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quinta-feira, 16 de março de 2023



A BELEZA NUNCA SAI DE MODA

    Venho acalentando há algum tempo certa birra contra a necessidade que muita gente aparenta ter de gostar de um filme pela simples razão de ele ter se dado bem no Oscar. Sem saber do que se tratava, logo na semana de lançamento assisti no streaming "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo". Achei péssimo! Para usar uma expressão do tio Paulo, verdadeira "loucurada". Não é porque o mundo digital vai se tornando impenetrável para os pobres mortais dentre os quais me incluo, que o cinema como arte tão democrática que é precise ser tão complicado também. Além de ser  um filme plasticamente feio em que pese o critério beleza ser motivo de discussão ao tratarmos de arte. 

    Porém é de beleza mesmo que quero falar para sugerir a um ou dois leitores desse blog o lindíssimo filme "Os Banshees de Inisherin". A palavra banshee (do gaélico bean sídhe) é o nome dado a um espírito feminino presente nas histórias tradicionais irlandesas cujos gritos anunciam que alguém na  família irá morrer. Assistido em condições precárias na tela minúscula do avião na volta de minhas férias, me comoveu profundamente. Belissimamente filmado e com interpretações exatas dos dois protagonistas, o filme fala do que nos é mais caro: relações pessoais. Uma relação entre dois grandes amigos é quebrada e em algum momento um relembra que a amizade é como dançar um tango, é preciso que os dois estejam sempre em perfeita consonância. 

    Mas não é só isso, o filme trata também do desejo de imortalidade do homem que vai se encaminhando para os anos finais de sua vida, da recusa à mesmice dos mexericos e da brutalidade do lugarejo, do delicado afeto aos animais, da sede por algum tipo de arte e cultura quando a única diversão é um pint de cerveja ao final do dia. Tudo encenado nas paisagens remotas de uma ilha irlandesa. Só mar, montanhas riscadas por muros de pedra, vento e solidão como cenário para as emoções que cercam as relações humanas; lá estão amor, ódio, frustração, violência, delicadeza, misticismo, luto, perversidade. 

    E que trilha sonora!!! É maravilhoso como o cinema continua, a despeito de robôs, metaverso, avatares e o que mais temos de moderno hoje em dia, a nos encantar e comover com boas histórias. Sinto falta de um interlocutor para tratar de tantos e tão ricos detalhes que o filme mostra ou só insinua... Não percam!






domingo, 30 de outubro de 2022


 ARGENTINA 1985


    A Argentina viveu certamente a mais cruel e sangrenta das ditaduras modernas da América do Sul. Em nome do combate à grande ameaça do comunismo daqueles idos especialmente na década de  70 os mais atrozes crimes foram cometidos. Diferentemente de  nós brasileiros os argentinos já há um bom tempo tentam expurgar os excessos.

    O indefectível Ricardo Darín encarna no filme "Argentina 1985" o promotor Strassera que de forma inédita preside um tribunal civil que vai julgar os crimes perpetrados por grupo de militares das mais altas patentes. Há que convencer o povo, o cidadão comum que não acredita que todo o horror se passou sem que dele se apercebesse. Não viram ou preferiram não ver? Os relatos duros, difíceis não resvalam no sentimentalismo. Strassera é um destemido e o grupo de jovens promotores que o segue são incansáveis na procura por testemunhas, na reunião de provas, na demonstração de coragem. 

    As mães e agora avós da Praça de Maio continuam esperando uma resposta, um corpo, um atestado de óbito. Não desistem da luta contra a opressão e obscurantismo que pautou aqueles tempos. Strassera invoca uma frase da qual precisamos nos apropriar: "Nunca mais".


ARGENTINA 1985 disponível na plataforma  PRIME VÍDEO 

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

 O HOMEM IDEAL


    Nos habituamos o André e eu há muitos anos a assistir juntos a um ou dois filmes nos finais de semana. Alguns inesquecíveis e muitos umas verdadeiras patacoadas. Quando bons, tínhamos mote certo para longas conversas. Nas últimas semanas de vida do André sem querer arriscar perder tempo, passamos a rever bons filmes mais antigos: "As horas", "Fale com ela". O último filme que vimos juntos era um filme novo de 2021 que tem em português um título a meu ver pobre para o que é - "O homem ideal". Dirigido pela alemã Maria Schrader, tem como título original "Ich bin dein Mensch", que meu amigo alemão traduziu como em inglês "Eu sou o seu homem". Há meses após ler crítica elogiosa sobre o premiado filme aguardo seu lançamento nas plataformas de streaming, até que há pouco mais de um mês apareceu para alugar numa delas. O início é meio desconcertante, um pouco desconfortável. O expectador titubeia um pouco, mas segue. Ainda bem. Acompanhado por uma trilha sonora além do impecável o filme é de uma delicadeza que alguns certamente atribuirão à condução feminina da trama, eu penso que ela vem simplesmente celebrar o tema tratado: o que é SER humano e estar aberto ao amor.

    Sem entrar em detalhes para não dar spoiler, até porque as sinopses falam disso, a protagonista aceita participar de um experimento no qual vai conviver por alguns dias com um robô, um androide ou como se queira designar uma máquina em formato de homem, desenhado para atender a todos os seus desejos, necessidades e fantasias, devendo ao final fazer um relatório recomendando ou não a experiência. A ação se passa numa Berlim moderna, mas nada a ver com o cenário futurista de filmes semelhantes (quem se lembrou de Blade Runner pode tratar de esquecer). O homem ideal quer agradar com cuidadinhos, flores, champagne e sexo, por que não? No entanto esse ser humanoide não é de modo algum desprovido de senso crítico, ele observa os humanos com curiosidade e algum sarcasmo. Nada lhe escapa. Pensará a máquina no que está fazendo num mundo desses? Ele é aceito naturalmente pelos animais e se espanta com a falta de empatia dos humanos.

    E o que parecia uma experiência fácil para uma mulher já madura, uma cientista especialista em escrita cuneiforme tradutora de acádio, transforma-se numa armadilha na qual ela é forçada a olhar de frente os sonhos que foram desfeitos, frustrações que a vida amorosa e profissional nos impõem, a decrepitude e fragilidade da velhice, a morte, a inveja da felicidade alheia. E se de repente nada mais disso acontecesse? E se a imprevisibilidade da vida se extinguisse? Seríamos então destituídos do que nos faz humanos, transformados em autômatos perderíamos a capacidade extraordinária que temos de aprender a lidar com as perdas, encontrar consolo para esperanças frustradas, usar como se diz na psicanálise os recursos da mente. O resto fica por conta de quem se interesse por assistir.

