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sexta-feira, 6 de maio de 2022

Realejo

Mais 47 cenas do Romance Familiar

 



 

Foi preciso que deparasse com a fotografia no Twitter para que toda a cena, tantos anos guardada na memória, surgisse cristalina, inteira, vívida em meu espírito. Ah! a nossa memória!

            Aos 10 anos de idade passei duas semanas em São Paulo, em companhia de meu pai. O motivo, um certo tratamento (?) para meu estrabismo através da ortóptica; em português raso, exercícios para botar o passarinho dentro da gaiola. Foi um tempo mágico! O pai exclusivo para uso meu, atenção total, dedicação exclusiva, passeios pela cidade onde ele havia morado quando solteiro e que conhecia com intimidade, hospedagem na pensão de Dona Cinhaninha, muito simples e asseada, onde o pai havia morado anos atrás. Com muito orgulho, fiquei conhecendo alguns de seus amigos, que continuavam morando no mesmo lugar.

            Além da felicidade reinante, me lembro bem de um fenômeno por mim experimentado, sem que me tivesse dado conta à época, naturalmente. Eu regredi! Voltei alguns anos em meu comportamento, parecia um menino com a metade da idade real. E, portanto, cheio de vontades.

            Antes de passar ao centro da história, uma advertência: Seu Ofir não era homem de gastar dinheiro à toa, nunca foi, tanto que os filhos nunca souberam o que era ter dinheiro no bolso, até a emancipação e saída de casa, adultos jovens. Fazia isso por princípio, herança familiar cultivada ao extremo.

            Em um dos passeios pelo centro da cidade, findo o trabalho inútil de guardar o passarinho, vi pela primeira vez um homem tocando realejo, encimado por pequena gaiola contendo um periquito. Se o passante solicitava a leitura da sorte, o homem abria a portinha da gaiola, o bichinho saía e com o bico puxava pequeno bilhete contendo o vaticínio! Para mim, uma cena indescritível, para a qual não tinha palavras adequadas: uma obra de arte, poesia em estado puro, verdadeira mágica!

            Pedi para meu pai a leitura da sorte, e ele, depois de muito relutar, conversar paciente comigo, Isso é bobagem, meu filho, mas o menino fincou o pé, queria-porque-queria, até que o pai consentiu. Tremenda emoção pela deferência do periquito para com a minha pessoa! O que havia escrito no papelinho, disso não faço a menor ideia.

            A fotografia do Instituto Moreira Salles me trouxe lágrimas aos olhos já cansados nesta manhã suave de maio e céu azul.




Foto: Realejo na Praça do Patriarca, SP, em 1953. Alice Brill #SPFotos.

 

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Álbum de figurinhas

 

 

“O álbum de figurinhas das Séries A e B do Campeonato Brasileiro, que celebra os 50 anos da competição, será lançado oficialmente nesta sexta-feira (20/8). São 40 clubes, 20 de cada divisão, 540 cromos, sendo 100 especiais, e ainda ilustrações especiais de alguns jogadores. É o que informa Amanda Gil para o Metropoles. A ideia foi da agência iD/TBWA, que passou a atender a Panini, empresa responsável pela produção dos álbuns, neste ano. O álbum será vendido por R$ 10 e o preço de cada pacote com cinco cromos custa R$ 3.”

 

            Leio a notícia com grande interesse, quase uma excitação! Ela me transportou imediatamente à nossa infância, minha e de meu irmão Paulo, quando morávamos em Guaratinguetá, às margens do Rio Paraíba do Sul, aos pés da Serra da Mantiqueira.

            De tempos em tempos surgiam as figurinhas de jogadores de futebol. As mais antigas, que minha memória ainda registra com detalhes, vinham embrulhadas com uma balinha, que era solenemente jogada fora, na ânsia de saber se ainda não tínhamos aquela estampa ou se viria uma “repetida”. As repetidas também tinham sua importância, eram trocadas entre os colegas por outras que não possuíamos, e assim o álbum ia se completando. Valiosas mesmo eram as figurinhas carimbadas: no verso do papel vagabundo vinha um carimbo, sem nada escrito, apenas um carimbo circular, transformando aquela pequena peça em raridade valiosíssima! Ela podia ser trocada por 50 comuns, ou vendida por um bom preço. Me lembro bem da emoção de, certa feita, ter ganho uma delas.

            (Vejam o que é a linguagem; hoje, “figurinha carimbada” significa alguém muito assíduo, que frequenta sempre determinado círculo social; algo muito comum em determinado contexto, no Dicionário Criativo; tipo arroz-de-festa.)

