sexta-feira, 31 de julho de 2015

Correspondência da vida universitária


Nobre Prof. Nicodemus,

mais do que respeitá-lo e admirá-lo por sua carreira universitária, pelo alcance científico de suas pesquisas, pelo exemplo que representa para o corpo discente de nossa Universidade, acima de todas essas virtudes, tinha-o por amigo. Agora, penosamente, vejo que me enganei.
            Quando fomos chamados, eu e você, por nosso respeitado Senhor Diretor, sob o pretexto de que essa rusga entre nós fazia mal à comunidade universitária, senti um lampejo de esperança, de que o mal-entendido pudesse ser sanado. Bem verdade que sempre desconfiei das intenções do Senhor Diretor, homem habilidoso no trato com as pessoas, às vezes beirando as raias do melífluo; mas não há dúvida de que é um homem honrado. Quais as verdadeiras intenções dele, se pretendia nos aproximar ou nos separar definitivamente, isso nunca saberemos, nobre colega.
            Por que faço esta estranha e temerária afirmação? Explico-me, Professor Nicodemus. Aceitei o convite para participar da fatídica reunião como crédito ao Senhor Diretor. Fiquei curioso para conhecer o que ele tinha a nos propor. Ouvi-o com genuíno interesse, embora achasse aquele seu discurso um tanto moralista, empenhado demais em nossa reaproximação, como se fôssemos os pilares morais de nossa Faculdade, que chegava a “correr o risco de desmoronar”, nas palavras alarmantes do Senhor Diretor, caso se perpetuasse a desavença entre nós.
            Chego a pensar que ambos nos sensibilizamos com a fala do Senhor Diretor. Tanto que, em seguida, iniciamos um diálogo fraterno, tentando compreender em primeiro lugar, e justificar em seguida, a origem de nosso desentendimento. Cada um de nós apresentava com franqueza as nossas razões pessoalíssimas, com respeito, o tom de voz amigável, o verdadeiro desejo de aparar arestas e reconstruir nossa amizade, sob o olhar atento do Senhor Diretor.
            Entretanto, o inesperado! A conversa, embora demorada – já estávamos naquela sala por mais de duas horas –, caminhava para um final feliz, este parecia ser o desejo de todos, quando, subitamente, sem qualquer razão aparente, num gesto brusco o Senhor Diretor pediu licença e deixou a sala.
            Aquela foi nossa desgraça, Nicodemus, agora vejo-o claramente. Sentimo-nos completamente abandonados, entregues a própria sorte, desamparados, incapazes de enfrentar a enorme frustração causada pela ausência do pai. Isso mesmo, Nicodemus, sentimos a falta do Senhor Diretor como quem sente a falta do pai num momento de grande dificuldade. Todos os nossos títulos, toda a nossa vasta publicação científica, todo o reconhecimento de nossa instituição e até do meio internacional, nada disso contou naquele momento. Apenas o desamparo falou mais alto. O inevitável retorno à infância!
            Uma hora depois, o Senhor Diretor de volta ao gabinete, a discórdia estava definitivamente plantada em nossos espíritos. E assim há de permanecer para sempre.
Ainda assim, Professor Nicodemus, receba minhas saudações universitárias.

Atenciosamente,
                                                            Professor Austregésilo