    A atriz principal Maren Eggert tem uma beleza sem adornos e uma atuação maravilhosa que lhe rendeu o Urso de Prata no Festival de Berlim 2021. Já seu par Dan Stevens consegue compor um personagem que não é humano mas que nos comove ao expor ao longo do filme atitudes do homem que muitas mulheres desejam. A diretora Maria Schrader já é conhecida do público brasileiro pela impressionante minissérie exibida em plataforma de streaming "Nada ortodoxa" que trata da fuga de uma jovem da comunidade judaica ortodoxa de Nova Iorque.

    O homem ideal tem apenas uma característica que nos tempos atuais invejo: não morre nunca. Até a última vez que pude conversar com o André repeti para ele: queria muito que você fosse o homem ideal. Dávamos juntos uma risadinha triste sempre que eu falava isso. O homem ideal não existe. 




Disponível para aluguel na Apple TV ou para os assinantes Prime da Amazon

   

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Homens sem mulheres

 


 

Há dois dias comentei nesse blog o filme Drive my car, dirigido por Ryusuke Hamaguchi, verdadeira obra prima, em meu ponto de vista.

http://loucoporcachorros.blogspot.com/2022/04/doraibu-mai-ka-ou-drive-my-car.html . Não estava claro para mim se o roteiro havia sido baseado em livro ou apenas em um conto de Haruki Murakami, renomado escritor japonês. Imediatamente após ver o filme, minha mulher encomendou Homens sem mulheres, de Murakami (1ª edição Objetiva, 2015; 6ª reimpressão, Alfaguara, 2022). 

            O livro – que chegou em dois dias – contém sete contos, dos quais destaco o primeiro, Drive my car, e o último, Homens sem mulheres. A escrita é agradável, fluente, correta, e prende a atenção do leitor. Logo no início da primeira história surge a contratação de uma motorista pela personagem principal. No filme, este tema é central, porém surge depois de acontecimentos decisivos para o desenrolar da trama. Posso dizer que diretor e roteirista encaixaram a história da motorista de maneira brilhante, a dar a impressão que esta surgiu em seguida ao drama principal. É a arte de escrever roteiros, aqui levada à perfeição!

            Eis pequena amostra de diálogo entre a motorista e o protagonista do conto – e do filme:

 

“– Que cruel.

– É, é uma ideia cruel.

– Como ele havia dormido com sua esposa, o senhor queria se vingar dele?

– Não é bem vingança – disse Kafuku. Mas eu não conseguia me esquecer desse fato. De jeito nenhum. Eu me esforcei muito para esquecer. Mas foi em vão. A imagem de minha mulher nos braços de outro homem não me saía da cabeça. Essa cena sempre voltava. Como se uma alma que não tinha para onde ir estivesse grudada no canto do teto, sempre me vigiando. Depois da morte da minha mulher, eu achava que esse sentimento desapareceria com o tempo. Mas não. Parece até que ficou mais forte. Precisava dar um jeito no que sentia. Para isso, eu precisava eliminar algo que era como uma ira que tinha dentro de mim.” (p.42)

 

            Este é o tema inicial do filme, seguido do aparecimento da motorista. O filme acrescenta sua dramática existência, com uma infância pobre de afeto, sem qualquer perspectiva de uma vida melhor.

 

            Tenho por hábito antigo ‘checar’ o conteúdo de livros e seus respectivos filmes. Ambos podem ser ótimos, como em O nome da rosa, obra de Humberto Eco. O livro pode ser bom e o filme ruim, o que ocorre na maioria das vezes. Ambos podem ser péssimos, como Perfume, história de um assassino. Às vezes o filme supera em muito o próprio livro; cito apenas dois exemplos: O carteiro e o poeta e Drive my car

            Literatura e Cinema formam em belo par na Arte contemporânea.

 

terça-feira, 5 de abril de 2022

Doraibu mai kā ou Drive my car

 

 

 

Doraibu mai kā, ou Drive My Car é um épico japonês com 3 horas de duração. Minha tentativa será a de resumi-lo aqui, após tê-lo visto numa noite, e revisto no dia seguinte, tantas as emoções que em mim despertou. (Até o momento, na plataforma MUBI.)

            Mais uma vez ficção e realidade se entrelaçam a ponto de se tornarem indistintas, com um olhar extremamente humano e com o “tempo” dos orientais, muito lento, repleto de detalhes tão pequeninos que talvez seja necessário mesmo ver o filme várias vezes.

            A direção é de Ryûsuke Hamaguchi, roteiro de Ryûsuke Hamaguchie e Takamasa Oe. Elenco: Hidetoshi Nishijima, Park Yu-rim, Reika Kirishima, Tôko Miura. São nomes que me soam pouco familiares, nem sei como pronunciá-los, porém, ao final, são pessoas que eu gostaria de conhecer, conversar com elas. A informação de que disponho é a de que Hamaguchi e Oe se basearam em diferentes contos do escritor japonês Haruki Murakami para escrever o roteiro.

       Hamaguchi acredita que histórias salvam vidas, e enumera cuidadosamente personagens que aos poucos vão revelando suas histórias pessoais. No princípio, Oto, a esposa do diretor e ator de teatro Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) cria histórias (e assim sobrevive) após ter relações sexuais com diferentes parceiros e com o próprio marido, responsável por anotá-las.

       Com a morte de sua mulher, Kafuku se muda de Tóquio para Hiroshima e se entrega de corpo e alma a uma nova montagem da peça Tio Vanya, de Anton Tchekov. As experiências de vida recentes de Kafuku se misturam com as relações que ele desenvolve durante o ensaio da peça, principalmente com o galã Takatsuki (Masaki Okada), ex-amante de Oto. 

        O mesmo ocorre com a atriz surda Lee Yoo-na (Park Yu-rim), a única sul-coreana no elenco, que ensaia originalíssima comunicação através da linguagem de sinais com o diretor, os colegas de teatro e com o público. Considero este um dos pontos altos do filme.

