Oi André,
você ainda não respondeu minha carta “Suzete vira a página”, o que
não tem a menor importância porque estou sempre com você e você comigo, e cá
estou novamente, que tenho umas novidades para contar. Com quem mais posso
dividir tais ideias senão com você, que no salão permaneço quietinha, bico
calado para não entrar mosquito, gente pacóvia (olhei no dicionário), gente que
não aceita discutir sobre uma opinião diferente (os advogados usam “divergente”,
e eu acho mais bonito mesmo), enfim, gente que não sabe conversar (aprendi isso
com você, o que significa conversar).
A novidade: vou
escrever sobre um livro que você ainda não leu! Assim espero. Pelo menos, você nunca
falou dele, embora cite com certa frequência o autor, de quem você gosta. E
estou feliz com isso, poder pensar com minha própria cabeça, sem influência
sua. Dane-se se eu estiver errada. Para seguir o estilo do autor em questão,
foda-se.
O livro, Como se me fumasse (Editora 34, 2017). O
autor, Marcelo Mirisola.
Desde que li Fátima fez os pés para mostrar na choperia,
livro de estreia de Mirisola, por indicação sua, fiquei doida pelo autor.
Depois, ele começou a repetir-se repetir-se repetir-se (claro que aprendi isso
com você, e gosto muito), e fiquei pensando aonde aquilo ia dar, se haveria uma
saída para um estilo tão forte e marcado e repetitivo e radical, se o autor ia
dar um tiro na cabeça ou coisa e tal.
Não se suicidou e
continuou escrevendo, livro após livro. Vou pular a saga, mesmo porque não li
todos eles, até chegar em Como se me
fumasse (esquisito já no título).
Pois gostei do
livro, acredite. Muito! (Aguardo ansiosamente sua opinião, André.) Transcrevo
um parágrafo onde o autor descreve uma zona de meretrício. Nunca fui a uma
zona, mas agora sei o que é uma zona. Oquei (mirisolismo!), eis o parágrafo:
“Gorda
sublocava as filhas para os fazendeiros da região, sobretudo na época da
colheita do café. De dia, os putos as exploravam em suas roças. De noite metiam
a vara nelas. Eram seis irmãs, Joscilene, Joscidalva, Joscélia, Joscimar,
Joscielle (com dois elles), Joscilaine e o sétimo gatinho, poupado da violência
da peãozada e da vida dura dos terreiros de café, Marrom ou Vanusa. Marrom
fazia as vezes de hostess do zonão e,
na medida do possível, tentava – em vão – alegrar o ambiente melancólico que era
o puteiro da Gorda. Sexo & ódio brasileiros. Nada de humor e descontração,
as filhas da gorda estavam mais para escarradeiras e depósito de esperma do que
para vender qualquer tipo de alegria ou recreio. E a peãozada truculenta queria
esvaziar o saco, de preferência sem gastar muito dinheiro. Cafuzas, meio
índias, meio negras, misturadas com o sangue dos bandeirantes que tocaram o
terror por aquelas bandas em tempos idos, as filhas da Gorda, todas, guardavam,
além das misérias e do uso, um fogo maldito nas ventas e um ódio ancestral que
cobrava – mais do que as desgraças inerentes à vida miserável que levavam –
reparação e vingança. Ancas largas e olhos verdes, péssimos augúrios, miasmas
de quatrocentos anos de exploração e maldições intermitentes, eflúvios
infernais que se precipitavam a partir dos vapores criminosos da Boate Azul, onde,
apesar dos pesares, destacava-se Joscielle (com dois elles), a joia da Gorda.”
Isso não é sensacional,
André? Pega o leitor pelo pescoço e não larga mais! Realismo em estado puro.
Não tenho recursos para exprimir o tanto que tal estilo me impressiona, nem sou
crítica literária; não passo mesmo de uma cabeleireira que lê e gosta de
escrever, além de cortar cabelo de homem. Mas gostei muito, André. A gente
precisa ler o livro numa enfiada, para não perder o ritmo, que é alucinante.
Muita gente há de não gostar,
e gente sabida culta refinada de bom gosto, (nem preciso dizer quem estou
copiando, suprimindo vírgulas. Aliás, estou com o Alberto Mussa, que estou adorando:
tudo é cópia de um mesmo original, a diferença é que eu vou confessando o plágio
à medida que escrevo. Estilo Suzete.)
Sabe, gostaria
muito de conhecer Mirisola pessoalmente, saber como ele é de verdade, se é que
isso é possível, conhecer alguém de verdade. Acredito nele, no que escreve. Mas,
e se ele estiver mentindo? Borges (tenho lido Borges, um monstro!) diria que
isso não tem importância, ficção e realidade são faces de uma mesma moeda. Mas
gostaria de conhecê-lo mesmo assim, e se possível, cortar o cabelo dele.
E tem mais: ele
sabe usar um palavrão como ninguém! Tem autoridade para isso.
Bem, era isso que
desejava dizer: comentar um livro antes de você! No mais, é a politicagem suja
desse nosso país, que não vale a pena comentar.
Me responda, por
favor.
Da sempre sua,
Suzete.