quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A caneta roubada



A seguinte nota foi publicada no Estadão de hoje:

“Uma caneta que pertenceu ao escritor Graciliano Ramos (1892-1953) foi furtada da exposição Conversas de Graciliano Ramos, aberta terça-feira, 17, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS). Na montagem da mostra, três canetas estavam expostas em uma instalação que simula o ambiente de trabalho do escritor. Na quarta (17), porém, apenas duas permaneciam no local.” (1)

            Fico aqui matutando quem teria sido o ladrão da caneta. Se foi um gatuno comum, igual a tantos espalhados por aí, neste país de ladrões, só me resta lamentar o ocorrido. Coisa mais grosseira e sem graça. Provavelmente ele irá vender a peça a algum colecionador de quinquilharias, ou naquela feira de antiguidades embaixo do MASP, frequentada por colecionadores de bugigangas, o que também não tem graça alguma.
            Há uma segunda hipótese, e mais adiante explico de onde me veio tal ideia. É a de que o ladrão seja um fã ardoroso de Graciliano, leitor compulsivo de toda a sua obra, admirador incondicional do alagoano! Nesse caso, sinto até mesmo um certo constrangimento em chamá-lo de ladrão. Imagino que o homem nunca tenha roubado nada em toda sua vida, que jamais tenha emitido um cheque sem fundos, nem entrou em metrô sem pagar o bilhete. Trata-se de um sujeito íntegro, como poucos!
            Momentos de fraqueza, quem nunca os teve?
            Nosso homem, assim que soube da tal exposição, não perdeu tempo, pediu ao chefe para faltar o serviço, É por motivo de força maior, alegou. Saiu cedo de casa, vestindo a melhor roupa domingueira, dirigiu-se ao Museu da Imagem e do Som, com dificuldade para conter a excitação, na expectativa de conhecer melhor a intimidade de seu autor predileto, mesmo tantos anos após a morte dele.
            De repente, deparou-se com aquela escrivaninha humilde, a antiga máquina de escrever, algumas folhas soltas manuscritas, o tinteiro com tampa de prata, e aquelas três canetas de madeira com as respectivas penas de metal. Graciliano havia de tê-las nas mãos milhares de vezes. Tocá-las seria um verdadeiro milagre, pensou. Nosso homem estava emocionado!
            Encontrava-se paralisado diante daqueles objetos há mais de meia hora. Não conseguia desgrudar deles. Olhou em volta, ninguém na sala. O impulso surgiu como o de um cão bravo que late primeiro, só depois olha quem está chegando. Pegou uma das canetas, colocou-a no bolso interno do paletó, deixou a exposição sem ao menos vê-la por inteiro.
            Na rua, pegou o primeiro taxi que passou, foi direto para casa. Trancou-se em seu quarto, isolado do mundo, e contemplou, extasiado, a caneta que fora de Graciliano Ramos, e que agora era sua.
            De onde me veio esta ideia? Bem, tudo vem da infância.
            Os três filhos pequenos, residentes no interior, num tempo em que não havia computador, éramos fanáticos por Monteiro Lobato. Ao chegar na última página, fechávamos o livro, voltávamos ao início, como se agora fôssemos lê-lo pela primeira vez. Fizemos isso com a coleção inteira. Meu favorito? Os doze trabalhos de Hércules, em dois volumes.
            Mais crescidinho, não me recordo bem em que circunstância, fomos visitar a casa onde havia morado Monteiro Lobato, em Tremembé, na época pequena cidade próxima a Taubaté, onde nascera meu querido irmão. (Hoje, quando Tremembé surge no noticiário, é porque alguém famoso, um criminoso de verdade, está sendo levado para a penitenciária local.) Encontramos uma tapera, casinha pequena caindo aos pedaços, cercada de mato crescido, completamente abandonada. Aquilo era de cortar o coração do menino.
Durou pouco tempo a melancólica visita. Mas na hora de ir embora, resolvi levar um lembrança da casa do meu adorado Monteiro Lobato. (Hoje penso: teria ele mesmo morado alí algum dia?) Cruzava já o portal de saída, quando observei a madeira toda carunchada por cupins deste mesmo portal. Com cuidado, arranquei um pequeno pedaço da madeira – não media mais que dez centímetros de comprimento –, que facilmente veio-me às mãos. Escondi a relíquia no bolso da calça curta cáqui, que então usava, e mantive o segredo daquele furto até hoje.


 Fodo: idem.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Uma obra de arte!

A foto do dia.



Meu nome é Blimunda!

Meu nome é Blimunda!




