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quinta-feira, 31 de março de 2022

A janela

 Diário da demenciação


 

Findo o noticiário da tevê, tomamos banho, nos tentamos à mesa para jantar. Abrimos uma garrafa de vinho, cada um conta as novidades do dia, na maior parte das vezes o papo flui animado interessante alegre construtivo educativo mesmo. É o que sempre chamei simplesmente de conversa, coisa inventada pelos gregos há mais de 2.000 anos, sob o nome de diálogo

            Lá pelas tantas, bate o sono, vamos dormir. Hora de fechar a casa. Há um alarme que precisa ser ligado depois que todas as portas e janelas estejam fechadas, menos aquela do quarto de dormir, que desejamos permaneça aberta, e que é desarmada no quadro do alarme. Mas há uma maldita janela do quarto de televisão, que sempre me esqueço de fechar. Desligo o computador, mas não fecho a janela.

            – Toda noite é a mesma coisa, vou ligar o alarme e janela do quarto da televisão está aberta, então tenho que ir fechar a janela, não adianta falar, toda noite é a mesma ladainha, estou cansada de falar, de nada adianta.

            – Me desculpe. Esqueci.

            De que adianta pedir desculpas? Pior ainda, essa palavrinha estúpida “esqueci” faz sentido para mim, mas não faz sentido para minha mulher. 

      – Como esqueceu, se toda noite repito a falação?!

            Há uma outra teoria sobre o fato em questão e que pode explicar o fenômeno. Aquela janela não existe para mim, à hora de fechar a casa. Se não existe, se em seu lugar há uma impenetrável parede maciça, então não há esquecimento... Não se esquece daquilo que não existe. (Se não me falha a memória (!), a isso Freud denominou ‘alucinação negativa’.)

            Ontem me preparei para o funesto evento: deixei um escandaloso bilhete ao lado da tevê, uma folha de papel A4, com o recado JANELA! À hora habitual ainda olhei para aquele papel estranho e me perguntei:

            – O que isso está fazendo aí?!

      Que merda!




Foto: AVianna, 2020.

 

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Progresso?




 

O processo de demenciação avança em ritmo acelerado. O progresso – ou se trata de retrocesso? – do distúrbio ganhou novo ímpeto, talvez seja sua evolução natural, ou ando abusando da costelinha-de-porco criado em Coromandel.

            Filme que vi ontem.

            Livro que estou lendo.

            Notícias mais recentes.

            Tudo se escoa por um ralo invisível, as imagens desaparecem na escuridão da memória, as palavras voam céleres para o mundo do nada.

            Os nomes próprios, para onde foram? Eu não sabia que era tão difícil conversar quando não lembramos dos nomes próprios. Aquele cara que fez aquele filme em que trabalha aquela atriz famosa lindíssima... como é meeeesmo o nome dele? Que filme?, pergunta minha mulher com cara de espanto.

            Outro dia aconteceu numa livraria:

– Moça, eu queria muito um livro, mas esqueci o nome.

– Lembra o autor?

– Não.

– A editora?

– Também não.

– Qual o assunto?

– Perda de memória.

            Ainda bem que me lembrei do assunto, não era nome próprio.

            Há vantagens! Estou revendo filmes ótimos no streaming (como é que consigo lembrar com facilidade dessa palavra que nem é do português?). Revendo pela primeira vez! Explico melhor: estou revendo com absoluta certeza que assisto pela primeira vez. Filmes ótimos! Outro dia assisti Um homem de sorte, com 2 h 47 min de duração!; à noite, com minha mulher, Vi um filme excelente hoje, a história se passa na Escandinávia (tenho me utilizado desse expediente com frequência: não me lembrava se era na Finlândia, Dinamarca ou Noruega, então mandei Escandinávia).  Ao reproduzir o título (escrito num pedacinho de papel), ela sapecou, Mas já vimos esse filme antes, é bom mesmo! E eu, Como assim?

            Estou pensando em pendurar no pescoço uma pequena lousa, um punhado de giz num bolso, um apagador no outro. Só para voltar a conversar.

            Enquanto isso, o terapêutico Diário da Demenciação prossegue firme.

 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Segue o Diário da Demenciação

 

14 de novembro

 

O gosto pela escrita permanece em mim, mesmo diante da incompetência de sempre, agora agravada, e mesmo percebendo que ninguém mais lê o que escrevo. Avento a hipótese de que isso possa ser uma manifestação do processo de demenciação, isso de escrever para mim mesmo, uma espécie de falar sozinho, e resolvo voltar ao meu Diário da Demenciação para desenvolver a teoria.

