quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Amor à língua portuguesa brasileira



             Ainda não concluí sua leitura mas posso afirmar com segurança que Viva a língua brasileira, de Sérgio Rodrigues, nos oferece uma delícia literária! O livro editado pela Companhia das Letras (2016) traz um extenso e interessante subtítulo: Uma viagem amorosa, sem caretice e sem vale-tudo, pelo sexto idioma mais falado do mundo – o seu.
            Os temas são apresentados na forma de verbetes mais ou menos curtos,  escritos com esmero, cheios de humor, porém tratando sempre de assunto sério, a nossa língua portuguesa brasileira. Portuguesa porque lá nasceu, brasileira porque falada aqui, explica o autor.
            Vejamos um desses verbetes, como exemplo: Poeta ou Poetisa?
            Esteve em minha casa outro dia um amigo extremamente conservador, já com uma certa idade, trazendo em mãos uma cópia xerox da página do Aurélio que trata das palavras poeta e poetisa. Bradava ele a página, defendendo a ideia (com violência desproporcional) de que mulher que escreve poesia só pode ser chamada de poetisa, isso porque uma amiga lhe disse que ela era uma poeta.
– Veja você, André, poeta é do gênero masculino! E ela não sabe disso!
            Melhor concordar, pensei comigo mesmo, embora percebendo o raivoso equívoco do amigo.
Vamos pois ao Sergio Rodrigues:

“Não é de hoje que o substantivo poeta passa por uma transformação. Existente em português desde o século XIV (derivado do latim poeta, vindo por sua vez do grego poietes, “autor, criador”), nasceu masculino e manteve tal condição por séculos. Ainda hoje aparece assim nos dicionários: uma mulher que escreve versos, diz a tradição, deve ser chamada de poetisa.
Acontece que a língua real não se conforma com isso há décadas.
[...] A compreensão cada vez mais disseminada de poetisa como termo pejorativo, ou pelo menos de conotações condescendentes, caminhou ao lado dos avanços do feminismo do século XX. Poetas mulheres que competiam de igual para igual como os homens no jogo das letras passaram a rejeitar a distinção de gênero.
[...] “Não sou alegre nem sou triste: sou poeta”, escreveu Cecília Meireles.”

            E quem há de contrariar Cecília Meireles?
            Ah!, e o livro contem precioso índice remissivo, útil ao leitor mais apressado, disposto a dirimir rapidamente e de forma definitiva uma questiúncula como a levantada pelo meu irritadiço amigo.


solidão



dois bancos vazios
e a imensidão do mar
solidão no ar



Foto: Paulo S. Viana, Ilhabela, SP, set 2016.

Centenário de Dilermando Reis



Nesta quinta-feira (22), celebra-se o centenário de Dilermando Reis, o primeiro violonista pop do país.
Em Guaratinguetá (SP), sua natal, acontece a 20ª edição do Festival Dilermando Reis.
Dilermando atuou na Rádio Clube do Brasil e na Rádio Nacional por 30 anos, formando uma das primeiras orquestras de violões do país.      
Autor de valsas e choros, lançou dezenas de LPs, com 120 composições de sua autoria. O LP "Abismo de Rosas", de 1961, vendeu mais de 1 milhão de cópias.
Segundo os estudiosos, o violão brasileiro tem como origem as bases rítmicas de João Pernambuco (1883-1947), os encadeamentos harmônicos de Garoto (1915-1955) e as linhas melódicas de Dilermando.