            Mas havia um problema: nosso pai nos proibia de colecionar figurinhas, as revistinhas, ou gibis, nos eram igualmente interditas. Nunca chegamos a compreender a razão de tanta severidade. Nos restava colecioná-las às escondidas, as figurinhas de jogadores de futebol! E com muito medo de sermos descobertos.

            Guardo na memória dois preciosos acontecimentos dessa época – eu com 9 anos, Paulo com 7 e meio –, merecedores de figurar em Outras 47 cenas de um romance familiar, a continuação do livrinho publicado há 10 anos! O primeiro deles foi o jogo de abafa e a troca de figurinhas com nosso amigo Marcelo: ganhamos o jogo, trocamos figurinhas, e vendemos algumas delas para o amiguinho, no valor de 5 cruzeiros, verdadeira fortuna que seria revertida em novos exemplares. Marcelo nunca nos pagou. Por muito tempo guardamos aquele sentimento esquisito, mágoa, um pouco de raiva, ressentimento por termos sido ludibriados; nunca fomos tomar satisfação com o caloteiro, pois seria “muito barulho por nada”. Ainda não sabíamos dar nome aos bois: a palavra era constrangimento.

            A segunda lembrança, na época foi de meter medo. A pequena casa onde morávamos ficava ao lado do Ribeirão dos Mota: na fachada, a janela da sala, a porta de entrada principal, e a porta da sala de tevê, que se transformou em garagem quando o pai comprou um Vanguard cinza! Entrávamos sempre pela garagem, pois a sala era mantida fechada, para que nossa mãe tivesse menos trabalho com a limpeza da casa. Era utilizada apenas em raríssimas ocasiões, quando se recebia uma visita; nosso pai não era afeito a visitas. Pois era na sala, atrás do sofá, o esconderijo perfeito para o álbum de figurinhas.

            Estávamos os dois, no silêncio da sala, entretidos com as novas aquisições, apreciando as preciosidades, quando olhamos para cima e lá estava seu Ofir, a nos observar calado; após discreto sorriso, deu meia volta, saiu da sala em silêncio. Animados, passado o susto, entendemos aquilo como uma certa complacência, e continuamos a contemplação das figurinhas. E a coleção prosperou, naturalmente.

            Voltando à notícia que abre esse texto, estou pensando seriamente em adquirir o álbum e algumas figurinhas...

            

 

https://www.metropoles.com/esportes/futebol/panini-faz-ilustracoes-especiais-de-jogadores-para-album-de-figurinhas-do-brasileirao

 

domingo, 4 de abril de 2021

Crônica da Sexta-Feira da Paixão

 

Retrato do Pe. José Maurício

pintado por seu filho José Maurício Jr

 

 

Por que nutro profundo respeito pela Igreja Católica? Por seu papel primordial no desenvolvimento das artes, da pintura, arquitetura, escultura e, em especial, da música. Tal sentimento me acompanha desde a infância.

            Fomos criados, eu e meus irmãos, em uma família espírita. Minha mãe, formada professora primária, professava o catolicismo até casar-se com meu pai; converteu-se ao Espiritismo pela via mais improvável, mas esta é outra história. A despeito disso, me lembro bem quando ela me convidou para assistir a procissão da Sexta-feira da Paixão. Eu menino com dez anos, ela conseguiu me atiçar a curiosidade, com dois fortes argumentos:

            – Você vai gostar das músicas cantadas, há uma cantora daqui da cidade com voz lindíssima. E vai conhecer o som da matraca!

            Matraca? Matraca não é uma mulher que fala pelos cotovelos?, pensei eu.

            Não acompanhamos a procissão. Minha mãe escolheu um bom lugar em rua por onde o cortejo passaria e esperamos algum tempo; era noite fechada, o local pouco iluminado, o clima solene, quase lúgubre; a procissão passou, impressionante o andor carregado por seis homens, a imagem recoberta por um pano roxo, me lembro bem depois de mais de 60 anos.

Gostei muito da cantoria, solene imponente majestosa emocionante, a tocar definitivamente a alma do menino. Adorei a matraca, pápápápápápá, embora tenha achado o som muito parecido com aquele produzido pelo homem-do-bijú, tipo de biscoitinho muito popular naquela época, vendido por ambulantes que carregavam às costas um volumoso cilindro de metal com os quitutes.

