Nobre
Prof. Nicodemus,
mais
do que respeitá-lo e admirá-lo por sua carreira universitária, pelo alcance
científico de suas pesquisas, pelo exemplo que representa para o corpo discente
de nossa Universidade, acima de todas essas virtudes, tinha-o por amigo. Agora,
penosamente, vejo que me enganei.
Quando fomos chamados,
eu e você, por nosso respeitado Senhor Diretor, sob o pretexto de que essa
rusga entre nós fazia mal à comunidade universitária, senti um lampejo de
esperança, de que o mal-entendido pudesse ser sanado. Bem verdade que sempre
desconfiei das intenções do Senhor Diretor, homem habilidoso no trato com as
pessoas, às vezes beirando as raias do melífluo; mas não há dúvida de que é um
homem honrado. Quais as verdadeiras intenções dele, se pretendia nos aproximar
ou nos separar definitivamente, isso nunca saberemos, nobre colega.
Por que faço esta estranha
e temerária afirmação? Explico-me, Professor Nicodemus. Aceitei o convite para
participar da fatídica reunião como crédito ao Senhor Diretor. Fiquei curioso
para conhecer o que ele tinha a nos propor. Ouvi-o com genuíno interesse,
embora achasse aquele seu discurso um tanto moralista, empenhado demais em
nossa reaproximação, como se fôssemos os pilares morais de nossa Faculdade, que
chegava a “correr o risco de desmoronar”, nas palavras alarmantes do Senhor
Diretor, caso se perpetuasse a desavença entre nós.
Chego a pensar que
ambos nos sensibilizamos com a fala do Senhor Diretor. Tanto que, em seguida,
iniciamos um diálogo fraterno, tentando compreender em primeiro lugar, e
justificar em seguida, a origem de nosso desentendimento. Cada um de nós
apresentava com franqueza as nossas razões pessoalíssimas, com respeito, o tom
de voz amigável, o verdadeiro desejo de aparar arestas e reconstruir nossa
amizade, sob o olhar atento do Senhor Diretor.
Entretanto, o
inesperado! A conversa, embora demorada – já estávamos naquela sala por mais de
duas horas –, caminhava para um final feliz, este parecia ser o desejo de
todos, quando, subitamente, sem qualquer razão aparente, num gesto brusco o
Senhor Diretor pediu licença e deixou a sala.
Aquela foi nossa
desgraça, Nicodemus, agora vejo-o claramente. Sentimo-nos completamente
abandonados, entregues a própria sorte, desamparados, incapazes de enfrentar a
enorme frustração causada pela ausência do pai. Isso mesmo, Nicodemus, sentimos
a falta do Senhor Diretor como quem sente a falta do pai num momento de grande
dificuldade. Todos os nossos títulos, toda a nossa vasta publicação científica,
todo o reconhecimento de nossa instituição e até do meio internacional, nada
disso contou naquele momento. Apenas o desamparo falou mais alto. O inevitável retorno
à infância!
Uma hora depois, o
Senhor Diretor de volta ao gabinete, a discórdia estava definitivamente
plantada em nossos espíritos. E assim há de permanecer para sempre.
Ainda assim, Professor Nicodemus, receba minhas
saudações universitárias.
Atenciosamente,
Professor Austregésilo
* * *
Nobre Professor Austregésilo,
li com atenção, e um certo travo amargo na boca, a missiva que acaba de
me enviar. O amargor deve-se ao fato de que também eu o tinha por amigo. Mas
isso faz parte da vida: perdemos desde o dia em que nascemos e haveremos de
perder até a hora de nossa morte. Perder um amigo é sempre doloroso e penso que
esta é a razão primeira por ter-me escrito, uma tentativa de purgar a dor que
deveras sente. Se há outras intenções, não as percebo nesse momento.
Num ponto concordamos,
Professor: ambos não confiamos no Senhor Diretor. Aceitei o convite por razões
meramente políticas: eu mesmo ficaria em posição difícil, com fama de homem
intransigente que não sou, avesso ao diálogo, logo eu, que tanto estimulo a
conversa entre nossos pares e com o corpo discente de nossa Faculdade. Não
queria passar por turrão, só isso, mas nunca acreditei nas boas intenções do
Senhor Diretor. Ao contrário, penso que ele apenas queria “aparecer”, “fazer
média”, como se diz na gíria estudantil, estar bem com todos, passar por
conciliador, habilidoso que é, como você bem ressaltou, no trato com as
pessoas.