        Porém, a relação mais impactante ocorre com a motorista Misaki (Tôko Miura), exigência feita pelos administradores para que Kafuku pudesse trabalhar; ele é obrigado, muito a contragosto, a ceder o carro antigo de estimação à motorista. Ao final do filme, conhecemos os dramas vividos por Misaki, motorista desde adolescente.

        Cada uma dessas personagens se esmera em contar suas próprias histórias, e de como chegaram até aquele presente momento de suas vidas, agora entrelaçadas a outras personagens. A totalidade delas, as histórias, é contada dentro do carro, quando Kafuku se desloca de um lugar a outro. (Uma das exigências de Kafuku aos administradores foi a de que sua moradia ficasse a uma hora do teatro, local dos ensaios diários, para que durante o trajeto ele pudesse repassar os textos.)

        Durante os ensaios, os dramas pessoais de cada um se mesclam com a história de Tio Vanya. Ficções que dão forças para essas pessoas seguirem adiante, encarando não só o trauma da realidade já vivida, como também a incerteza do que está por vir.

             Ao final, o expectador será capaz de apontar a personagem com quem ele mais se identifica. Detalhe de menor importância é o fato de Drive my car ter ganho o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2022. É o Filme que valoriza o Prêmio, não o contrário.

             Um filme inesquecível, para ser revisto de tempos em tempos.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Razão e emoção a partir do teatro grego

 

 

Das funções mais nobres da leitura, uma é a de provocar o leitor. Ela depende de dois fatores fundamentais: um bom texto, inteligente, de conteúdo instigador e boa forma literária, capaz de atrair aquele que o lê pela força da arte; em segundo lugar, o próprio leitor, se ele se deixa provocar, se preserva a curiosidade infantil e está aberto a novas ideias e especulações, se não se encontra cristalizado e imobilizado pelos ‘pré-conceitos’.

            Das formas mais eficientes de aceitar e elaborar a provocação contida numa boa leitura, uma é a de escrever sobre o que se leu e agora pode analisar, questionar, interrogar, aceitar, rejeitar ou duvidar do que se acaba de ler. Tal exercício, no mínimo, traz em si a capacidade de expandir entendimento, sentimentos e emoções, sobre o tema em questão.

            Adriane da Silva Duarte, professora de língua e literatura gregas na USP, faz a apresentação do livro O melhor do teatro grego (tradução de Mário da Gama Kury, Zahar editores, 2013), que contém as peças Prometeu acorrentadoÉdipo reiMedeia e As nuvens. Reproduzo aqui um parágrafo do belíssimo texto de Duarte:

 

“A emoção está no cerne da experiência dramática dos gregos. Platão e Aristóteles discorreram sobre o papel das emoções no teatro, especialmente no que toca à tragédia. Para Platão, buscar deliberadamente comover os expectadores, como fizeram, os tragediógrafos, é nocivo, pois enfraquece a parte racional da alma, debilitando o cidadão. Daí, entre outras razões, os poetas trágicos estarem excluídos da cidade ideal juntamente com os épicos. Já Aristóteles, embora tenha sido discípulo de Platão, compreende diversamente a questão. Para ele, o prazer da tragédia está em suscitar e purgar certas emoções, processo que ele denomina catarse. No caso da tragédia, essas emoções seriam o terror e a piedade, o que exigiria uma identificação entre o expectador e o herói trágico, de modo que aquele pudesse se colocar no lugar do último e temesse passar pelo que ele passa, apiedando-se dele, que sofre sem merecer. Desse processo, que Aristóteles não se digna a explicar na Poética, derivaria o prazer que sentimos ao contemplar obras de natureza artística.”

 

            “Buscar deliberadamente comover os expectadores” é o que chamei de provocação. A literatura faz isso magistralmente, mas não apenas a literatura; se dermos um salto para os tempos atuais, poderemos enfrentar o mesmo problema diante do cinema, tipo de arte de penetração extraordinária em todas as camadas sociais, e que por isso serve ao propósito deste texto quase ingênuo. 

            Há o filme e há o expectador. Por que existe o aficionado pelos filmes de terror? O que pretende ele ao desafiar o medo que as imagens lhe causam? (Porque se não causam, não faz sentido ver filme de terror...) Deseja apenas provar que é corajoso e valente? Ou se trata de desafiar as próprias emoções, na tentativa de dominá-las? 

            Há quem prefira ‘filme de amor’. Tipo sessão da tarde, daquele romantismo derramado que provoca suspiros e derrama lágrimas. Por que chorar diante da fantasia? Isso causa prazer ou dor? A emoção, represada, precisa transbordar? Para outros, serão lágrimas de enfado.

            Cinema de violência explícita e incontida faz sucesso mundo afora: são murros, tiros, rajadas de metralhadora, golpes de espada a transfixar o inimigo, jugulares esguichando suco de tomate, cenas horripilantes de tortura, tudo é apreciado a ponto da saliva escorrer pelo canto da boca de certo tipo de expectador. Para que? O que está a extravasar agora? Agressividade? Ódio? Ou é simplesmente a catarse aristotélica! Enquanto isso, “Alguns, achando bárbaro o espetáculo prefeririam (os delicados) morrer”, afirma Drummond em Os ombros suportam o mundo

            Filmes de suspense costumam ser apreciados, exceto pelos que não toleram sustos, seja porque prefiram a calma contemplativa, ou porque talvez vivam permanentemente assustados. As razões de tais preferências e aversões quase sempre nem o expectador conhece, bem guardadas no inconsciente de cada um. 

            O que todos ‘pré-sentem’ é a necessidade de aprender a lidar melhor com os próprios sentimentos e emoções. Para tal, há quem prescreva os clássicos da literatura; outros, a rodriguiana “vida como ela é”; ouvir Mozart ou Beethoven pode vir a ser um santo remédio; o cinema também serve, e muito – terminado o filme, é bom conversar sobre ele. Para os adeptos do bungee jumping, talvez seja necessária mesmo uma terapia.

            Estas são apenas algumas associações que me ocorreram diante das magníficas provocações de Adriane da Silva Duarte. Meu eventual leitor, pensa o quê?

sábado, 1 de janeiro de 2022

A Filha Perdida

 


Maggie Gyllenhaal

 

 

No último dia do trágico ano de 2021 os cinéfilos ganharam um presente: A Filha Perdida, filme inspirado no romance homônimo de Elena Ferrante. A direção é de Maggie Gyllenhaal (conhecida pela atuação em  "Secretária", 2002, e "Coração Louco", 2009), provavelmente a responsável por fazer um filme melhor que o livro. Plataforma Netflix.

