domingo, 28 de abril de 2019

Ofir e Brazinha olham o mar Foto n.7


Ofir, já grisalho, tinha por hábito passear com o Brazinha, nosso querido cãozinho, desde os tempos em que nós ainda morávamos em Ipanema, e chegar até a praia. (Brazinha andava sem coleira pelas ruas do bairro!)
            Ei-los sentados na pedra do Arpoador, a olhar o mar.  



Ainda sobre pirraças


O último texto do tema Mais 47 cenas de um romance familiar neste blog tratou de cizânias musicas entre o pai e a mãe. (http://loucoporcachorros.blogspot.com/2018/09/quartetos-dissonantes.htmlHá mais para contar.
            Ainda hoje, de tempos em tempos, preciso voltar a Rachmaninoff, e ouvir os concertos para piano nos. 1 e 2, ambos sempre. Essas peças me emocionam toda vez que as ouço, em especial na gravação de Nikolai Lugansky (Warner Classics).
            Ontem, ao ouvi-las pela enésima vez, me perguntei por que preciso voltar a elas; embora goste muito do compositor, ele nem está entre meus preferidos; fica longe de Bach, Beethoven, Mozart, Arvo Pärt, Chopin, Mahler, e mesmo assim volto ao romântico Rachmaninoff e aos concertos para piano.
            A resposta enfim chegou, caída sabe-se lá de onde, em plena audição. Não foram poucas as vezes em que ouvi acirrada discussão entre meus pais, a respeito dos concertos nos. 1 e 2, para piano e orquestra, de Sergei Rachmaninoff. A mãe discorria, exaltada, sobre as qualidades do Número 1, de longe o mais bonito concerto para piano do compositor, segundo ela, com ares de crítica musical. Nem preciso dizer que o pai preferia o Número 2. Preferia porque preferia, sem comentários explicativos, que não dispunha mesmo de conhecimentos musicais para tal. Era só para contrariar: pau-pedra, água-vinho, azul-amarelo, e pronto. Pura pirraça cizânia azedume agastamento arranca-rabo malquerença chaça porfia quizila implicância cisma rusga testilha arenga paliota peguilha rebordosa querela. O motivo não importava.
            Desde então, me lembro bem, eu tenho me esforçado para formar opinião sobre a tal disputa: qual o concerto mais bonito? 
Hoje gosto de ambos, cada qual a seu modo, pacificadamente. Convido o eventual leitor a buscar alguma preferência.

Como explicar?

Charge do dia




Amós Oz com Shira Hadad




Quem gosta de escrever há de compreender perfeitamente a pergunta de Shira Hadad a Amós Oz: “O que impulsiona a sua mão quando escreve?” A resposta do escritor é de extrema delicadeza, e atesta a qualidade de sua literatura (*):

“No pátio do ginásio Rechavia, em Jerusalém, havia um eucalipto no qual alguém tinha gravado um coração trespassado por uma flecha. No coração trespassado, nos dois lados da flecha, estava escrito: Gadi – Ruti. Lembro que já então, eu tinha talvez uns treze anos, pensei: com certeza quem fez isso foi esse Gadi, não Ruti. Por que fez isso? Ele não sabia que amava Ruti? Ela não sabia que ele a amava? E parece que já então eu disse comigo mesmo: talvez algo dentro dele soubesse que isso ia passar, que tudo passa, que esse amor ia acabar. Ele quis deixar alguma coisa. Quis que restasse uma lembrança desse amor quando ele passasse. E isso é muito parecido com o ímpeto de contar histórias, escrever histórias; salvar alguma coisa das garras do tempo e do esquecimento.”

            Mesmo muito longe de dispor da arte de Amós Oz (que é capaz de contar uma história a partir de um coração gravado numa árvore),  penso que também quero deixar alguma coisa, em especial para as pessoas mais próximas, familiares, e uns poucos amigos. Apenas isso, deixar alguma coisa.
            Shira pergunta ainda “de onde vem a história”? E Amós Oz responde com fragmento de belíssimo poema de Ana Akhmátova, que ele traduziu do inglês, versão de Stephen Berg, para o hebraico, e agora traduzido para nós por Paulo Geiger, e com tantas traduções o poema continua lindo!

“E às vezes fico sentada. Aqui. Ventos do mar gelado
sopram por minhas janelas abertas. Não me levanto, não
as fecho. Deixo o ar me tocar. Congelo.
Crepúsculo vespertino ou aurora, as mesmas nuvens brilhantes.
Um pombo bica um grão de trigo em minha mão estendida,
e esta amplidão, sem fronteiras, da brancura das páginas na coluna
                                                                           [em que escrevo –
Um solitário e nebuloso impulso ergue minha mão direita, 
                                                                                  [me conduz,
muito mais antigo do que eu, ele vem e desce,
azul como um olho, sem deus, e começo a escrever.”

            Qualquer coisa, muito mais antiga do que eu, que vem e desce, e me pacifica por dentro.


(*) Em Do que é feita a maçã, de Amóz Os com Shira Hadad, Companhia das Letras, 2019, tradução do hebraico de Paulo Geiger. Bela capa, com ilustração de Kiko Farkas.