            Durante toda a Semana Santa as rádios da cidade tocavam apenas música sacra, em sinal de respeito; talvez pouca gente ainda saiba disso. Eu ouvia aquelas músicas e gostava. Ainda gosto, ouço música sacra desde então, não apenas na Sexta-Feira da Paixão; com assiduidade ouço o Réquiem de Mozart, minha preferida, aos sábados pela manhã. (Certa vez ouvi de um amigo, Por que você gosta dessa música tão triste? Sinto-a solene imponente majestosa emocionante, tudo menos triste, respondi.)

            Aprendi com minha mãe a gostar também da música sacra brasileira, ao ouvi-la enaltecer Padre José Maurício, “reconhecido internacionalmente”, segundo ela. José Maurício Nunes Garcia (Rio de Janeiro, 1767-1830) foi um padre católico, professor de música, maestro e compositor, mulato, descendente de escravos, que nasceu pobre, mas recebeu sólida educação em música, letras e humanidades. Foi nomeado mestre de capela da Catedral do Rio de Janeiro no final do século XVIII, tendo caído nas graças do príncipe-regente dom João, grande admirador de seu talento, indicando-o diretor da Capela Real e fazendo-o cavaleiro da Ordem de Cristo. Minha mãe sabia disso tudo.

            A Missa de N. Sra. da Conceição, de José Maurício, foi gravada pela Orquestra Sinfônica Brasileira e Coro Sinfônico do Rio de Janeiro, sob regência de Roberto Minczuk; é das mais lindas que já ouvi.

            Assim é que, ainda hoje, a Sexta-feira da Paixão não é para mim um dia triste. 

            

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Folha centenária

Mais 47 cenas de um romance familiar



Ofir em Cabo Frio

 

A Folha de S. Paulo completou ontem 100 anos de existência, o que não é pouco num país como o nosso, que não cultiva tradições e padece cronicamente de desvalida economia. Parabéns aos responsáveis pela façanha.

            O que desejo mesmo é contar a história da presença desse objeto – o jornal –, em nossa família. Desde menino pequeno, vivendo no Vale do Paraíba, vejo meu pai cumprir seu ritual diário de ler o jornal. À mesa, ele abria o exemplar de O Estado de S. Paulo e, cuidadosamente, virava página após página, mantendo o caderno impecável alinhado direito, como se não houvesse sido tocado. Finda a leitura, dobrado o jornal, ele podia ser devolvido à banca, como se não fora lido; mas agora era a vez do restante da família. 

            Enquanto morávamos no interior, o Estadão era o preferido do pai, bairrista empedernido. A família se mudou para o Rio de Janeiro; então alegava ele dificuldade para encontrá-lo nas bancas; virou casaca, adotou o Jornal do Brasil, um grande jornal àquela época, meados dos anos 60. Seu Suplemento Literário, com crônicas e poemas de um tal de Carlos Drummond de Andrade, nunca pôde ser suplantado pelas Ilustradas, Ilustríssimas e Cadernos B da vida.

            O ritual persistia e ai daquele que ousasse abrir um caderno que fosse antes do pai; a reação vinha furiosa diante da verdadeira profanação. Nossa mãe, para contrariar (diga-se, o pai contrariava também), lia O Globo, periódico chinfrim à época. (Hoje é jornal de respeito.) Aos domingos, à hora do almoço, a tertúlia de sempre: qual o melhor, o JB ou O Globo?

            Ao chegar em Brasília, nos idos de 73, procurei continuar lendo o JB, o que se mostrou impossível: a cidade era uma província, oferecendo apenas dois jornais locais, ambos sofríveis. Desde então adotei a Folha como preferido, e a leio até hoje, virtualmente durante a semana, no indefectível papel aos sábados e domingos. Nos fins de semana recebo o Estadão, porque não se pode, nem se deve apagar a infância.