            Falar sozinho é coisa de maluco? Parece que não, tem gente bem normal falando sozinha pela vida afora, dizem até que se trata da forma de algumas pessoas organizarem os próprios pensamentos. Eu mesmo, antes da velhice e do tal processo, nunca falei sozinho; pensar em silêncio me bastava. Como não cultivava aquele hábito, hoje escrevo para o silêncio. Talvez seja uma explicação.

Mas pode ser coisa de maluco também, tanto o solilóquio quanto o silêncio mais fechado. Aconteceu na Itália: a mulher era conhecida na aldeia onde morava por ser uma faladeira dos infernos, uma matraca, falava sem parar – e portanto sem pensar –, para desespero de quem estava por perto. Para de falar um pouco, Madalena, que tormenta!, clamavam os vizinhos. Pois não é que certo dia Madalena parou de falar! Assim, de repente, puff!, silêncio absoluto, veio gente de todo lugar para ouvir o silêncio de Madalena, que nunca mais falou. Nunca mais até o dia de sua morte. Consumida por um cancro no estômago, de uma magreza de fazer pena, Madalena fez um pedido, a voz sumida mas ainda clara:

– Una pasta, per favore!

Comeu bem pouco, e morreu.

Aconteceu dentro de um ônibus, enquanto um grupo de estudantes de Medicina do primeiro ano fazia uma excursão a um balneário, em comemoração ao ingresso na universidade. Em meio à balbúrdia generalizada, um colega permanecia sentado na janelinha, no mais profundo silêncio. A viagem durava já cinco horas quando o moço foi provocado com insistência, Fala alguma coisa, Bernardo!

– Apóstrofe!

E permaneceu calado até o dia em que o grupo retornou ao Rio de Janeiro. Dois dias depois ele trancou a matrícula. (Agora me lembro, já contei essa história aqui no blog; repetir faz parte do processo).

 

 

17 de novembro

 

Um fio de pensamento me desviou do assunto no diário anterior. Comecei falando no significado possível de escrever para mim mesmo, o que chamei de escrever para o silêncio, e me perdi pelas histórias desse mundão de deus.

            Retorno ao tema. Que sentido poderá haver em escrever escrever escrever, sem que esta produção miserável jamais chegue aos olhos de alguém? Se a escrita fosse registrada em cadernos manuscritos – uso o plural porque o número deles passaria de 47 nessa altura dos acontecimentos –, algum dia em remoto futuro eles poderiam ser encontrados numa casa velha, no fundo de um baú qualquer, e a partir daí, ninguém sabe o que poderia acontecer. Mas os textos permanecem no hard de um computador, e a chance de que nunca sejam descobertos aumenta ainda mais. Basta uma pane no computador e puff!, desintegra-se a escrita. Ninguém há de chorar por isso.

            E por quê então continuo escrevendo para mim mesmo? Posso ensaiar algumas respostas; a primeira que me ocorre é que se trata de manifestação do processo de demenciação. (Uma certa obsessão pela grafia das palavras me persegue, desde o primeiro ano do ginásio, quando numa prova de História escrevi Brazil, assim mesmo, com zê, e toda a escola veio abaixo, ou melhor, caiu em cima de minha cabeça, fui ameaçado de reprovação e o escambau. Por isso procuro a palavra demenciação em todos os dicionários de que disponho, físicos e virtuais, não são poucos, e não a encontro. Encontro dementação, mas não gosto dela; prefiro demenciação. Uma hora dessas sugiro a palavra ao Dicionário Informal, que tanto aprecio. Até já colocaram lá a palavra avencário, de minha lavra, para orgulho meu.)

            Outra vez o fio do pensamento escorreu pela grafia das palavras e a ideia central se perdeu.

 

 

19 de novembro

 

Quantos dias serão necessários para que eu consiga desenvolver e concluir uma ideia relativamente simples?

            Vou direto ao ponto. Escrever para mim mesmo seria o pendant, o correspondente de falar sozinho. Em vez de demência, pode ser uma tentativa de preservar a sanidade mental. É isso.

            Mas pode ser demência...

sábado, 10 de abril de 2021

Meu Pai

 

 

Posso me lembrar, de pronto, de dois filmes recentes que tratam do tema da demência, de forma a emocionar profundamente àqueles que gostam de cinema: Amor e Para sempre Alice. A eles se soma agora o espetacular The Father (Meu Pai), estrelado por Anthony Hopkins e Olivia Colman. O diretor Florian Zeller é autor da peça de teatro Le Père, que deu origem ao filme; a adaptação é muito bem feita, de modo a explorar os elementos audiovisuais do cinema com maestria.

