quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Suzete desce ao Inferno


Querido Dr. Alberto,

sei que demoro a responder sua cartinha de janeiro deste ano, mas não é por falta de atenção e carinho, pois você não me sai da lembrança e ainda permanece como meu melhor amigo!
            Infelizmente, escrevo numa situação difícil, angustiosa, conflitante, que contando ninguém acredita, e acho que esta carta faz parte daquilo que você chama de escrita terapêutica. Um pouco cansada do trabalho, o serviço de sempre, que eu até gosto, especialmente quando se trata de cortar cabelo de homem, resolvi tirar uma férias, aceitei convite de uma amiga para hospedar-me na casa dela, com direito a praia e tudo. Você só não imagina o lugar: VITÓRIA, Espírito Santo!
            Resultado: estamos presas em casa, somos reféns dos bandidos – eles soltos, nós trancafiadas –, então tenho tempo para lhe escrever, mas não sei quando vou poder colocar esta carta nos Correios. Alberto, foi só a Polícia fazer greve e a população enlouqueceu. Vizinhos da minha amiga, aparentemente decentes, saem à rua de carro, param em frente a um supermercado e assaltam, isso mesmo, assaltam, (aprendi a usar o negrito com o André, acho bacana, é gritante!), roubam comida, bebida, roupas, utensílios domésticos, tudo que encontram pela frente, uma loucura. No dia seguinte repetem a cena, agora diante de uma loja de departamentos, levam tevês, micro-ondas, celulares, tablets, cosméticos caríssimos, enchem o carro e saem correndo, em meio a uma multidão que faz a mesma coisa. Acho até que há uma espécie de solidariedade entre eles, eles se apoiam, tipo temos permissão, sei lá.
            O sentimento é aterrador, Alberto.
            Tempos de barbárie.
            Ou sempre foi assim?
            Retira-se a repressão, surgem as hordas.
            Inferno.
            Ontem, minha amiga precisou ir à farmácia, padecia de dor de ouvido, uma dor horrível, diga-se de passagem, a dois quarteirões daqui, e na volta foi assaltada: levaram-lhe o celular e a correntinha com pequena imagem de Nossa Senhora de Fátima, sem qualquer valor pecuniário, apenas valor sentimental, pois fora trazida de Portugal, mais precisamente de Fátima, mas que não foi capaz de proteger Clotilde, minha amiga, do assalto. Um horror! Ah!, os bandidos levaram também o remédio para dor de ouvido. Você acredita, Alberto?! (Mas Clotilde disse que podia ter sido pior, podia ter sido estuprada ou morta, ou as duas coisas, e que foi salva por Nossa Senhora de Fátima! Nem vou perguntar se você acredita...)
            Ouço pela tevê que até agora ocorreram 90 homicídios! No Instituto Médico-Legal de lá os cadáveres estão espalhados pelos corredores. Então é assim? A Polícia faz greve e as pessoas começam a se matar umas às outras? Passam a acertar as contas? Meu deus (deus com minúscula, isso também copiei do André, mais conhecido por Louco, por causa do blog), pertenço também a esta mesma humanidade? De que matéria somos feitos?
            Alberto, não tenho respostas, apenas perguntas.
            É a evolução das espécies ainda em seu princípio?
            É o bicho dentro de nós?
            Mas bichos não saqueiam. (Mas roubam galinheiros.)
            Bichos não cometem assassinatos.
            Cortar cabelo é mais fácil.
            O André recomendou no blog dele um livrinho de uma tal de Ana Luisa Escorel (filha daquele crítico literário famoso, agora me esqueço o nome, depois eu lembro) chamado De tudo um pouco, muito lindo, e que contem um conto chamado O fastio do diabo, uma verdadeira obra prima. Eis o que diz o discípulo do diabão chefe, dirigindo-se ao Mestre:

“...trata-se de um lote de terra incomensurável, praticamente um continente, dada a extensão, e tem um solo privilegiado no qual, de alto a baixo, ‘em se plantando, tudo dá’, conforme eles mesmos costumam dizer. O diabo, opss! perdão, Mestre, é o hábito depois de tanto tempo entre os habitantes daquela região... Quero dizer, o problema é a maneira como essa dádiva foi e continua sendo tratada porque a terra permanece de uma fertilidade impressionante num clima perfeito. Mas tanto se a maltratou, tanto se queimou a mata, tanto se emporcalhou tudo quanto foi rio, tanto se dizimou campo e floresta, tanto se incomodou o mar, tanto se matou bicho de todas as espécies, tanto se pescou de forma indiscriminada, tanto se cavucou o chão atrás de minério precioso que agora os desequilíbrios são evidentes, muitos, irreversíveis.”

            Puta que pariu, Alberto! Não é perfeito? Nem é preciso dizer de que país se trata. E o discípulo do Caramunhão informa ao Mestre que ele nem precisou fazer força para que tais descalabros ocorressem, os nativos mesmo se encarregaram do emporcalhamento desde que a terrinha foi descoberta há pouco mais de 500 anos. É da natureza deles, acrescentou.
            Será isso, Alberto? Será mesmo da nossa natureza? Será que isso acontece na Escandinávia? Ou na Islândia?
            Acho que agora você percebe que se trata sim de escrita terapêutica; minha angústia está demais; me desculpe o desabafo; não desejo abusar de sua paciência para comigo. Eu queria apenas uma semana de férias, passear, curtir uma praia, em companhia de minha amiga Clotilde. Era pedir demais? (Uma vez cortei cabelo de um homem já bem velho que, logo ao entrar no salão, sem mais nem menos, antes de um bom-dia, foi logo dizendo Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz. Na época, até assustei. Agora, aplica-se a mim o ditado.)
            Meu querido Alberto, enviaram para cá tropas do Exército, da Marinha, da Força Nacional, o escambau. Tenho esperança de poder voltar para casa qualquer dia desses. Em lá chegando, se sobreviver, volto a escrever a você. Por ora, esse inferno.
            Da sempre sua, com um beijo,
                                               
                                                                                    Suzete.

PS: O nome do homem famoso, pai da Ana Luisa, é Antonio Cândido.


Françoise Frenkel


Janelas quebradas de uma gráfica judia depredada, em Berlim. 
(Library of Congress Courtesy Everett Collection / Cordon Press)



Um certo bibliófilo, intrigado pela capa sóbria e pelo título enigmático do livro intitulado Rien Où Poser La Tête (Nenhum Lugar para Encostar A Cabeça), acabou por descobrir o testemunho de uma judia polonesa, fundadora da primeira livraria francesa de Berlim em 1921. Trata-se da obra de Françoise Frenkel, que passou 70 anos extraviada e reapareceu em um sebo de Nice em 2010.  
Ela cruzou a Europa fugindo dos nazistas: da capital alemã a Paris, e dali até Nice, onde cruzou a fronteira suíça. A autora terminou o manuscrito em 1944 à margem do Lago dos Quatro Cantões, na Suíça, onde seria publicado um ano mais tarde pela extinta editora Jeheber.
Segundo Álex Vicente, de Paris para El País (7 fev 2017),  “sentindo-se, enfim, a salvo, Frenkel pôs-se a escrever para registrar sua experiência. Mas o fez com rara contenção. Mais que uma denúncia da perseguição e da vida na clandestinidade ao longo de seu périplo, a obra foi concebida como uma homenagem “aos homens de boa vontade e valentia inesgotável” que conseguiram “resistir até o final”. A escritora deixou as passagens mais traumáticas de sua existência fora de suas páginas. Frenkel se esforça para ressaltar a generosidade dos estranhos. Insinua os comportamentos mesquinhos com um irônico desdém. O nome de seu marido, Simon Rachenstein, deportado para Auschwitz em 1942, nem sequer é mencionado.”
Frenkel morreu em janeiro de 1975, deixando apenas alguns documentos, algumas roupas e duas máquinas de escrever. Até hoje não foi encontrada nenhuma foto da autora.
Ainda não há previsão para a publicação da obra em português. Esperemos.