domingo, 28 de abril de 2019

Ainda sobre pirraças


O último texto do tema Mais 47 cenas de um romance familiar neste blog tratou de cizânias musicas entre o pai e a mãe. (http://loucoporcachorros.blogspot.com/2018/09/quartetos-dissonantes.htmlHá mais para contar.
            Ainda hoje, de tempos em tempos, preciso voltar a Rachmaninoff, e ouvir os concertos para piano nos. 1 e 2, ambos sempre. Essas peças me emocionam toda vez que as ouço, em especial na gravação de Nikolai Lugansky (Warner Classics).
            Ontem, ao ouvi-las pela enésima vez, me perguntei por que preciso voltar a elas; embora goste muito do compositor, ele nem está entre meus preferidos; fica longe de Bach, Beethoven, Mozart, Arvo Pärt, Chopin, Mahler, e mesmo assim volto ao romântico Rachmaninoff e aos concertos para piano.
            A resposta enfim chegou, caída sabe-se lá de onde, em plena audição. Não foram poucas as vezes em que ouvi acirrada discussão entre meus pais, a respeito dos concertos nos. 1 e 2, para piano e orquestra, de Sergei Rachmaninoff. A mãe discorria, exaltada, sobre as qualidades do Número 1, de longe o mais bonito concerto para piano do compositor, segundo ela, com ares de crítica musical. Nem preciso dizer que o pai preferia o Número 2. Preferia porque preferia, sem comentários explicativos, que não dispunha mesmo de conhecimentos musicais para tal. Era só para contrariar: pau-pedra, água-vinho, azul-amarelo, e pronto. Pura pirraça cizânia azedume agastamento arranca-rabo malquerença chaça porfia quizila implicância cisma rusga testilha arenga paliota peguilha rebordosa querela. O motivo não importava.
            Desde então, me lembro bem, eu tenho me esforçado para formar opinião sobre a tal disputa: qual o concerto mais bonito? 
Hoje gosto de ambos, cada qual a seu modo, pacificadamente. Convido o eventual leitor a buscar alguma preferência.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Quartetos dissonantes

Mais 47 cenas de um romance familiar

O pai dizia pau, a mãe falava pedra, o pai vinho, a mãe água. Em tudo e por tudo defendiam com veemência pontos de vista opostos. Aprendi a abotoar a camisa de baixo para cima, segundo instruções de minha mãe, e de cima para baixo, de acordo com meu pai.
            Muitas vezes, apenas por pirraça. Ou cizânia azedume agastamento arranca-rabo malquerença chaça porfia quizila implicância cisma rusga testilha arenga paliota peguilha rebordosa querela. O motivo não importava.
            Certa vez, entretanto, o pomo da discórdia – maçã oferecida pela deusa Discórdia à mais bela – assumiu grande sofisticação, acompanhada de alguma graça e humor, o que justifica ser acrescida à Mais 47 cenas
A mãe apreciava a música erudita (o pai nem tanto, preferia o tango). Gostava dos clássicos, Bach, Mozart, Brahms, Chopin, mas Beethoven era um deus, acima de tudo e de todos. E era bastante razoável o senso crítico desenvolvido por ela, às vezes surpreendente:
     – A obra para piano de Chopin é magistral, mas os dois concertos para piano pecam pela fraca orquestração.
            Era peculiar a crítica que ela fazia a Villa-Lobos: adorava as Bachianas, não suportava sua música de câmera. Chamava de “barulhentos” os quartetos para cordas do ilustre brasileiro.
            Até que um dia, para espanto geral, o pai saiu-se com esta:
            – Fulano (não me recordo do nome) afirmou que os quartetos para cordas de Villa-Lobos estão acima de até mesmo dos quartetos de Beethoven.
            Não posso imaginar de onde o pai tirou tal ideia, já que não costumava interessar-se pelo assunto, mas a afirmação caiu como uma bomba, pois ao mesmo tempo que enaltecia os quartetos de Villa-Lobos, depreciava Beethoven, o que era realmente ofensivo.
            Cizânias.
            

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Mata um homem e come


Da série
Mais 47 cenas do romance familiar


Menino bem pequeno, duas falas de minha mãe soavam-me incompreensíveis, enigmáticas mesmo, não faziam qualquer sentido, com a agravante de que eu não dispunha do vocabulário de hoje para enfrentá-las, o que me causava indiscutível angústia e irritação maior ainda. O que será que ela quer dizer com isso, perguntava-se o menino pequeno.
            – Mãe, tô com fome.
            – Mata um homem e come!
            Como assim, mata um homem e come? Se eu repetia Tô com fome, lá vinha ela com a mesma absurda resposta. Já podia compreender que a ordem não era para ser obedecida literalmente. Então, o quê?
            Hoje eu sei, era apenas uma rima.
            A segunda fala, não menos misteriosa, causava-me ainda maior irritação, pois trazia um quê de obscenidade, o que era imperdoável, vinda de minha mãe. Quando o menino pequeno era contrariado em sua vontade de reizinho, reagia com ostensiva raiva, inconformado. Ao que a mãe retrucava:
            – Tá com raiva? Tira a cueca e pisa em cima.
            Não me lembro se naquele tempo eu já usava cuecas – palavra carregada de sensualidade! –, mas como seria possível que minha raiva passasse ao pisar numa cueca? A raiva escoaria pelo chão qual raio vindo do céu em dia de tempestade? 
            Incrível mesmo era o efeito de tais palavras: de início a raiva aumentava, para em seguida diminuir, até desaparecer. A mãe não conhecia a expressão, mas já sabia como “desmoralizar o sintoma”.
            