            A protagonista, Olivia Colman (a rainha Elizabeth 2ª da série "The Crown”), igualmente coloca o filme como um dos melhores do ano, daí a razão da estreia em 31 de dezembro. Colman é Leda, uma inglesa de 50 anos que aluga uma casa de praia na Grécia para se isolar e preparar as aulas do próximo semestre; ela é professora universitária, especialista em literatura comparada, e que dá aulas em Cambridge, nos Estados Unidos. 

A Leda mais jovem é interpretada pela atriz irlandesa Jessie Buckley, relevada na última temporada da série "Fargo", em que interpretou a enfermeira serial killer Oraetta Mayflower. O desempenho de Buckley é outro grande destaque do filme.

Leda é uma pessoa complexa, com uma infância difícil e um casamento complicado pelo nascimento de duas filhas, a demandar o afeto que Leda não poderia oferecer. Sucedem-se as diferentes passagens da vida dela, destacando-se sempre a dificuldade com a maternidade.  Disso resulta uma mulher cheia de contradições, com sérios problemas de convivência social, dificuldades que afloram diante da chegada de uma família de gente grosseira e má, disposta a quebrar o sossego de Leda. Mais não posso revelar.

O que impressiona mesmo é a habilidade de Maggie Gyllenhaal, ao que parece o primeiro filme sob sua direção. Ela é responsável pelo toque feminino (e feminista?), sensível, alternando sentimentos de delicadeza e brutalidade durante o filme. A fotografia e a trilha sonora são excelentes. Há a participação de outros atores de renome, que deixo de citar, para surpreender o expectador.

Sem dúvida, um grande filme, composto por mulheres.

 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Mansa neurose

 

 

De antemão confesso que desde sempre cultivei o hábito de comprar mais livros do poderia lê-los. Frequentador assíduo de sebos e livrarias, desde os tempos da mocidade no Rio de Janeiro, com frequência levava para casa dois ou três volumes, quando a situação financeira era favorável. Por esta mania recebi duras críticas ao longo da vida, até mesmo de amigos próximos; às vezes, o riso era de mofa. 

            O riso de mofa se repetia quando adquiria o mesmo livro várias vezes, no lançamento de edições comemorativas, por exemplo. Grande Sertão, do Rosa, que me lembro, comprei quatro ou cinco exemplares. A meu favor digo que é a única coisa que gosto de comprar nessa vida. 

            Em tempos de isolamento pandêmico, que sigo à risca, a mansa neurose muito tem me valido. Ontem mesmo, domingo de chuva, fui a minha biblioteca à cata de um certo volume de Mircea Eliade, depois de assistir Youth Without Youth (Velha juventude, em português), filme teuto-franco-ítalo-romeno-estadunidense de 2007, dirigido por Francis Ford Coppola, baseado em novela do autor romeno. (Destacam-se os atores Tim Roth e Bruno Ganz.)

            Não encontrei o livro procurado – está cada vez mais difícil torcer o pescoço diante de uma prateleira, tirar os óculos, me aproximar, colocar os óculos, me afastar, tudo embaçado. Em remota estante, que não vasculhava há anos, para grande espanto, descobri uma preciosidade que não me lembrava ter adquirido! Um livro de Paulo Leminski! Ensaios e anseios crípticos, da Editora Unicamp, segunda edição ampliada, 2012. Edição bem cuidada, uma felicidade.

            Após consultar a ficha catalográfica e ver o detalhado índice, duas outras manias deste leitor, abri o livro aleatoriamente e li: 

 

M., DE MEMÓRIA

 
            Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
            Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
 
            Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Troia,
            Assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
 
            Um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
            Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
 
            Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
            Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
 
            Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
            Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.

 

 

            É assim que um poema fecha a crônica. Obrigado Leminski. E ri, quem não sabe que pode valer a pena cultivar uma neurose.

domingo, 31 de outubro de 2021

Play it safe




O curta-metragem quando é bom, pega na veia da gente. É o caso de Play it safe (2021), escrito e dirigido por Mitch Kalisa, disponível na plataforma MUBI.

            Depois de ver quatro vezes seguidas o filme de 12 min 58 seg, sinto imperiosa necessidade de escrever sobre ele; não penso que esteja fazendo um spoiler, pois o que realmente importa é o que ficará na mente de cada um que o assistir. Cada um ficará com seus próprios sentimentos e ideias sobre o que acabou de ver.

            À primeira imagem percebemos que se trata de uma aula para jovens aprendizes de teatro ou cinema; no centro da roda, uma moça imita um felino selvagem, ao rastejar pelo chão. Ao final ela é aplaudida, mas a professora pede mais empenho.

            Corte na cena: a sala será ocupada por outra classe, e o grupo se desloca para o andar de cima. No corredor, Jonathan (Jonathan Ajayi), o único negro do grupo, é convidado por alguns colegas, aparentemente de classe sócio-econômica superior, para uma festa, e denota certo desconforto. Os colegas afirmam que ele não precisa se preocupar com as despesas, que ficarão por conta deles. Além do que haverá uma moça muito interessada em conhecê-lo, e a fotografia dela no celular é mostrada a Jonathan. O desconforto dele agora é patente, ao ser tratado como objeto, foco até de curiosidade.

            Em seguida dois colegas lhe oferecem um papel em certo roteiro, que vem a calhar com sua pessoa, que será muito valorizada pelo texto. Jonathan segue cada vez mais desconfortável, bastante desconfiado e inquieto, diante da tentativa de manipulação francamente racista. Por quê o papel há de servir para um ator negro? (Não consegui ler o texto mostrado no filme, que parece indicar que o personagem seria um bandido.)

            Sentados no chão, formando uma roda, tem início o próximo exercício. A aluna passa uma cartola contendo baralho com figuras de animais. A colega retira carta com a figura de um esquilo e o representa. Agora é a vez de Jonathan; ele fecha os olhos e retira uma carta; a reação de contrariedade é imediata, o semblante se fecha, a perturbação é mais que evidente; a carta mostra a figura de um macaco.

            Talvez Jonathan não faça representação alguma, tamanha sua contrariedade. O grupo aguarda, apreensivo; a professora pergunta se está tudo bem. A dúvida sobre o que virá em seguida toma conta igualmente do expectador que vê o filme.