              Tivemos já uma gatinha que se chamou Blimunda. Fugiu, para nossa tristeza.
            Agora, a nova moradora, uma Shih Tzu de 50 dias, torna a receber o nome de Blimunda.
      Qual é o nome dela?
      Blimunda.
      Blimunda?!
      É.
O diálogo se repete a cada nova apresentação. Causa estranheza o nome. Sinal que os apresentados nunca leram o magistral Memorial do Convento, de José Saramago. Isso sim, é uma pena.
Transcrevo pequeno trecho:

“Quando Blimunda acorda, estende a mão para o saquitel onde costuma guardar o pão, pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tacteia o chão, a enxerga, mete as mãos por baixo da travesseira, e então ouve Baltazar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os punhos cerrados, implora, Dá-me o pão, Baltazar, dá-me o pão, por alma de quem lá tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso, gritou ela, e bruscamente tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete-Sóis deitou-lhe o braço são, prendeu-a pela cintura, ela debateu-se brava, depois passou-lhe a perna direita por cima, e assim libertada a mão, quis afastar-lhe os punhos dos olhos, mas ela tornou a gritar, espavorida, Não me faças isso, e foi o grito tal que Baltazar a largou, assustado, quase arrependido da violência, Eu não te quero fazer mal, só queria saber que mistérios são, Dá-me o pão, e eu digo-te tudo, Juras, Para que serviriam juras se não bastassem o sim e o não, Aí tens, come, e Baltazar tirou o taleigo de dentro do alforge que lhe servia de travesseira.”

            Pronto, quem ainda não sabe, fique sabendo que Baltazar Sete-Sóis e Blimunda são marido e mulher, repartem o mesmo leito, mas ainda perdura um grande segredo entre eles, por que Blimunda precisa comer um naco de pão ao despertar, antes mesmo de abrir os olhos?
            A linguagem é deliciosa, melhor não pode haver!
            Agora, eis o diálogo que eu gostava de ouvir:
      Qual o nome dela?
      Blimunda.
      Ah!, a mulher o Memorial do Convento?
      Isso mesmo!
      Que lindinha!




Blimunda


...
– que lindo!
– não é!
– macho ou fêmea?
– fêmea.
– qual o nome dela?
– Blimunda.
– o que?
– Blimunda.
– Blimunda?!
– isso.
– de onde você tirou isso?
– do Memorial do Convento?
– de onde?
– do Saramago.
– ah, aquele espanhol, não é?
– português.
– português?
– sim.
– e quem foi essa tal de Blimunda?
– a mulher do Baltazar.
– já sei, um dos 3 reis magos!
– upa lelê...
...

Mia Couto maduro



             Quando me deparo com livro novo na bancada de qualquer livraria, depois de examinar a capa, título, nome do autor, leio a primeira página. Se gosto do estilo, da forma – independentemente do conteúdo –, geralmente compro.
            Com o novo livro do Mia Couto foi diferente. Bastaram-me as duas primeiras sentenças:

“Já muita coisa foi vista neste mundo. Mas nunca se encontrou nada mais triste que caixão pequenino.”
           
            A imagem que construí a partir dessas poucas palavras foi devastadora – a tristeza de que somos tomados à vista de um caixãozinho branco. Se uma criança morreu, é provável que um pai e uma mãe estejam sofrendo a pior dor que se pode sentir neste mundo, a dor da perda de um filho.
            Antes de prosseguir nesta crônica, devo confessar que o Mia Couto do início de carreira nunca foi dos meus prediletos. Fã ardoroso de Guimarães Rosa (outro dia aprendi com um amigo que “fanático” deriva de “fã”), pressentia na linguagem do moçambicano uma imitaçãozinha Roseana, o que me parecia sacrilégio imperdoável.
            Penso que ele vem abrandando a forma com o passar do tempo, livrando-se da influência poderosa de Guimarães Rosa, porém conservando o gosto pela invenção das palavras, o que de forma alguma é pecado. Tantos outros o fazem em nossa língua, dentre eles o mestre Manoel de Barros.
            No novo livro em questão, no segundo parágrafo do primeiro conto, O não desaparecimento de Maria Sombrinha, do livro Contos do nascer da Terra (Companhia das Letras, 2014), lê-se um Mia Couto suave, com o tal abrandamento de linguagem:

“Deu-se o caso numa família pobre, tão pobre que nem tinha doenças. Dessa em que se morre mesmo saudável. Não sendo pois espantável que esta narração acabe em luto. Em todo o mundo, os pobres têm essa estranha mania de morrerem muito. Um dos mistérios dos lares famintos é falecerem tantos parentes e a família aumentar cada vez mais.”

            O livro compõe-se de 35 contos breves, muitos deles publicados originalmente em jornais e revistas, quase todos revistos e modificados pelo autor. Agora que tenho dedicado algumas horas semanais à chamada arte culinária, não posso deixar de fazer referência ao conto intitulado A viagem da cozinheira lacrimosa, que temperava a comida delicadissimamente com o sal das lágrimas. “É comida temperada a tristeza”, dizia ela.
            Vale a pena conferir os Contos do nascer da Terra. (Em tempo, a capa de Claudia Espínola de Carvalho é lindíssima!)