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Acidente

Da série
Mais 47 cenas de um romance familiar


Sentávamos à mesa alguns minutos antes das onze porque às onze em ponto o almoço era servido, o pai na cabeceira, a mãe no lugar mais próximo da cozinha, os filhos em silêncio. A panela de arroz era destampada e o perfume inundava a sala de jantar.
            Falava-se pouco durante a refeição. Vez ou outra um filho distraído batia com a mão num copo com água ou refrigerante, e o líquido despejado na toalha acarretava no pai reação violenta, que exclamava aos berros: 
– Ôôô lerdeza! 
O responsável pelo desastre tremia de pavor, o almoço estragado.
A partir de certa época, o pai passou a colocar água ou refrigerante apenas até a metade dos copos.


segunda-feira, 23 de julho de 2018

Tristeza, depressão e música

Da série
Mais 47 cenas de um romance familiar


– Gosta de música?
– Adoro!
– E por que não ouve?
– Tornou-se um tormento.
– Um concerto para piano de Beethoven...
– Martelação infernal.
– A tranquilidade de Couperin?
– Barulho barulho barulho.
– Então os Noturnos de Chopin.
– Só a vontade de chorar.
            
            No início da adolescência, foi nossa mãe quem nos apresentou a música erudita, a mim e meu irmão. Colocava o vinil na vitrola (era assim que se chamava o equipamento de som naquela época) e enquanto ouvia, comentava sobre a vida do compositor, sobre a escola musical a que pertencia, destacava os trechos de que mais gostava, fazia crítica bastante adequada à música.
            Sua fonte de informação era a Rádio MEC, da qual era assídua ouvinte. Possuía ótima memória, e o que ouvia, tratava de reproduzir aos filhos, nem tão disciplinados como a mãe.
            Gostava de Bach, Vivaldi, Mozart, mas por Beethoven o que sentia era mesmo uma espécie de veneração quase religiosa. Adorava Chopin, Brahms, Ravel (foi com ela que aprendi a ouvir para o resto da vida as Valsas Nobres e Sentimentais), Debussy (Clair de lune a preferida!). Apreciava Petrushka e a Sagração da Primavera, de Stravinsky, e parava por aí, nada de Shostakovich e outros russos.
– Aprecio muito Villa-Lobos, mas não suporto os quartetos para cordas dele, aliás, nem dos quartetos de Beethoven eu gosto, afirmava ela categórica (como sempre). Ela mesma impunha-se a limitação, manifestação de rigidez psíquica.
Seu gosto para música era clássico, e pronto. Às vezes tecia comentários como se fossem dela mesma e que me despertavam a dúvida, Onde será que ouviu isso? Dizia que Chopin era ótimo compositor para piano, mas que os dois Concertos para Piano e Orquestra dele pecavam pela pobre orquestração. Seria dela mesma observação tão sutil?
Isso antes da doença.
Depois da depressão, na tentativa de animá-la, eu perguntava Por que a senhora não ouve mais música, gosta tanto!
A resposta era sempre a mesma:
– Não consigo, não consigo, um tormento. 
Assim é que, se quisermos saber se uma pessoa está apenas triste, ou está doente, com depressão, basta perguntar:
– Tem ouvido música?
            

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Coisas que a gente não deve contar