            Até que a atuação de Jonathan tem início. Lentamente ele se curva, fecha os punhos e os apoia no chão, com forte ruído. Urros guturais impressionantes são emitidos, à medida que o ator caminha pela sala. A câmera nunca o revela por inteiro, mostra apenas partes desfocadas de seu corpo, sua expressão facial não é revelada, o que potencializa o clima de suspense e mistério. 

            A câmera passeia pela sala, demora nas expressão de surpresa, aflição, mal-estar, medo, desconforto intenso de todo o grupo, incluindo a professora, que se assusta com um grito mais agudo do “animal”. Aos poucos Jonathan se aquieta, retorna ao seu lugar na roda, o suor pregado em sua testa.

            O grupo não volta a ser mostrado, termina o filme. O desconforto persiste em nós.

 

terça-feira, 12 de outubro de 2021

O Silêncio da Chuva , o filme



 

O Silêncio da Chuva é o primeiro de longa série de romances policiais de autoria de Luiz Alfredo Garcia-Roza, publicado em 1996. Com este livro surge o personagem que ganhou fama nacional e internacional (o livro foi publicado em diversos países), o Inspetor Espinosa, protagonista de quase todas as histórias do autor. O romance ganhou o Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira e o Prêmio Jabuti, duas das mais prestigiosas premiações da literatura brasileira.

Garcia-Roza, ex-professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de oito livros sobre psicanálise e filosofia, deixou perplexa a comunidade acadêmica ao abandoná-la e se tornar autor de ficção, mais precisamente do gênero romance policial. Sua morte, em abril de 2020, foi chorada nesse blog. Sou fã!  https://loucoporcachorros.blogspot.com/2020/04/morre-garcia-rosa.html

Surge agora o filme, uma adaptação da obra de Roza, com o mesmo título e direção de Daniel Filho, roteiro de Lusa Silvestre, cuja estreia ocorreu em setembro último.

Eu estava enganado. Lázaro Ramos dá um show. Relato aqui duas cenas curtas, logo no início do filme, que tratam do preconceito. Em rápido diálogo com um suspeito – é claro que houve um crime! –, o interlocutor pergunta a Espinosa, Por que você tem esse nome? Em outra conversa, uma mulher afirma irônica, Até que você fala direitinho! São duas manifestações de racismo, bem humoradas, pois o detetive se espanta mas não se ofende, suficientes para reafirmar definitivamente a escolha correta de Lázaro Ramos para o papel principal.

Nada pretencioso, o filme é muito bom! O elenco é de primeiríssima: além do Lázaro, Thalita Carauta, Cláudia Abreu, Mayana Neiva, Otávio Muller, Pedro Nercessian, Bruno Gissoni, Peter Brandão, Raquel Fabbri, Theresa Amayo, Késia Estácio, com participações especiais de Guilherme Fontes e Anselmo Vasconcellos.

            A fotografia de Felipe Reinhemmer é excelente, cenas do Rio de Janeiro. 

            Como assinalei, trata-se de adaptação do livro de Roza. O melhor da história não poderia mesmo ser transposto para um filme, dada a sua complexidade e amplitude: a personalidade do inspetor Espinosa. O filme se torna apenas um bom policial, com crime de difícil solução, trama bem contada, caça implacável ao assassino. 

            Sugiro que o leitor não deixe de ler o livro, editado pela Companhia da Letras.

            

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Quo Vadis, Aída?

 


 

Entre tantos propósitos, incluindo o entretenimento, o Cinema, como o livro, tem a capacidade de registrar fatos históricos para a posteridade. Evidente que o ponto de vista revelado no filme tem a marca do diretor; mas a História também não funciona assim?

Quo Vadis, Aida?, produção da Bósnia e Herzegovina, indicada ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, retrata de forma poderosa um dos momentos mais horrorosos na história da humanidade, ao contar a história do massacre de Srebrenica, em 1995, quando mais de 8 mil bósnios muçulmanos foram assassinados por tropas sérvias.

Com roteiro e direção de Jasmila Žbanić, Quo Vadis, Aida? centra a narrativa na personagem ficcional Aída (Jasna Djuricic), que trabalha como tradutora da ONU em Srebrenica, quando o exército sérvio ocupa de forma violenta a cidade; seu marido e os dois filhos estão entre os milhares de cidadãos que procuram abrigo. 

O desempenho da protagonista lembra O filho de Saul, cujo protagonista também corria desesperado de um lado para outro, sem saber para onde ir, em uma câmara de gás instalada pelos nazistas. Aída é intérprete, esposa, mãe, cuidadora, uma faz-tudo num ambiente non-sense, beco sem saída, situação de desespero crescente, a terminar na tragédia maior.

O filme tem início com a inacreditável negociação envolvendo a ONU, os bósnios e sérvios, cuja irresponsabilidade coloca em risco a vida de milhares de bósnios muçulmanos, verdadeiro caos a revelar a falência das instituições – especialmente da ONU.

      Volto a destacar, o filme é necessário, a despeito de sentimentos como angústia, tristeza e indignação que gera no expectador. Muito de tais sentimentos são provocados pela atuação magistral da atriz principal, Jasna Djuricic.

      Imperdível!

 

 

https://www.adorocinema.com/filmes/filme-285499/criticas-adorocinema/

 

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Um grande ator!

A foto do dia 


Aos 83 anos, Anthony Hopkins, natural do País de Gales, ganha seu segundo Oscar, com o filme Meu Pai. Um grande ator!

sábado, 17 de abril de 2021

À espera dos bárbaros


 

 

Acaba de estrear na plataforma Mais Apple TV o ótimo filme À Espera dos Bárbaros, adaptação do romance homônimo do Nobel de Literatura J. M. Coetzee (Companhia das Letras, 2006), dirigido pelo colombiano Ciro Guerra.

Um juiz anônimo (Mark Rylance), autoridade única representante de um império não identificado, num povoado localizado em vasto deserto distante, em país desconhecido, vive em completa paz.  A súbita e inesperada visita do sinistro Coronel Joll (Johnny Depp), enviado plenipotenciário do império central colonialista, chega para obter informações sobre uma suposta invasão de inimigos, os povos autóctones – por eles denominados bárbaros.