* * * 

Nobre Professor Austregésilo,

li com atenção, e um certo travo amargo na boca, a missiva que acaba de me enviar. O amargor deve-se ao fato de que também eu o tinha por amigo. Mas isso faz parte da vida: perdemos desde o dia em que nascemos e haveremos de perder até a hora de nossa morte. Perder um amigo é sempre doloroso e penso que esta é a razão primeira por ter-me escrito, uma tentativa de purgar a dor que deveras sente. Se há outras intenções, não as percebo nesse momento.
            Num ponto concordamos, Professor: ambos não confiamos no Senhor Diretor. Aceitei o convite por razões meramente políticas: eu mesmo ficaria em posição difícil, com fama de homem intransigente que não sou, avesso ao diálogo, logo eu, que tanto estimulo a conversa entre nossos pares e com o corpo discente de nossa Faculdade. Não queria passar por turrão, só isso, mas nunca acreditei nas boas intenções do Senhor Diretor. Ao contrário, penso que ele apenas queria “aparecer”, “fazer média”, como se diz na gíria estudantil, estar bem com todos, passar por conciliador, habilidoso que é, como você bem ressaltou, no trato com as pessoas.
Aliás, a Professora Efigênia, nossa colega, certa feita me relatou um episódio que ilustra bem a situação presente. Ela foi até o gabinete do Senhor Diretor formular um pedido de verba para determinado projeto. Saiu de mãos abanando, mas exclamou:
– O Senhor diretor nunca atende minhas solicitações, mas devo admitir que ele me ouve com a máxima atenção!
E não pense que a Professora Efigênia aparentava alguma contrariedade; demonstrava nítida satisfação pelo modo como fora tratada pelo Senhor Diretor. Eis aí, Professor Austregésilo, um homem verdadeiramente habilidoso, esse nosso Diretor. Portanto, pensei, mal não haveria em atender à convocação do Senhor Diretor.
Concordo com você: depois do sermão introdutório, nossa conversa parecia tomar o bom caminho, embora, confesso, não posso dizer que me sentisse confortável, por uma razão bem simples: desconfiava também de suas intenções, Austregésilo. Acontece que nossa desavença originou-se, em meu ponto de vista, de sua exagerada vaidade pessoal. Quando o Professor Vasconcellos, não sei se premeditadamente, reconhecido semeador de discórdias que é, afirmou que meu trabalho merecia ser publicado em periódico superior àquele no qual sua pesquisa havia sido publicada, você mordeu-se de inveja, não conseguiu esconder o sentimento de profundo ódio, e a partir daí nossa relação azedou-se, “foi para o brejo”. (Acho que estou mesmo conversando muito com os estudantes...)
Bem, vamos ao ponto em que concordo inteiramente com você: o intempestivo, inexplicável, intolerável, desrespeitoso mesmo, diria que acintoso, provocador, explosivo abandono da sala pelo Senhor Diretor em meio à nossa conversa foi um terrível desastre. O fato é que tal atitude justificou plenamente minhas desconfianças iniciais acima relatadas. O Senhor Diretor, ao pressentir a possibilidade de que nossa conversa chegasse de fato à nossa reaproximação, prevendo a repercussão que isso teria na comunidade universitária, tomado pelo ciúme, pela inveja ou pelo horror, resolveu “melar” (ah!, esse linguajar...) a reunião. Conhece a letra do Lupicínio Rodrigues, Professor Austregésilo? Diz o seguinte:

“Eu não sei o que trago no peito,
É ciúme, é despeito, amizade ou horror.”

            (Agora não tenho dúvida de que minha convivência com os estudantes passou dos limites...)
            Prefiro Lupicínio a Freud, Professor Austregésilo! Suas tiradas psicanalíticas não me convencem. Pai é a puta que o pariu...
            Mas agora é tarde, Professor Austregésilo. Quando o Senhor diretor retornou ao gabinete, o Demônio já havia se interposto entre nós. Não tome minhas palavras ao pé da letra, trata-se de força de expressão, que não fica bem a homens de Ciência como nós invocarmos o Cão nesta hora de aperto; a menos que a Vaidade seja mesmo filha do Coisa-ruim...
            Encerro aqui minha resposta a sua respeitosa carta, Professor Austregésilo, de forma igualmente respeitosa, porém firme: nada resta a dizer sobre tais infaustos acontecimentos.
Saudações universitárias, mesmo assim.

Atenciosamente,

                                                                 Professor Nicodemus.


***

Memorando No. 13.428.

Do: Senhor Diretor.
Aos: Professores Nicodemus da Silveira e Austregésilo Prado Jr.

Prezados Professores,

considerando que:

a) os senhores representam o que de melhor há em nossa Universidade;
b) não podemos abrir mão da colaboração intelectual dos professores para a formação de nossos alunos,
c) as pesquisas que desenvolvem representam o ápice de nosso potencial científico;
d) nutro por ambos o mais profundo respeito, amizade e admiração;

resolvo, por meio deste memorando, convocá-los para nova rodada de conversas, com o objetivo de fazer retornar ao seio de nossa comunidade a paz e a harmonia que tanto almejamos.

Saudações universitárias do
                                                            Senhor Diretor.