Da série
Mais 47 cenas de um romance familiar



Há coisas que a gente não devia contar a ninguém. Coisas das quais nos envergonhamos tanto que são quase impensáveis, quanto mais compartilhadas. Porém, permanecem caprichosamente guardadas em nossa memória, passa o tempo e não se apagam. Até que em um belo dia resolvemos nos ver livre daquela pedrinha no sapato, que os gregos chamavam sabiamente de “escrúpulo”.
            Vamos à história, que começa com o sítio de nosso avô Breno, onde íamos todas as manhãs de domingo, o avô, nosso pai, meu irmão e eu, para ataques desesperos reclamações esbravejamentos de minha mãe que permanecia sozinha em casa todas as manhãs de domingo. Dizia que não gostava de roça. (Mas gostava de reclamar.)
             O avô era pessoa especial, talvez a melhor cabeça de toda a família, passada e presente, verdadeiro intelectual, professor de economia com livros publicados, porém no sítio dele não era capaz de nos dispensar a menor atenção, às voltas com o gado, a plantação, as galinhas, as formigas saúvas. Lembro-me dele e sua azáfama com aquele pequeno pedaço de chão, mais trabalho que prazer. Mas ele gostava de dizer que o comprara para agradar minha avó Ceci, a mulher a quem tanto amava. (Há coisas que a gente precisa contar.)
            Acordávamos bem cedo, os adultos na cabine da caminhonete, as crianças na caçamba – nada da superproteção tão em voga hoje em dia, os meninos que se segurassem –, estrada de terra poeirenta esburacada, Pé na tábua, gritava nosso pai animado. Abrir a porteira do sítio era a primeira façanha; mais alguns metros e estávamos na sede, casa-de-roça muito simples, varanda, sala, dois quartos, cozinha, banheiro, cômodos todos pequenos, uma pinturinha azul desbotada nas portas e janelas. 
O mais importante é que à frente da varanda havia um pequeno gramado, nosso campo de futebol, meu pai meu irmão e eu formávamos o time, todos a favor de todos. (Marcante episódio para o menino, foi quando em meio a uma jogada mais brusca meu pai não aguentou correr, parou, língua de fora, cansado mesmo, e então pensei Ele está ficando velho. De fato ele era moço, viveu muito ainda. O medo era meu.)
Quando a fome apertava havia o leite tirado na hora, do qual não gostávamos muito porque era quente espumoso. Mas o pai levava de lanche pão e banana para cada um. Certa feita o irmão inconformado perguntou, Não tem manteiga?, Come esse pão aí e não enche, menino, foi a resposta do pai, acompanhada de uma gostosa afetuosa risada.
Bem próximo à casa passava um corregozinho, água limpíssima e fria, leito de areia e pedras, piscina praia mar oceano para alegria dos meninos que se banhavam pelados.
Há coisas que a gente não devia contar. 
Em uma de nossas idas ao sítio o pai apareceu com espingarda calibre 22, marca famosa, culatra de madeira lustrosa, mira inigualável de tão calibrada, e uma caixa de balas de verdade. Próximo ao curral havia um pequeno açude, ladeado por elevação, onde colocávamos as latas e garrafas para o tiro ao alvo. Postávamo-nos do outro lado do açude, a uma boa distância, para o excitante impensável indizível prazer do tiro ao alvo com espingarda e balas de verdade.
Até que certo dia, já na varanda da casa, avistei belo pássaro de penas marrons, grande em comparação a pardais e cambaxirras, empoleirado sossegado em galho de arbusto não muito distante. Pedi a espingarda ao meu pai e ele ma deu. Foi um tiro só, certeiro, tombou o pássaro diante da descomunal violência para com sua natureza tão frágil, vi-o cair ao chão e ali permanecer inerte.
A confusão de sentimentos que se seguiu àquele ato insano permanece mais viva do que nunca. Por que? Para que? E agora? Mas está feito!
Há coisas que a gente não deve mesmo contar. Não havia culpa. Naquela época menino matava passarinho. Porém, após o tiro certeiro, nunca foi tão forte o sentimento de que aquilo era errado e que jamais deveria se repetir. Dos males, o menor.

