparar aos dela) também
são terapêuticos. Sempre disse que minha terapia é ler, escrever e cortar
cabelo de homem. (Sérgio me contou que a poeta suicidou-se, uma pena danada;
ela lia, escrevia, mas decerto não cortava cabelo de homem...)
Compreendi
que caderno terapêutico é o lugar onde a gente escreve tudo, mas TUDO mesmo,
até as coisas mais cabeludas. Agora, nesse preciso minuto em que escrevo, me
ocorre que... nem tudo. Tem coisa que a gente não diz nem pra gente mesmo.
Quanto mais escrever! E se alguém encontra o caderno? O mundo está cheio de
bisbilhoteiros como a Maria Clara.
Outra
coisa que me marcou foi a expressão “angustiada com a partida que me cala”. É
isso mesmo, angústia cala a gente. Não tenho filhos, mas tenho um cachorro
chamado Homero, um vira-lata grande, rajado de marrom e preto, de pelo curto, e
quando ele fica doente, geralmente com vermes, ele fica tristíssimo e eu
angustiada, e então ficamos mudos os dois, acabou-se a conversa, a casa num
silêncio de cemitério. Trato os vermes, ele alegre, eu feliz, conversamos o
tempo todo!
Mas
deixa eu copiar o restante do texto da poeta:
“Quero que uma mulher me acompanhe (ou ao menos o
Armando, que fala tudo e preenche o vazio). Há coisas demais para fazer, não
quero ir para minha casa, onde me sinto independente demais (é como um excesso).
Volto para a casa de mamãe, e tenho de suportar a angústia de ter que me
emudecer até a Mary voltar. Angústia é fala entupida.”
Que
coisa mais bonita! Independência demais pode ser excessiva. Dá medo. Assusta. O
pior é quando a gente não pode mais voltar para a casa da mamãe. Eu não posso.
Mas às vezes tenho vontade. Então fico muda. Entupida.
Quando o Sérgio
voltar ao Salão vou agradecer a ele, tomara que volte.