Foto: Luis Alberto / O globo

Margem de rio

Meus quadros favoritos


Kandinsky

O amor de Camões




                 Foi preciso ouvir da boca de meu irmão uma frase que é minha e que não me canso de repetir – a escrita é terapêutica – para criar coragem e escrever sobre a morte de nosso cãozinho Camões. Ele foi nosso companheiro durante 17 anos e sua morte ocorrida há 5 dias deixou-nos inconsoláveis.
            Camões, um Yorkshire terrier, chegou aqui em casa tão pequenino que um vento forte poderia arrastá-lo. Quando a criadora da raça soltou os filhotes no pátio cimentado, Camões era o segundo da fila, e logo que o vimos, ele foi o escolhido.
Recebeu esse nome ilustre – e passei 17 anos repetindo esta história para quem se espantasse quando eu o chamava – não pelo Camões original, o fidalgo Luís Vaz, mas por causa de José Saramago, também português, autor de minha preferência, que tinha um cão de nome Camões. Todos esses personagens já se foram: Luís Vaz, Saramago, o Camões de Saramago e agora o nosso Camões. Escrevo antes que eu mesmo me vá.
            Digo que foi companheiro porque bastava que entrasse em casa para que ele se postasse a meu lado, em todas as horas do dia. Era canhoto; apoiava o pezinho esquerdo em minha perna e não sossegava até que eu o pegasse no colo. “O cão que pede colo”, certa feita ouvi de um amigo observador. Aceitava apenas permanecer em meu braço esquerdo, cabeça erguida, sempre atento ao movimento em redor.
            Logo aprendeu a andar comigo, sem coleira, na quadra onde morávamos; Pára Camões, e ele parava antes de atravessar a rua; Vamos, e ele atravessava faceiro, abanando o cotoco de rabo.
            Quando nos mudamos para uma casa, Camões fugiu 3 vezes. Na primeira vez, o vizinho encontrou-o num bueiro e veio devolvê-lo; agradeci muitíssimo, peguei o bichinho no colo, e ao me despedir, o vizinho tocou-me no braço, gesto de amizade; Camões avançou nele, latindo e mordendo, tremendo susto para o homem, vergonha para mim.
            Na segunda fuga quase morreu; entrou numa casa próxima onde havia um cachorro enorme; a vizinha veio devolvê-lo todo molhado (baba do colega?), estropiado, machucado; sobreviveu.
            A terceira fuga foi dramática; a moça da banca de jornais próxima, uma rua além da nossa, tocou a campainha e perguntou, Aí tem um York pequenino?, Tem sim, Pois ele está lá na banca comigo, Já vou pegá-lo; a dona da banca explicou-me que vira um homem de bicicleta apanhá-lo, tomando-o por cão perdido, e já o levava na cesta da bicicleta quando foi interpelado por ela, Esse cachorro tem dono, Mas agora é meu, eu encontrei ele na rua, Mas conheço o dono e faça o favor de devolver, e arrancou Camões das mãos do homem. Quando Lola deu cria, a primeira ninhada de 4 filhotes de Camões, a moça da banca recebeu um deles de presente.
            Escapou de morte certa quando o levamos à roça, em Coromandel, mais precisamente em Santo Inácio; distraímos, Cadê o Camões? Fomos encontrá-lo no estábulo, andando no meio das vacas e bezerros, pisando na bosta, catando restos de comida, mastigando ossos de galinha, sentindo-se no paraíso. Em Coró, hospedou-se em hotel, comeu presunto no café da manhã, esbaldou-se!
            Camões nunca viu o mar; gostaríamos muito de tê-lo levado à praia. Haveria de gostar espojar-se na areia.
            Nunca foi atacado, sequer ameaçado, por qualquer outro cão aqui de casa, mesmo pelos grandes. Era respeitado como o Capitão, um de seus inúmeros apelidos. Atendia também pela alcunha de Benito de Paula: usava longa cabeleira durante seus primeiros anos. Conquistador, não saía de cima de uma cadela no cio, mesmo uma mastim (Dora), uma rottweiler (Berta e Juliette), uma enorme labradora (Lenda) ou uma cane-corso (Falena) de 60 quilos – ele que nunca passou dos 3 quilos de peso –, e por isso também era conhecido por Don Juan de Marco, ou apenas Don Marco. Onofre, antigo jardineiro, tratava-o por Carmoneda. Belarmina deu-lhe o cognome de Hominho, que lhe caiu muito bem! Juntamente com Lola e Nina Simone, sua filha, compunha o trio Batutas do Sertão.
            Não gostava de banho. Quando o lava-cães chegava, Camões corria para o quintal, escondia-se debaixo do abacateiro, pensando-se invisível.
            Desde que chegou, dormia em nosso quarto, entre o criado-mudo e nossa cama. Na velhice, começou a acordar em plena madrugada; passou a dormir na cozinha.
            Lola, adquirida para ser a companheira de Camões, deu cria duas vezes, 5 cachorrinhos na primeira e 4 na segunda. Nina Simone ficou conosco, os demais foram oferecidos a amigos, que os receberam com muito carinho. Às vezes tenho notícias de alguns deles; Miúdo já é avô, e portanto, Camões foi bisavô.
            Estamos de luto, morreu o nosso Camões. Aos que têm dificuldade para suportar a dor de uma perda como esta, e por isso não desejam mais a convivência com um cão, afirmamos que foram anos de muita alegria e amor recíproco, e somos gratos pela rica experiência que com ele compartilhamos. Valeu a pena.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Luto

              “Então, em que consiste o trabalho realizado pelo luto? Creio que não é forçado descrevê-lo da seguinte maneira: a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Contra isso se levanta uma compreensível oposição; em geral se observa que o homem não abandona de bom grado uma posição da libido, nem mesmo quando um substituo já se lhe acena. Esta oposição pode ser tão intensa que ocorre um afastamento da realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose alucinatória de desejo. O normal é que vença o respeito à realidade. Mas sua incumbência não pode ser imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a pouco com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento, e enquanto isso a existência do objeto de investimento é psiquicamente prolongada. Uma a uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido. Por que essa operação de compromisso, que consiste em executar uma por uma a ordem da realidade, é tão extraordinariamente dolorosa, é algo que não fica facilmente indicado em uma fundamentação econômica. E o notável é que esse doloroso desprazer nos parece natural. Mas de fato, uma vez concluído o trabalho do luto, o ego fica novamente livre e desinibido.”

Sigmund Freud
Luto e melancolia
Tradução de Marilene Carone

Cosacnaify, 2011