sábado, 14 de julho de 2018

Manoelito, meu amigo

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            Marcelo era colega de ginásio, morávamos a meio quarteirão de distância e jogávamos bola quase que diariamente, mas meu amigo mesmo era o pai dele, Manoelito, de nome Manoel Meirelles Freire, filho de ilustre cidadão de Guaratinguetá, cuja memória permanecia reverenciada pela cidade, Dr. Meirelles, médico de reconhecida dedicação, especialmente aos mais pobres.
            Manoelito possuía fazenda ao pé da serra da Mantiqueira, outrora fazenda de café, o que rendeu proventos suficientes para a construção de um casarão na fazenda e confortável casa na cidade. Passada a fase do café as terras foram ocupadas pela pecuária, o município conhecido como o maior produtor de leite do país.
            Nesse casarão passei um mês de férias, aos 12 anos de idade, completamente desligado de minha família – nem telefone havia –, acolhido pelo amigo Manoelito, sua esposa Dona Isis e o colega Marcelo, e foi lá que sucedeu o extraordinário acontecimento que passo a relatar, tantos anos transcorridos, na esperança de que não me venha trair a memória já enfraquecida. 
Havia também a outra filha do casal, irmã mais nova de Marcelo, de nome Maria Helena, mimada grosseira emburrada, enfim, chatíssima, sempre pronta para uma desfeita. Menino ainda, resolvi enfrentar a fera em troca das aventuras na fazenda.
            Em frente ao casarão havia um belo gramado, ótimo para um bate-bola; a porteira era o gol. Marcelo e eu revezávamos nos chutes, com bola de couro oficial. Bom mesmo eram os passeios a cavalo. Por deferência que nunca pude compreender, cabia-me montar na melhor égua da fazenda, de nome Soda, enorme linda toda branca esperta e mansa, égua marchadora. Aprendi a cavalgar de verdade, colocar o arreio, primeiro o baixeiro, depois a sela, apertar bem a barrigueira – questão de segurança para o cavaleiro –, subindo e descendo a serra, atravessando riachos, saltando valetas, até ficar amigo de Soda, a melhor montaria da fazenda, e que também passou a conhecer o pequeno cavaleiro.
            Manoelito era homem de pouca conversa, o que aprendi a admirar, relação que guardei para toda a vida, e o significado da palavra amizade. Tratava-me com tanto silencioso carinho que despertava ciúmes no filho, meu colega Marcelo (também meus pais sentiam ciúme de minha relação com Manoelito). À noite era preciso passar breu na correia do gerador – a eletricidade da fazenda vinha de roda d’água ligada por uma polia de couro ao gerador –, e lá íamos nós, Manoelito e eu, à parca luz de uma lanterna, em silêncio, é claro, no breu da noite, eu sentindo o calor daquela amizade incomum entre menino e homem bem mais velho, pai do colega, que não se comunicava por palavras, mas se fazia entender perfeitamente através do afeto. Foi a primeira vez que soube mesmo o que era afeto, embora ainda desconhecesse esta palavra. Havia tão somente o sentimento, que bastava.
            As refeições na fazenda marcavam momentos especiais, todos à mesa, Manoelito na cabeceira, comida de fogão-à-lenha, saborosíssima, preparada por Dulce, negra velha praticamente membro da família, os bons modos prevalecendo, todos respeitadores cerimoniosos, eu quase sempre em silêncio. (Os preceitos da boa educação me foram ensinados por minha mãe.)
            Às tantas, Manoelito organizou o que para mim pareceu-me um regalo em minha homenagem: cavalgada até o topo da serra, onde pernoitaríamos na cabana de um velho amigo dele. Foram dois ou três dias de preparativos, os mantimentos, as roupas de frio, cobertores, a tropa organizada por Zé Bento, velho capataz da fazenda e conhecedor de trilhas, escolhidas as melhores montarias, Soda era minha, naturalmente. 
            Zé Bento era uma das atrações da fazenda. Morava num pequeno casebre ao lado do casarão, o interior enegrecido pela fumaça do fogão-à-lenha, queimando por toda uma existência; no minúsculo quarto de dormir uma enxerga de palha e um velho cobertor; dois tocos de madeira que faziam as vezes de cadeiras na cozinha eram os lugares prediletos dos meninos – na brasa do fogão havia sempre milho ou mandioca assados –, atentos às histórias de Zé Bento. 
A excitação do menino na véspera da partida resultou em noite insone, na expectativa da maior aventura até então vivida. E a grande aventura terminou em monumental decepção. O dia amanheceu nublado, a Mantiqueira encoberta por espessas nuvens, o passeio cancelado. Lembro-me bem, não pronunciei uma única palavra, obediente ao vaticínio de Manoelito, Não se pode subir a serra com esse tempo. Estava decretada a palavra final. Naquela época eu já sabia o que era frustração, mas doeu.
            Passaram-se os dias. Maria Helena chatíssima como sempre, coitada, acabou sendo injustamente responsabilizada (internamente) pela estranha decisão que de repente tomei – o extraordinário acontecimento daquelas férias! Eu mesmo mal podia compreender: queria porque queria voltar para casa. Precisava voltar para casa. Faltavam poucos dias para o término das férias, quando todos retornaríamos à cidade, o que fazia de minha atitude algo ainda mais incompreensível. (Não aguento mais essa Maria Helena, ruminava eu.) Mas precisava voltar naquele dia, bati o pé, eu que não era disso, silencioso e obediente, comportadíssimo quase sempre, seguidor dos preceitos de minha mãe.
            Tamanha era minha determinação que Manoelito resolveu me botar no caminhão do leite que passava todas as tardes pela fazenda rumo à cidade. E assim procedeu, para espanto e apreensão de toda a família. (Talvez ele soubesse.)
            Não me lembro em que lugar da cidade me deixou o caminhão do leite. Cheguei à noite em casa, entrei sem tocar a campainha. Estavam todos à mesa, hora do jantar, meu pai, minha mãe, meu irmão Paulo e minha irmã pequena, Maria Helena. Receberam-me quase que em silêncio, sem qualquer manifestação de júbilo, nada de saudade, nenhum abraço. Apenas minha mãe teceu o curto comentário, Eu sabia que você viria para o aniversário de seu pai.
            Eu não sabia, era mesmo aniversário de meu pai. Sentei-me à mesa e comi com minha família. (Nunca falamos sobre o ocorrido; para todos os efeitos, voltei naquele dia porque era aniversário de meu pai.)
Ao final do jantar, outra observação de minha mãe, Nossa, o André mudou de voz!  
Verdade, o silêncio e o afeto de Manoelito deram-me voz de homem. 