            Desde as primeiras tomadas no interior de um amplo apartamento o diretor busca desorientar o expectador com uma sequência de cenas nas quais a troca contínua de personagens não faz qualquer sentido para o protagonista – nem para o suposto sadio expectador. Desde logo o brilhante desempenho de Hopkins acentua tal impressão, tamanha a expressividade dos diálogos, quando ele ainda aparenta ser um homem normal, que apenas não sabe o que está acontecendo. Logo em seguida o estado de demência torna-se evidente. A partir daí, não tenho adjetivos para descrever a atuação desse ator. 

            Passados dez ou quinze minutos desde o princípio do filme pude notar em mim profundo desconforto, uma certa aflição, que só o cinema de qualidade pode proporcionar; afora aquilo era meu, e ainda o é no momento em que escrevo esta crônica, independentemente da história.

            Meu Pai fala das relações da pessoa idosa com a família, filhos, da vida cotidiana, quando a velhice é acompanhada da deterioração mental e a percepção do mundo real sofre definitivas transformações. Cenas emocionantes entre pai e filha são valorizadas pelas atuações de Hopkins e Olivia Colman. 

Nas cenas finais, a dor psíquica causado pela doença, a sensação de completo abandono e desamparo, a ponto de Anthony – o protagonista toma emprestado o nome do ator e sua data de nascimento – chamar pela mãe e chorar como um bebê.

Há grande diferença em retratar a demência já instalada, de que trata Meu Pai, e o processo de demenciação, revelado em Amor e Para sempre Alice. No primeiro filme as alucinações, delírios, perda grave da memória, desorientação de tempo e espaço, mudanças bruscas e violentas de humor surgem desde o princípio, sem que se possa fazer qualquer ideia de quem foi aquela pessoa antes da doença. Nos dois outros filmes citados, os pequenos lapsos, os esquecimentos – em especial de nomes próprios, o que pode ser bastante aflitivo –, as alterações inesperadas e desproporcionais de humor, até mesmo a depressão, marcam, como o próprio nome indica, o processo de demenciação. Em ambas as situações, o sofrimento do paciente e de quem está a sua volta é sempre muito grande.

Quando me refiro àquilo que é meu, aos 74 anos de vida, é só meu: esta crônica é uma pálida tentativa de repartir com o eventual leitor o modo como vi The Father. Tenho enorme dificuldade em lembrar nomes próprios; há dois dias coloquei açúcar cristal no saleiro e estraguei a salada de minha mulher; esqueço o gás do fogão aceso após retirar a panela do fogo; ligo a máquina de lavar para adiantar o serviço e me esqueço de estender a roupa para secar; perco o celular pela casa; quando não posso me esquecer de algo, tomo nas mãos um objeto qualquer, para não me deixar esquecer, mas acabo me esquecendo da serventia daquele estranho objeto. Melhor parar por aqui.

O exercício diário de escrever é a tentativa de preservar o que resta de minha mente. Não se trata de tentativa desesperada porque me é fonte de grande prazer.

Vale a pena ver Meu Pai.

 

 

sábado, 2 de janeiro de 2021

Mesa ou cadeira?

Non-sense-photography 



A mulher ordenou que botasse a mesa. Ele confundiu mesa com cadeira, e depois perguntou:

– E agora, onde eu sento?

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Insólita cena

 


 

            Estou atento aos mínimos sinais. Até quando, até quando?

            Uma de minhas funções cotidianas é botar a mesa para o almoço, o que faço sem dificuldade, seguindo as regras da boa etiqueta. Ontem, uma surpresa: me deparo com a intrigante imagem de um prato e duas facas dispostos em meu lugar à mesa. Como assim? Assim não posso comer...

 

            Alinhavo de pronto algumas hipóteses para justificar a cena.

            – Uma piada?

            – Simples distração?

            – Pura falta de atenção?

            A última hipótese me atrai, provavelmente devido a repetição do fato em refeições anteriores, não muitas.

 

            Gosto da palavra lunático, que segundo o Houaiss significa “aquele que vive fora da realidade”. Aquele que vive mais na Lua que na Terra. Se estou na Lua, como posso dispor corretamente os talheres na mesa de minha terráquea casa?

            Talvez esta distração possa ser uma das primeiras manifestações do processo de demenciação, a falta de atenção. 