O coronel pretende descobrir a "verdade", aparentemente oculta pelo pacato juiz, desde logo acusado de conluio com os bárbaros; desde o início da história, fica claro que ele deseja encontrar a verdade que convenha ao império, e a encontra utilizando-se da tortura mais desumana possível. A inesperada violência desconcerta o juiz, homem que vivia ocupado apenas com os achados arqueológicos da região, em particular com tabuinhas cobertas por uma escrita também desconhecida.

O pacato protagonista (cuja interpretação vale o filme), ao não perceber a brutalidade do sistema dominante, busca recuperar o controle do povoado e socorrer aqueles que foram torturados pelo coronel Joll. Ele falha em todas as suas ações, embora siga perguntando “onde está o inimigo”? De tanto procurar, o inimigo acaba aparecendo.

A despeito de tudo que é desconhecido e oculto na realidade apresentada ao expectador, o simbolismo de À espera dos bárbaros é riquíssimo e bastante claro; o filme é uma grande metáfora.

Coetzee é o roteirista que adapta seu próprio livro, empreitada que nem sempre oferece bons resultados, mas que aqui só faz abrilhantar a direção de Ciro Guerra.

À Espera dos Bárbaros nos faz relembrar de maneira inequívoca os malefícios das ideologias totalitárias, quaisquer que sejam suas origens ou tendências. Em outras palavras, para usar bordão atualíssimo, Ditadura Nunca Mais!

       (Inicio hoje mesmo a releitura do romance!)

sábado, 10 de abril de 2021

Meu Pai

 

 

Posso me lembrar, de pronto, de dois filmes recentes que tratam do tema da demência, de forma a emocionar profundamente àqueles que gostam de cinema: Amor e Para sempre Alice. A eles se soma agora o espetacular The Father (Meu Pai), estrelado por Anthony Hopkins e Olivia Colman. O diretor Florian Zeller é autor da peça de teatro Le Père, que deu origem ao filme; a adaptação é muito bem feita, de modo a explorar os elementos audiovisuais do cinema com maestria.

            Desde as primeiras tomadas no interior de um amplo apartamento o diretor busca desorientar o expectador com uma sequência de cenas nas quais a troca contínua de personagens não faz qualquer sentido para o protagonista – nem para o suposto sadio expectador. Desde logo o brilhante desempenho de Hopkins acentua tal impressão, tamanha a expressividade dos diálogos, quando ele ainda aparenta ser um homem normal, que apenas não sabe o que está acontecendo. Logo em seguida o estado de demência torna-se evidente. A partir daí, não tenho adjetivos para descrever a atuação desse ator. 

            Passados dez ou quinze minutos desde o princípio do filme pude notar em mim profundo desconforto, uma certa aflição, que só o cinema de qualidade pode proporcionar; afora aquilo era meu, e ainda o é no momento em que escrevo esta crônica, independentemente da história.

            Meu Pai fala das relações da pessoa idosa com a família, filhos, da vida cotidiana, quando a velhice é acompanhada da deterioração mental e a percepção do mundo real sofre definitivas transformações. Cenas emocionantes entre pai e filha são valorizadas pelas atuações de Hopkins e Olivia Colman. 

Nas cenas finais, a dor psíquica causado pela doença, a sensação de completo abandono e desamparo, a ponto de Anthony – o protagonista toma emprestado o nome do ator e sua data de nascimento – chamar pela mãe e chorar como um bebê.

Há grande diferença em retratar a demência já instalada, de que trata Meu Pai, e o processo de demenciação, revelado em Amor e Para sempre Alice. No primeiro filme as alucinações, delírios, perda grave da memória, desorientação de tempo e espaço, mudanças bruscas e violentas de humor surgem desde o princípio, sem que se possa fazer qualquer ideia de quem foi aquela pessoa antes da doença. Nos dois outros filmes citados, os pequenos lapsos, os esquecimentos – em especial de nomes próprios, o que pode ser bastante aflitivo –, as alterações inesperadas e desproporcionais de humor, até mesmo a depressão, marcam, como o próprio nome indica, o processo de demenciação. Em ambas as situações, o sofrimento do paciente e de quem está a sua volta é sempre muito grande.

Quando me refiro àquilo que é meu, aos 74 anos de vida, é só meu: esta crônica é uma pálida tentativa de repartir com o eventual leitor o modo como vi The Father. Tenho enorme dificuldade em lembrar nomes próprios; há dois dias coloquei açúcar cristal no saleiro e estraguei a salada de minha mulher; esqueço o gás do fogão aceso após retirar a panela do fogo; ligo a máquina de lavar para adiantar o serviço e me esqueço de estender a roupa para secar; perco o celular pela casa; quando não posso me esquecer de algo, tomo nas mãos um objeto qualquer, para não me deixar esquecer, mas acabo me esquecendo da serventia daquele estranho objeto. Melhor parar por aqui.

O exercício diário de escrever é a tentativa de preservar o que resta de minha mente. Não se trata de tentativa desesperada porque me é fonte de grande prazer.

Vale a pena ver Meu Pai.

 

 

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Longe dos homens



 

Um bom título valoriza um filme; é o caso de Longe dos Homens (Loin des hommes), dirigido por David Oelhoffen e estrelado por Viggo Mortensen (Daru) e Reda Kateb (Mohamed), cuja estreia ocorreu em 2014. O filme é inspirado (e não baseado) no conto de Albert Camus intitulado O hóspede, do volume O exílio e o Reino (Record, 1997). (Está no TeleCine.)

            A história se passa na Argélia, ainda colônia francesa, no período que antecedeu a Guerra da Independência, anos 50. Em meio à paisagem seca, desértica, árida ao extremo, localiza-se a escola onde leciona e mora o professor Daru, um prédio baixo, de bom tamanho, no meio do nada. A fotografia é belíssima, apesar do nada. No filme somos logo apresentados à classe: espaçosa sala de aula, carteiras bem postas, o quadro-negro, um grande mapa da África, os pequeninos atentos à fala do afetuoso  professor. (No conto de Camus a presença dos alunos é apenas sugerida.)

            Daru, embora argelino, descende de família espanhola, e por isso é rejeitado tanto pelos franceses quanto pelos colonizados; ele é determinado em seu objetivo:  alfabetizar as crianças daquele ermo. O  trabalho é violentamente interrompido por um certo militar que traz até a escola um árabe como prisioneiro e incumbe o professor de conduzi-lo à cidade mais próxima onde será julgado pelo assassinato de um primo.

