domingo, 3 de dezembro de 2017

Bactéria interior

            
             A paciente entrou e foi logo avisando, Semana que vem vou a Nova Iorque. Seguiu-se longo silêncio, ela provavelmente esperando que eu perguntasse o que iria fazer em Nova Yorque. Até que que resolveu prosseguir, confiante no relato: Vou passar uma semana numa clínica especializada, fazendo uma limpeza intestinal; eles injetam até 40 litros de líquido no intestino, até que a limpeza seja completa; é necessária uma dieta especial nesse período, além de hidratação rigorosa.
            Não estou certo de que ela usou exatamente estas palavras, pois confesso que levei um susto com tais afirmações. Eu já conhecia o procedimento (colonics, em inglês), porém minha surpresa deveu-se ao fato de tratar-se de pessoa esclarecida, bem informada (em função da profissão que exercia), inteligente, culta, e, no entanto...
            É disso que trata a crônica de hoje de Hélio Schwartsman para a Folha, Nossa bactéria interior. Afirma o colunista:

“Com efeito, já há alguns anos vem ganhando espaço na biologia e na medicina a ideia de que precisamos pensar o corpo humano não como uma entidade à parte, mas no conjunto de suas relações com o meio ambiente, em especial a interação com espécies microscópicas com as quais vivemos em promiscuidade há dezenas de milhares de anos. Aqui, nós perdemos um pouco de nós para nos tornarmos um superorganismo, no qual outros seres vivos, notadamente aqueles que habitam nosso corpo, ganham importância.
...Deixamos de ser um corpo composto por 10 trilhões de células comandadas por 23 mil genes para nos tornarmos um bioma ao qual se somam 100 trilhões de bactérias e 3 milhões de genes não humanos.” ( O negrito é meu.)

            Passaram-se milhões de anos para que se estabelecesse tal equilíbrio entre nosso corpo e nossas bactérias. (O uso indiscriminado de antibióticos pode rompê-lo, com graves consequências. Schwartsman, sempre muito bem informado – sua esposa é médica – fala em transplante de fezes, o que pode causar enorme estranhamento para o leigo.)
            E minha paciente foi gastar seu dinheiro com algum charlatão em Nova Iorque! O procedimento já é praticado no Brasil, impunemente, a explorar a boa fé das pessoas.
            Talvez um certo traço neurótico contribua para que o indivíduo não possa conviver com a ideia exposta por Schwartsman, de que enquanto microrganismos que habitam em nós ganham importância, “nós perdemos um pouco de nós”.
            Até onde vai o narcisismo.




Briga por comida




Foto: AVianna, dez 2017, varanda