terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Suzete em apuros


             Tão logo recebi a notícia pelo celular da própria Suzete, tomei o primeiro voo para São Paulo, aluguei carro no aeroporto, rumei para a cidade de A., distante aproximadamente 300 Km da capital, onde reside Suzete. Não poderia deixar de prestar-lhe apoio num momento tão difícil.
            Cheguei a A. no começo da tarde e ainda encontrei Suzete na delegacia, exausta, diante de interminável interrogatório sobre o assassinato. Confesso que levei um susto ao ver nossa querida Suzete, pacífica cabeleireira, especialista em corte de homem, envolvida em um crime. Sim, envolvida, ou por quê outra razão estaria então sendo submetida àquele massacrante interrogatório?
            Liberada pelo delegado, sob a condição de não deixar a cidade em hipótese alguma, Suzete levou-me para sua casa, respirou fundo e contou-me o sucedido. Reproduzo aqui suas próprias palavras.
            “André, nem te conto. Sou eu quem abre o salão todas as manhãs, por ser a mais antiga e ter a confiança de Albertina, a dona do estabelecimento. O tranco que levei ao ver a cena foi como se levasse um soco na cara. Bem na minha cadeira, estirado, quase caindo, estava o corpo de um homem completamente nu, a cabeça pendida para trás, com uma palidez impressionante, mais parecia de cera, com uma tesoura – a tesoura que utilizo para cortar cabelo de meus clientes – cravada na virilha! No chão, uma enorme poça de sangue escuro.
            Numa primeira avaliação, o perito constatou que houve secção da artéria femoral direita seguida de exsanguinação. Ou seja, o homem foi sangrado até a morte!
            Fico arrepiada só de lembrar, André. Mas que bom que você está aqui comigo, nunca imaginei passar por uma situação dessas, fui eu quem encontrou o cadáver, bem na minha cadeira, e com a minha tesoura cravada na virilha. O assassino (ou assassina) deseja me incriminar, estou certa disso, daí a razão do interrogatório do delegado que não acabava mais.
            Na lógica do delegado, o assassino sabe manejar uma tesoura com extrema destreza. Não pude negar minhas habilidades... Mas jamais faria uma coisa daquelas: metade do cabelo do homem estava intocada, a outra metade cortada rente, com máquina zero. E o perito notou também um pequeno corte na parte superior da orelha direita, sugerindo acidente no momento do corte de cabelo, fato bastante comum nas barbearias mas coisa que eu jamais faria.”
            Perguntei, e quem é o morto? Gente conhecida sua, Suzete?
            “As roupas encontradas no chão não continham qualquer documento, não se sabe até agora quem é o sujeito. André, mas eu tenho um suspeito. Melhor dizendo, uma suspeita. Margarida não foi trabalhar hoje, e ela nunca falta. O telefone dela não atende, fora de área. Sabe, ela é uma moça estranha, está no salão faz poucos meses, sempre calada, corre o boato que ela mexe com feitiçaria, é o que dizem, você deve conhecer o ditado: Salão de beleza e barbearia, paraíso da fofocaria.”
            Confesso meu atordoamento com tanta informação, recebida em tão pouco tempo. Saímos para comer alguma coisa, que eu ainda estava com o café da manhã, varado de fome. Tentei mudar de assunto, perguntar como estava a vida de Suzete, se tinha namorado, essa conversinha boba para distrair. Mas ela só podia falar do assassinato, repetia a descrição da cena que encontrou ao chegar no salão, a tesoura cravada na virilha... “Como era possível cravar a tesoura e o homem permanecer estirado na cadeira? Então ele não reagiu, permaneceu imóvel diante da tesourada? Ainda por cima nu? E que golpe certeiro, um único golpe e lá se foi a artéria femoral? O cabelo cortado pela metade?”  Suzete não parava de fazer perguntas a si mesma, diante do crime inexplicável, atormentada pela suspeita que recaia sobre ela.
            Três dias depois eu estava de mala pronta para voltar para casa, Suzete mais sossegada, quando logo pela manhã ela recebe telefonema do próprio delegado, pedindo o comparecimento dela à delegacia. Novo susto. Fiz questão de acompanhá-la, identifiquei-me diante da autoridade, e para meu espanto, ouvi relato extraordinário das investigações levadas a cabo até aquele momento. Eis a fala do delegado, proferida com ares de profundo conhecedor do assunto, talvez até mesmo se tratasse de um especialista:
“O arsênio (do grego auripigmento amarelo) é conhecido desde tempos remotos assim como alguns de seus compostos, especialmente os sulfetos.          
           Dioscórides e Plínio conheciam suas propriedades; Celso Aureliano, Galeno e Isidoro Largus sabiam de seus efeitos irritantes, tóxicos, corrosivos e sua ação parasiticida, e observaram suas virtudes contra a tosse, afecções da voz e dispneia.
Os médicos árabes usaram também compostos de arsênio em inalação, pílulas e poções, e também em aplicações externas. Durante a Idade Média os compostos arsenicais caíram no esquecimento sendo relegados aos curandeiros que os prescreviam contra algumas enfermidades. Roger Bacon e Alberto Magno se detiveram no seu estudo.
O primeiro que o estudou em detalhes foi George Brandt em 1633, e Johann Schroeder o obteve em 1649 pela ação do carvão sobre o ácido arsênico. A Jöns Jacob Berzelius se devem as primeiras investigações acerca da composição dos compostos de arsênio. A partir do século XVIII os compostos arsenicais conseguiram um posto de primeira ordem na terapêutica até serem substituídos pelas sulfamidas e os antibióticos.
            Porém, o arsênio continua sendo um veneno mortal, utilizado em muitos assassinatos. Pois nosso perito chamou-me a atenção para a tonalidade cinza metálico encontrada na extremidade da orelha direita do cadáver, exatamente no ponto onde havia um corte provavelmente efetuado pela tesoura. Um rápido exame toxicológico revelou forte presença de arsênio, a mesma substância sendo encontrada na tesoura cravada na virilha do cadáver.”
            O delegado fez uma pausa solene e, cheio de si, proferiu a sentença final.”
            “O homem não morreu do ferimento na virilha, seguido de exsanguinação. Morreu envenenado por arsênio. Depois de morto a tesoura foi cirurgicamente cravada, drenando o sague do cadáver ainda fresco.”
            E arrematou:
            “Dona Suzete, a senhora trabalha com arsênio?”
            Outro susto! Suzete quase caiu da cadeira. “Arsênio? Como assim? O senhor acha que fui eu quem matou o homem? Só porque estava na minha cadeira? Só porque a tesoura era minha? O senhor não percebe que o assassino (ou assassina) deseja me incriminar? Meu Deus, que loucura!”
            O interrogatório estendeu-se por toda a manhã, até que Suzete foi liberada, nas mesmas condições já citadas; deveria permanecer à disposição do delegado.
            Fiquei mais um dia em A., Suzete ainda agitada, acreditando que a descoberta do arsênio na tesoura só podia ser coisa da Margarida, tida com feiticeira.
            Já em casa, falo com ela duas ou três vezes ao dia, pelo Skype. O salão permanece interditado. As buscas para a descoberta do criminoso (ou criminosa) continuam intensas, o delegado empenhadíssimo em esclarecer o crime, presente em todas as manchetes dos jornais, na Internet, Tweeter, Facebook, etc.
            Procuro acalmar Suzete, ainda agitada; não é para menos, está em apuros.

            

Cliff at Pourville in the morning

Meus quadros favoritos


Claude Monet