            A princípio o professor recusa a estúpida tarefa, discute com o militar, sugere ao prisioneiro que fuja, quando afloram interessantes dilemas éticos e filosóficos entre os personagens. (O conto acaba por aqui.) Daru decide levar o prisioneiro, e a partir de então diretor e roteirista criam narrativa repleta de ação com participação dos rebeldes argelinos, e ao final, do exército francês. Violência, ameaça constante de morte, ética e filosofia estão presentes em todo o transcorrer do drama.

            (Repete-se, às tantas, a velha desculpa para ações criminosas, em especial para os crimes de guerra: “Eu apenas cumpro ordens”, informa o oficial francês.)

Ao final, como que por milagre, Daru e Mohamed são libertos; o professor retorna à escola; o árabe escolhe seu destino. O filme termina com o aviso que aquela será a última aula – a guerra está para começar –, o que enche de lágrimas os olhos das crianças.

            No início do texto informei que Longe dos homens não se baseia no conto de Camus, pois ele se refere apenas aos minutos iniciais do filme, a apresentação da paisagem e dos protagonistas. Mas é extraordinário que um diretor de cinema, provavelmente com a ajuda de um bom roteirista, que ambos possam se inspirar em Camus e elaborar história tão rica em aspectos humanos e históricos, a partir de um conto quase singelo.

Um raro exemplo (ou nem tão raro assim) do cinema que supera a literatura. 

            

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Relatos do mundo

 

 

Com o estranho  título Relatos do mundo, a sugerir algo mais sofisticado, a Netflix tenta ressuscitar o velho e agonizante western, espécie de gênero que parece desafiar tantos diretores de cinema.

            O argumento baseia-se em Rastros de ódio, do grande John Ford. Relatos contém todos os detalhes que se repetem invariavelmente em cada filme de mocinho: um homem bom em luta permanente contra a humanidade má, os revólveres antigos tipo colt, espingardas enormes, cavalos, carroça, a roda da carroça que se quebra, caminhadas debaixo do sol escaldante de um deserto infinito, a sede mortal e a água do cantil que acaba. É a deliciosa repetição desses detalhes que fazem o western sobreviver.

            O filme dirigido por Paul Greengrass tem tudo isso de forma bem dosada, nada de grandes arroubos, o ritmo lento acompanhado de uma fotografia espetacular. (O espectador não pode exigir muito não. Tem que gostar e pronto.)

            Há algo extraordinário no filme, o ótimo desempenho de Tom Hanks, cuja versatilidade possibilita a encarnação de um mocinho diferente, ético acima de tudo, cujo papel empresta título ao filme. Acompanha-o na história uma menina muito branca e demasiadamente loura (Helena Zengel), perdida no mundo, completamente desamparada, à mercê dos homens maus, com atuação brilhante. Quando a munição da espingarda de caça acaba, é ela que surge com solução originalíssima!

            Em tempos em que os machões estão em baixa, Hanks é o oposto de John Wayne, quase um intelectual, mas que também sabe lutar e matar os bandidos.

            Senti falta de uma boa trilha sonora, elemento fundamental nesse tipo de filme.

            Com todas as limitações, para quem aprecia o gênero e sabe ser generoso, vale a pena assistir Relatos do mundo

            

 

domingo, 4 de outubro de 2020

Música "brega"





Para início de conversa, uma informação importante:

“O Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB) é uma organização sem fins lucrativos sediada em Niterói – RJ que é voltada para a pesquisa, preservação e promoção da Música Popular Brasileira. ...Fundado em 2006, o IMMuB conseguiu mapear e catalogar mais de 82 mil discos produzidos no país. Isto equivale a aproximadamente 580mil fonogramas, reunindo mais de 91 mil compositores e intérpretes. Fruto de 25 anos de pesquisa, a catalogação abrange toda a história da música brasileira, desde a primeira gravação em 1902 até os lançamentos mais recentes. O acervo segue em constante expansão, recebendo centenas de discos, capas e músicas mensalmente.” 

 

No site do IMMuB, o tema do mês de outubro é “Sem vergonha de amar: a música brega”, texto de Tito Guedes.

Preciso confessar algo aparentemente insólito, pois oriundo de quem vive falando de música clássica o tempo todo, ouvindo Beethoven, Bach e Chopin até na hora de preparar o almoço, fã de Ärvo Part, fã da Osesp, esse blá-blá-blá sobre sonatas noturnos trios quartetos sinfonias missas e agora preciso confessar que gosto de música brega, desde que assisti  o filme brasileiro Paraíso Perdido, pela quarta ou quinta vez. E me emociono às lágrimas, choro perdido no paraíso.

Passemos ao texto de Tito Guedes. 

“Talvez um dos termos mais difíceis de se definir com precisão na música brasileira seja o “brega”. Atualmente emoldurado por uma aura quase cult, ele engloba artistas com produções tão variadas quanto WandoReginaldo Rossi, Waldick Soriano, Sidney MagalMarcio Greyck e Lindomar Castilho. O que esses artistas têm em comum é sobretudo a vocação para falar de amor e sentimentos, o apelo popular e uma coleção robusta de hits.”

Gostei da expressão “aura quase cult”! Um estímulo para que eu me afaste um pouco da elite cultural, acadêmica, e me permita gostar tanto do filme quanto da chamada música brega. Além do que, há bregas e bregas. A breguíssima eu não aguento!

Penso que as letras têm forte influência na definição do que é brega e o que não é. O extremo mau gosto de que comumente é que acusado esse tipo de música talvez venha daí. Já as músicas propriamente ditas, já sabemos, são românticas, melosas mesmo, simples, melodias quase infantis, certamente pueris. A tragédia está sempre na letra, é claro, e este é um problema a ser tratado pelos estudiosos da Linguagem.

Alerta Guedes que no brega “cabe samba-canção, balada romântica, música pop, discotèque, bolero, samba, guarânia, tango, rock´n´roll, soul music, ritmos latinos, música cigana, enfim…tudo!” Tudo que for de mau gosto para o gosto da elite, acrescento eu. 

Mas o estilo continuou se desenvolvendo; no Pará e no Recife, surgiu o “brega pop”, como a lambada e o axé; depois veio “brega funk”, revelando “a pluralidade e a força disso que se convencionou chamar de “música brega”.