            Alienação também é uma boa palavra para exprimir tais ideias. Voltemos ao dicionário: afastamento,alheamentodistração, são significados registrados e pertinentes. A mente divaga e o corpo vai junto, naturalmente. 

            Já não sou eu quem bota a mesa? Que outro será este? Permaneço atento aos mínimos detalhes, na tentativa de manter o Eu no lugar onde sempre esteve.

            Ou se trata apenas de uma piada?

            

sábado, 19 de dezembro de 2020

Retorno à infância ou Tomilho


 

...

– Pega pra mim, na horta, cebolinha e tomilho.

– É prá já.

...

– Isso não é tomilho, é orégano.

– Ah!

– Tomilho é miudinho.

– Ah!

– Gabi, com 6 anos, sabia o que é tomilho!

– Ah!

...

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Diário da demenciação

 A consciência plena da perda contínua e inexorável das capacidades intelectuais é, em si mesma, um tormento a ser superado; mas como?           No princípio ainda há recursos mentais que permitem que se possa pensar sobre o processo já em andamento. A perda da memória para os fatos mais recentes se destaca, e começa a afetar os gestos banais do cotidiano. O sujeito sente sede, vai até a cozinha em busca da água, vê o vidro de biscoitos, não resiste, come um biscoito, volta para o quarto de tevê, e logo em seguida percebe que a sede persiste. 

A mulher reclama de qualquer coisa inadequada que ele fez, nada de grande importância, porém ele se aborrece. Como está de saída para o trabalho, ela diz Já estou indo, até logo, e ele retruca em voz alta, como se estivesse pensando e portanto ninguém mais ouvindo, Já vai tarde. Ela ouve, compreensiva, releva. Ele pensa sobre a própria atitude com autocrítica, acha-a engraçada, infantil, uma espécie de retorno à infância.

À medida em que a perda se acentua, naturalmente fica mais difícil a autocrítica. O que há pela frente? O medo, suponho, deve ser sentimento preponderante, e não se sabe bem até mesmo a razão do medo. Medo de quê?  Simplesmente medo, talvez porque o sentido das coisas está se esfarelando, nada mais faz sentido, e a vida passa a se manifestar através de fragmentos. É o homem em frangalhos.

Começa a ficar difícil manter juntos os fragmentos, unidos em torno de um Eu. Os fragmentos vão se perdendo pelo caminho entre o quarto de tevê e a cozinha: nem água nem biscoito. Melhor não olhar no espelho para não ter de perguntar, Quem é esse aí? qual sua história de vida? onde nasceu? como se chama? teve pai? teve mãe? mas todo mundo não teve pai e mãe algum dia? São perguntas que atordoam, atormentam, cansativas, exaustivas, para as quais não há resposta. Com a dispersão dos fragmentos se acentua o não reconhecimento do próprio Eu.

A Música que ele tanto amava transforma-se em barulho que atordoa. Ele tapa as orelhas com as mãos e o barulho persiste persegue importuna. Estará alucinando?

Ler um livro, nem pensar. Muito difícil juntar B com A em beabá. A infância novamente. Que sentido têm as palavras? Sem tido. Sem... nada.

As imagens de um quadro há muito apreciado agora se embaralham, Onde vai dar essa estrada? árvores? um cavalo? que confusão? Ele prefere não olhar. Ou que a tela esteja em branco. Talvez por isso ele passe horas diante da tela em branco do computador. 

Já é impossível pensar. 

Mesa carro vela acesa fumaça feijão, O cão que lambe a minha mão, esse cão me reconhece, que cão é esse? por acaso ele tem dono?

Mais uma vela que se apaga: ela se diz minha filha, Mas algum dia tive filha?

O pior está por vir. Enfiaram-me um tubo pelo nariz e, dizem, me alimentam por ele. Como? Não como, não sinto gosto de nada. Ainda me lembro, gostava tanto de empadinha de frango! Agora enfiam-me a empadinha pelo tubo e não sinto gosto de nada. A vida perdeu o gosto.

Para quê viver? Arranco o tubo, não quero essa empadinha insípida, desejo morrer, apenas, simplesmente, definitivamente. Mas isso não pode ser aceito por quem cuida de mim.

Perdi minha autonomia, vivo sob cuidados de gente que decide por mim, que devo comer empadinha de frango sem gosto e pronto, porque é preciso continuar vivendo.

 

 

3 de fevereiro

 

Ainda, às vezes, busco algum sentido. Sem tido? Sem.

 

 

15 de junho

 

Quem?

 

 

12 de dezembro

 

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