A recente publicação dos Diários de Franz Kafka pela Editora Todavia (2021), com tradução de Sergio Tellaroli, é uma preciosidade, mas não se engane o futuro leitor, a leitura é indigesta e precisa ser degustada aos poucos.
Em 1909, com dia e mês indeterminados, Kafka escreveu:
“Depois de cinco meses da minha vida durante os quais não consegui escrever nada que me satisfizesse e dos quais poder nenhum vai me ressarcir, embora todos tivessem obrigação de fazê-lo, vem-me a ideia de tornar a falar comigo mesmo. Toda vez que me interroguei de fato, sempre respondi, sempre houve o que arrancar de mim, deste amontoado de palha que sou há cinco meses e cujo destino parece ser o de pegar fogo e arder no verão mais rapidamente do que o espectador é capaz de piscar.” (p. 10)
Para quem escreve quase que diariamente – embora eu não escreva um diário –, destacam-se neste texto, como um grito desesperado, as palavras “nada que me satisfizesse”. É um vai-e-vem sem fim: ao mesmo tempo que nada satisfaz o autor, todos ‘teriam a obrigação de ressarci-lo’, pois ele conhece o próprio valor. (Freud diria que se trata de uma neurose.)
A ideia de escrever um texto sempre à altura do próprio autor cai bem em Kafka, considerado um dos maiores escritores de todos os tempos. (Há quem diga: há uma Literatura antes e depois de Kafka.) Porém, a ‘obrigação’ de escrever sempre ‘à altura’ deve constituir-se num tormento. Os Diários, que não foram escritos para serem publicados, dão bem a ideia de que Franz Kafka era um homem atormentado, e que exigia demasiadamente de si.
Kafka, contemporâneo de Freud – ambos escreviam em alemão –, afirmou que desejava “manter-se o mais longe possível da Psicanálise”. Uma pena, digo isso sem qualquer arrogância ou pretensão, mas ele bem que poderia ter abrandado aquele superego. Então não seria Kafka, dirão alguns. Por que não, digo eu? O mesmo Kafka, com mais compaixão e tolerância para consigo mesmo. W. R. Bion chamou o fenômeno, relativamente comum entre personalidades, de “ódio à psicanálise”.
A segunda ideia interessante expressa no pequeno texto é a de ‘falar consigo mesmo’, utilizando-se da escrita. E Kafka afirma que sempre respondeu, que sempre houve o que ‘arrancar de si’. A isso, com frequência neste blog, denomino Escrita Terapêutica. No entanto, o exercício desta escrita implica antes de tudo num rebaixamento da autocensura, no abrandamento do superego, em especial quando se publica o que se escreve, mesmo num simples blog como este, expondo-se o autor às críticas sempre benvindas.
Porém, como desincumbir-se desse exercício quando o autor se considera um “amontoado de palha cujo destino parece ser o de pegar fogo e arder no verão mais rapidamente do que o espectador é capaz de piscar”? Incontáveis as vezes em que Kafka referiu-se a si mesmo com tamanha severidade e baixa autoestima. (A leitura de Carta ao pai haverá de nos esclarecer um pouco a respeito dessa particularidade kafkiana.)
A despeito disso tudo, Franz Kafka nos deixou obra monumental! Escrever é preciso.