Guedes enfatiza: “O fato é que esse estilo se consolidou nesses anos todos como um patrimônio afetivo e cultural da música brasileira.” E enumera alguns hits imperdíveis: “Fogo e paixão” (Wando), “Impossível acreditar que perdi você” (Marcio Greyck), “Sonhos” (Peninha), “Eu vou tirar você desse lugar” (Odair José), “Galeria do amor” (Agnaldo Timóteo), “Mon amour, meu bem, ma femme” (Reginaldo Rossi), “Última canção” (Paulo Sérgio), “Você não me ensinou a te esquecer” (Fernando Mendes), tidas como verdadeiros clássicos da MPB. 

Guedes conclui: “O brega seria o que há de mais simples e ao mesmo tempo mais sublime, como um “arroz e feijão com tempero de mãe”... É, enfim, viver sem vergonha de amar e amar sem vergonha.”

A música brega me traz alegria, revira meus sentimentos, de certo modo parece que me faz voltar à adolescência. Eu gosto de música brega.

 

https://immub.org/p/o-instituto

 

https://immub.org/noticias/sem-vergonha-de-amar-a-musica-brega



Em tempo (8 out 2020):


Paulo acrescentou comentário tão adequado ao texto, tão esmerado na forma, que resolvi incorporá-lo aqui:


“São muitos "eus". O que esteve sempre à tona foi aquele que passou a vida a tentar refinar ("educar") o gosto pelas artes - e isso vale para a música, para a pintura, escultura, etc.. Agora é chegado o momento de um certo "eu", que passou a vida envergonhado e escondido num canto da mente. Deixá-lo então vir ao palco, movido por razões do inconsciente, do afeto, das repressões finalmente liberadas, da liberdade afinal conquistada. Este eu, agora desamarrado, pode ter o direito de se expressar, ainda que seja um exercício de fantasia. Por que não?”  


Obrigado, Paulo. 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Phantom thread



 O homem que surge desde a primeira cena impressiona, domina, fascina, catalisa todas as atenções, parece um magnetizador capaz de fazer o mundo girar em torno de si mesmo. Estilista poderoso – veste a Casa Real Britânica –, vive exclusivamente para a profissão: criar vestidos. 
             Ele traz no forro de seu casaco um feixe de cabelos de sua falecida mãe, “para que ela esteja sempre ao meu lado”. E costura costura costura, meticulosamente, sob a vigilância constante da irmã e da mãe morta, que chega a se materializar algumas vezes, nas alucinações do costureiro, um dos fantasmas. 
             (Nunca imaginei que pudesse assistir um filme de um homem que só faz costurar vestidos.)
             Até que surge Alma, garçonete que impressiona desde o primeiro instante, pela capacidade de satisfazer o pedido do estilista, um sofisticado café da manhã. Ela se torna a partir de então, modelo, musa inspiradora, amante, e por fim, esposa.
            As relações entre esses três personagens movem o filme: o trabalho como tema central, obsessão vivida com rigidez, aspereza, crueldade mesmo, tudo menos amor. Os vestidos valem bem mais que as mulheres que os usam. Tudo são coisas.
            Apenas Alma resiste; nem sempre concorda com o homem; desobedece mesmo, rebela-se; deseja ser amada, mas talvez não saiba o que é o amor.
            Em resumo, o filme é belíssimo (nunca imaginei...), os atores excelentes, com destaque, é claro, para Daniel Day-Lewis (o estilista Reynolds Woodcock); o trabalho do diretor, Paul Thomas Anderson, é espetacular; ótima fotografia; incrível trilha sonora. O título em português, Trama Fantasma, deturpa o sentido do filme. 
            Um grande filme. (Nunca imaginei...)




sábado, 12 de setembro de 2020

Ainda estou pensando...

 

Jessie Buckley ouve explicações de Charlie Kaufman

no set de 'Estou Pensando em Acabar com Tudo'.

MARY CYBULSKI/NETFLIX

 

 

Charlie Kaufman  ganhou o Oscar de melhor roteiro original com o filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, e recebeu duas outras indicações ao mesmo Oscar como roteirista com Quero ser John Malkovitch (2000) e Adaptação (2003). Fora isso, que não é pouco, nada que chamasse a atenção do público. Agora, como diretor e roteirista, surge Estou Pensando em Acabar com Tudo, pela Netflix, obra capaz de emocionar alguns e causar profunda irritação em outros.

            Pertenço ao primeiro grupo, penso que o filme é extraordinário mesmo. Por que então irrita a tantos? (Minha mulher deixou a sala de tevê no meio do filme.) A reportagem de Rocío Ayuso, de Los Angeles para El País (11 set 2020), traz o relato de um fato bastante sugestivo, que nos incentiva a perseverar e assistir até o fim:

“Buckley, que interpreta a protagonista, substituiu a atriz Brie Larson poucos dias antes do início das filmagens e, quando recebeu o roteiro, ele veio com um bilhete de Kaufman que dizia: “Não se preocupe. Eu sei exatamente do que se trata”. Kaufman volta a rir com a história. "Às vezes vou longe demais na minha cabeça. Suponho que isso se deva a essa personalidade obsessiva compulsiva que tenho e às minhas ansiedades. Mas gosto de perseverar, de cavar mais fundo, porque é aí que encontro a verdade. " (O grifo é meu.)

 

            Se o expectador acreditar que em algum momento tudo aquilo fará sentido, então ele chega ao fim do filme e há de se surpreender com ele. Acredite no diretor: “Eu sei exatamente do que se trata.” (Terminada a sessão, vale a pena ler alguma crítica, de quem se debruçou sobre a obra, buscou informações que podem nos auxiliar na compreensão da rica mensagem de Kaufman. A Internet está repleta delas.)

            Acrescenta Kaufman:

 

“É disso que mais gosto na física quântica”. ...“É o que me faz sentir emocionalmente equilibrado ao me fazer ver a enormidade do mundo, que é muito mais complicado do que posso entender. Nem tudo é sobre mim, e isso, curiosamente, me tira da minha zona de conforto.”

 

            Charlie Kaufman é um homem corajoso. Foi capaz de retratar a Realidade Psíquica do “protagonista” com maestria.

 

https://brasil.elpais.com/cultura/2020-09-11/charlie-kaufman-a-fisica-quantica-me-faz-sentir-emocionalmente-equilibrado.html