Foto tirada 40 anos após o relato acima, quando de minha visita a Guaratinguetá e à fazenda, meu amigo Manoelito já bem idoso, em frente ao casarão.            

domingo, 10 de dezembro de 2017

Risoto de camarão

Da série
Mais 47 cenas de um romance familiar


Quando o filho pequeno pediu risoto de camarão no restaurante, o pai, que só comia arroz cozido na hora, não se conformou:
– Isso é feito com arroz de ontem, meu filho.
Não adiantou, o filho não abriu mão do delicioso risoto de camarão acebolado.



Moby Dick, a baleia gigante

Da série
Mais 47 cenas de um romance familiar





A notícia encontra-se publicada no blog Memória Santista, assinada por Sergio Williams (29 jan 2014), com o título BALEIA GIGANTE MOBY DICK VISITA SANTOS:

“Segunda-feira, 29 de janeiro de 1956. A Praça dos Andradas vivia um movimento maior do que o normal. Em pleno Verão, calorão no centro santista, homens, mulheres e dezenas de crianças se aglomeravam para verem de perto o que a imprensa já vinha anunciando havia alguns dias: uma atração internacional, descomunal, única e espetacular. Chegava a Santos a tão falada baleia Moby Dick, apontada como sendo a estrela de um dos filmes de maior bilheteria do cinema nos anos 1950. O animal marinho, de 20 metros de comprimento e 60 toneladas de peso, chegou a Santos para ser exposta ao público local.”

Foi mostrada aos santistas em comemoração ao segundo campeonato paulista, de 1955, que o Santos Futebol Clube acabara de ganhar. A baleia já havia sido exposta no Rio de Janeiro e em São Paulo.
            Pois foi em São Paulo que a vi!
            Com aproximadamente 10 anos de idade, estávamos na Capital apenas eu e meu querido pai, para tratamento (infrutífero) do meu estrabismo. De repente, bem no centro da cidade, nos deparamos com o anúncio do espetáculo:

Moby Dick, A Baleia Gigante

            Mesmo por fora do tapume que guardava a baleia o cheiro era insuportável, cheiro de peixe podre. Mas não houve jeito: tanto atormentei meu pai que entramos para ver o monstro de 20 metros de comprimentos e 60 toneladas de peso, anunciava a propaganda. (Não me recordo do valor do ingresso, mas permanece a impressão de que não era barato. Em outro momento, voltei a atormentá-lo para que comprasse um bilhete de sorteio de um carrão estacionado no meio da rua e que me fascinou.)
Tratava-se de uma baleia jubarte, pescada no Oceano Atlântico, entre Portugal e Marrocos. Para não se decompor era mantida imersa em 7.000 litros de formol, e colocada no seco durante as exposições.
Fiquei impressionadíssimo com a boca do animal, imensa, mostrando espécie de barbatanas que eu não podia entender do que se tratava, e perguntava ao pai o que era aquilo e ele também não sabia, aquele cheiro horrível a nos encher as narinas, o barulho ensurdecedor de um motor de refrigeração que buscava inutilmente retardar o apodrecimento de Moby Dick, um monte de gente em torno do cadáver, um atordoamento.
Não demoramos na visita à baleia. Saí decepcionado. Meu pai, calado, nem me repreendeu pela frustrada aventura.
           

http://memoriasantista.com.br/?p=167


Em tempo (que bom que o blog permite tais adendos ao texto principal): em conversa com meu irmão Paulo, ele lembrou-se de ter participado da aventura acima descrita, lembrou-se inclusive do cheiro e da cor marrom da baleia. Confesso que suprimi completamente da memória a presença do irmão, certamente querendo a exclusividade do pai.
O irmão há de me perdoar.