Aliás, a Professora Efigênia, nossa colega, certa
feita me relatou um episódio que ilustra bem a situação presente. Ela foi até o
gabinete do Senhor Diretor formular um pedido de verba para determinado
projeto. Saiu de mãos abanando, mas exclamou:
– O Senhor diretor nunca atende minhas solicitações,
mas devo admitir que ele me ouve com a máxima atenção!
E não pense que a Professora Efigênia aparentava
alguma contrariedade; demonstrava nítida satisfação pelo modo como fora tratada
pelo Senhor Diretor. Eis aí, Professor Austregésilo, um homem verdadeiramente
habilidoso, esse nosso Diretor. Portanto, pensei, mal não haveria em atender à
convocação do Senhor Diretor.
Concordo com você: depois do sermão introdutório,
nossa conversa parecia tomar o bom caminho, embora, confesso, não posso dizer
que me sentisse confortável, por uma razão bem simples: desconfiava também de
suas intenções, Austregésilo. Acontece que nossa desavença originou-se, em meu
ponto de vista, de sua exagerada vaidade pessoal. Quando o Professor
Vasconcellos, não sei se premeditadamente, reconhecido semeador de discórdias
que é, afirmou que meu trabalho merecia ser publicado em periódico superior
àquele no qual sua pesquisa havia sido publicada, você mordeu-se de inveja, não
conseguiu esconder o sentimento de profundo ódio, e a partir daí nossa relação azedou-se,
“foi para o brejo”. (Acho que estou mesmo conversando muito com os
estudantes...)
Bem, vamos ao ponto em que concordo inteiramente com
você: o intempestivo, inexplicável, intolerável, desrespeitoso mesmo, diria que
acintoso, provocador, explosivo abandono da sala pelo Senhor Diretor em meio à
nossa conversa foi um terrível desastre. O fato é que tal atitude justificou
plenamente minhas desconfianças iniciais acima relatadas. O Senhor Diretor, ao
pressentir a possibilidade de que nossa conversa chegasse de fato à nossa
reaproximação, prevendo a repercussão que isso teria na comunidade
universitária, tomado pelo ciúme, pela inveja ou pelo horror, resolveu “melar” (ah!,
esse linguajar...) a reunião. Conhece a letra do Lupicínio Rodrigues, Professor
Austregésilo? Diz o seguinte:
“Eu não sei o que trago no peito,
É ciúme, é despeito, amizade ou horror.”
(Agora não tenho dúvida
de que minha convivência com os estudantes passou dos limites...)
Prefiro Lupicínio a
Freud, Professor Austregésilo! Suas tiradas psicanalíticas não me convencem.
Pai é a puta que o pariu...
Mas agora é tarde,
Professor Austregésilo. Quando o Senhor diretor retornou ao gabinete, o Demônio
já havia se interposto entre nós. Não tome minhas palavras ao pé da letra,
trata-se de força de expressão, que não fica bem a homens de Ciência como nós
invocarmos o Cão nesta hora de aperto; a menos que a Vaidade seja mesmo filha
do Coisa-ruim...
Encerro aqui minha
resposta a sua respeitosa carta, Professor Austregésilo, de forma igualmente
respeitosa, porém firme: nada resta a dizer sobre tais infaustos
acontecimentos.
Saudações universitárias, mesmo assim.
Atenciosamente,
Professor
Nicodemus.
***
Memorando No. 13.428.
Do: Senhor Diretor.
Aos: Professores Nicodemus da Silveira e Austregésilo Prado Jr.
Prezados Professores,
considerando que:
a) os senhores representam o que de melhor há em nossa Universidade;
b) não podemos abrir mão da colaboração intelectual dos professores para
a formação de nossos alunos,
c) as pesquisas que desenvolvem representam o ápice de nosso potencial
científico;
d) nutro por ambos o mais profundo respeito, amizade e admiração;
resolvo, por meio deste memorando, convocá-los para nova rodada de conversas,
com o objetivo de fazer retornar ao seio de nossa comunidade a paz e a harmonia
que tanto almejamos.
Saudações universitárias do
Senhor
Diretor.