Em um dia comum, igual a tantos outros de seus 52 anos de vida, Antônio levantou cedo, madrugada ainda, bebeu o café preto bem forte, comeu pedaço de broa-de-milho feita por sua mulher, se despediu dela com um beijo, foi trabalhar. Era motorista de caminhão-caçamba, encarregado de remover entulho para uma grande área de aterro, onde o governo pretendia construir casas populares. Rotina monótona, cansativa, imutável, aquela de pegar restos de construção, viajar durante duas horas e meia, despejar o material inerte no aterro, em meio à poeira que levantava do chão seco. Depois voltar, repetir.
Vez em quando, um imprevisto. Naquele dia, barulho estranho no motor, que de repente parou de funcionar. Antônio estacionou o veículo no acostamento, desceu da boleia, abriu o capô, procurou pelo defeito. No silêncio da manhã ouviu choro de bebê! Tornou a escutar, olhou em volta, deserto. O choro perseverou, claro como o azul do céu. Antônio assustado, O que é isso meu Deus? Caminhou buscando a origem do som, deu duas três quatro voltas em torno do caminhão, não restava dúvida, O choro vem da caçamba! Subiu na carroceria, removeu o plástico imundo que cobria o entulho, em meio à terra misturada às pedras cimento tijolos descobriu a criança que esgoelava, como que pedisse socorro.
– E eu que, por um triz, não despejo ela no aterro junto com o entulho!, exclamou Antônio, transtornado, antevendo a tragédia. Graças a Deus, completou ele (e é tão somente o que se pode dizer em momentos como esse).
A ambulância e os carros da polícia e do serviço social não tardam a chegar. O recém-nascido passa bem, o hospital informa. A polícia inicia rigorosa investigação. O serviço social, após demandas de praxe, aceita que Antônio e Ofélia adotem a criança. Este é o desejo de toda a cidade, do país inteiro, diante de caso tão insólito quanto rumoroso, e que acaba por ganhar projeção internacional nas redes.
* * *
Aos 19 anos de idade Matheus se considera um predestinado. Recebeu durante a infância o precioso carinho dos pais, frequentou boas escolas, foi bom aluno, gostava de estudar. Na escola técnica profissionalizante de marcenaria apresenta agora desempenho promissor. Matheus cultiva as amizades próprias da juventude, é um rapaz alegre, de bons modos, gosta de futebol, respeitoso para com os mais velhos e ama os animais. Cria um vira-latas que ganhou de Antônio e chamou Morcego. Parece bem encaminhado na vida.
Aqueles que o conhecem de perto notam em Matheus certo traço de personalidade um tanto exagerado, sentimento de religiosidade excessiva, o que é tolerado – mais que isso, bem aceito por todos, piedosamente. Pudera, ele veio ao mundo pelas mãos de Deus, dizem. Saindo ainda da adolescência, Matheus tem firme convicção de que foi salvo com algum objetivo maior, particular, uma predestinação, espécie de missão que o torna eterno devedor da misericórdia divina, princípio que passa a nortear sua vida.
Até então, esse destino não parece ser um problema. Exceto por um comportamento repetitivo, que vem se acentuando nos últimos tempos, espécie de fiel gratidão, alegam alguns. Matheus não suporta nem mesmo a simples ideia da inexistência do Criador. Caso depare com um ateu, um deus-nos-acuda! Se o outro teima, discute, Matheus levanta a voz, briga, briga feio, sai nos tapas murros pontapés, desfere em direção ao herege os piores palavrões, lhe deseja o fogo eterno do inferno, ofende pai e mãe do sujeito por terem gerado o anticristo. Precisa que alguém aparte o pega ou alguma desgraça pode ocorrer.
Em um domingo comum, numa tarde como tantas outras na pacata cidade, Matheus resolve assistir à decisão do campeonato estadual de futebol em um bar que usa como chamariz a grande televisão colorida. Estão animados, ele e os amigos, prontos a saborear o jogo e a cerveja gelada. Matheus pede um guaraná. Aos quinze minutos de partida sai o primeiro gol, quando se ouve a exclamação de alívio de um torcedor:
– Graças a Deus!
Em seguida, um urro rouco raivoso raspando a garganta transbordante de ódio, vindo de torcedor cujo time perdia, e que blasfema:
– Deus de merda, esse!
Os que puderam ouvir aquela última frase, atônitos, fazem silêncio. Matheus se levanta, não diz palavra, sai sem que ninguém o perceba e vai para casa, onde o pai tem guardado um trinta-e-oito cano curto. Em pouco mais de meia hora ele está de volta ao bar. O time do herege continua perdendo e o rapaz ainda blasfema. Matheus se aproxima devagar, chega por trás do moço, lhe dá um tiro na nuca.
Corre-corre tremendo, gritos de pavor, barulho de pratos copos garrafas quebrados espalhados pelo chão, o ruído da tevê que teima em transmitir o futebol. Quando a freguesia dispersa, restam no chão dois corpos ensanguentados, do herético e de um menino que aparenta ter entre 8 e 10 anos. A bala ricocheteia contra a parede e atinge o peito da criança. Ele morre na hora.
* * *
Matheus foi condenado por duplo homicídio triplamente qualificado a sessenta e três anos de prisão. Cumpriu pena inicialmente em presídio de segurança máxima, e após desenvolver grave surto psicótico recebeu o diagnóstico de esquizofrenia. Foi transferido para hospital de custódia, onde morreu aos 29 anos, de causa desconhecida.
Quem o visse falando sozinho na maior parte do tempo podia assegurar que ele falava com Deus. Aos poucos, Matheus se convencera de que ele era o próprio deus.