sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O médico que lê é um médico melhor?

Resumo de conferência
a ser proferida na
Faculdade de Medicina, UnB/HUB.

            Se vamos tratar de Leitura, melhor começar pelo princípio, com uma recomendação bem recente dos pediatras: que os pais leiam livros de histórias para seus bebês! Este ato estimula a aquisição da linguagem e aprimora a capacidade de comunicação das crianças, o haverá de servir para a vida toda.
            Mas as minhas palavras são dirigidas especialmente aos médicos (e por que não a seus pacientes?), e ao citar atitudes que repercutirão por toda a vida, é preciso ressaltar que a formação do médico não tem início na Faculdade de Medicina. A “formação” do ser humano inicia-se quando ele nasce (há quem diga, que ainda antes do nascimento...).
            Freud descreveu o que chamou de impulso epistemofílico nas crianças pequenas, em particular a curiosidade a respeito da origem dos bebês e da vida sexual dos adultos. Esta curiosidade, inata no homem, faz com que desde cedo ele busque o conhecimento. A leitura constitui-se num importante facilitador nessa busca, o que, mais uma vez, também vale para toda a vida.
            Uma boa Educação, no sentido mais amplo da palavra, desde a infância, passando pela adolescência, haverá de propiciar ao jovem que chega à universidade melhores condições para a aquisição de conhecimentos profissionais, seja lá em que área for. O contato com as Artes em geral, e em particular com a Literatura, faz parte desta formação, tão importante para aquele que deseja ser um bom médico.
            Com relação à inserção da Literatura nas Artes em geral, é no mínimo curiosa a observação feita por Vincent van Gogh em carta endereçada ao irmão Theo, em que o renomado pintor afirma:

“Há muita gente, especialmente entre nossos colegas, que imagina que palavras nada significam. Ao contrário, é tão interessante e difícil dizer bem uma coisa quanto pintá-la. Há a arte das linhas e cores, mas há a arte das palavras, o que vem a ser o mesmo.”

            Bem, nosso jovem estudante chega finalmente à universidade, para o difícil curso de formação de médicos. E lá, durante todo o curso, os professores procuram ensinar:

– O que o médico pode fazer por seu paciente?

Penso que a questão primordial não é bem esta, e sim:

O que o médico pode fazer por si próprio?

Depois de aprender a ajudar-se, então ele poderá ajudar o paciente. (Pouco antes da decolagem de um avião, a comissária de bordo avisa aos passageiros: em caso de despressurização da cabine, coloque a máscara de oxigênio primeiro em você, e depois na criança que está a seu lado.)
            Em outras palavras, a leitura oxigena o cérebro!
            Aqui cabe um alerta: De que leitura estamos falando? Do texto técnico-científico ou daquele de caráter humanístico? Ora, não se faz um bom médico sem uma sólida formação científica, que deve manter-se atualizada ao longo de toda a vida profissional. Quanto a isso não há discussão. (O charlatão dispensa este pré-requisito.)
            Estamos a falar, pois, da leitura humanística, e a pergunta que agora se impõe é: O que ler e o que não ler? Por princípio, não leiam autoajuda. Leiam Alta ajuda, título do interessante livro de Francisco Bosco (Ed. Foz, 2012).
            Em seus Aforismos, Arthur Schopenhauer afirma:

“A arte de não ler é muito importante. Consiste em não sentir interesse algum por aquilo que está a atrair a atenção do público numa determinada altura. Quando um panfleto político ou eclesiástico, um romance ou um poema estão a causar grande sensação, não devemos esquecer-nos de que quem escreve para tolos tem sempre grande público. Uma condição prévia para ler bons livros é não ler os maus: a nossa vida é curta.”
            
             A primeira e mais direta consequência do hábito da boa leitura é que ela aprimora a capacidade de expressão/comunicação do indivíduo, o que afeta de modo decisivo e para melhor a relação médico-paciente.
            Aquele que lê o Édipo tirano, de Sófocles, escrito há 427 anos a.C., é capaz de compreender melhor o psiquismo do paciente e seu próprio modo de pensar e sentir.
            Do mesmo modo que a Bíblia Sagrada foi considerada o livro mais importante do primeiro milênio d.C., Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) é tido como o grande livro do segundo milênio.
            Shakespeare nos ensina a reconhecer e lidar melhor com os nossos sentimentos. Em Hamlet, nos auxilia a lidar com a dúvida, a incerteza e o imprevisto – é a vida, mesma. Não há profissional que mais necessite deste aprendizado que o médico. Em Otelo, a compreender um dos mais terríveis sentimentos humanos, o ciúme. E em Rei Lear, a nos precaver dos difíceis e inevitáveis embates familiares.
            Publicado em 1900, prenunciando um novo século no desejar do autor, A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, promoveu verdadeira revolução no pensamento humano, assim expressa nas palavras de Harold Bloom, autor do Cânone Ocidental: “A Literatura pode ser dividida em duas fases, antes e depois de Freud.”
            Nesse mesmo ano publicou-se entre nós Dom Casmurro, do genial Machado de Assis (1839-1908), profundo conhecedor da alma humana, e que até hoje tem muito a nos ensinar.
            Há poucos dias comemorou-se os cem anos de A Metamorfose, de Franz Kafka, e que traz, talvez, o período inicial mais famoso e intrigante de toda a literatura:

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.”

            Se fosse preciso escolher o melhor livro da literatura brasileira, nonada, eu não haveria de pestanejar, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, um médico de formação.
            Não podem ficar de fora de qualquer lista de bons livros O Evangelho Segundo Jesus Cristo e o Memorial do convento, de José Saramago, nosso único Nobel de Literatura da língua portuguesa.
            Wilfred R. Bion (1897-1979), psicanalista inglês nascido na Índia, cunhou o termo “expansão psíquica”, comparando-a a uma espiral ascendente e expansiva, referindo-se à potencialidade da mente humana, a de expandir-se sempre. Pois a leitura estimula a expansão psíquica. Além do que alimenta a ideia, fundamental para o bom exercício da medicina, de que cada paciente é único, como cada autor, cada pessoa, cada médico.
            Concluo esta conferência salientando a necessidade, por parte do médico, de compreender a linguagem simbólica de seu paciente, em especial daquele que vive situações extremas, como o chamado paciente terminal. Há duas maneiras de se aprender a reconhecer e traduzir esta linguagem simbólica: através da prática da Psicanálise, e da leitura de Poesia. Esta última permanece ao inteiro alcance de todo e qualquer médico ao longo de sua vida.
            Para ilustrar tal afirmação, transcrevo o poema Os ombros suportam o mundo, de Carlos Drummond de Andrade, extraído do livro Sentimento do mundo.
           
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. 

Tempo de absoluta depuração. 

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil. 

E os olhos não choram. 

E as mãos tecem apenas o rude trabalho. 

E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se, 

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer. 

E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? 

Teus ombros suportam o mundo 

e ele não pesa mais que a mão de uma criança. 

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios 

provam apenas que a vida prossegue 

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo, 

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer. 

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. 

A vida apenas, sem mistificação.

           
Em conclusão, respondendo à pergunta que dá título a esta conferência, afirmo que:

Sim, o médico que lê pode tornar-se um médico melhor!




Em tempo, meus agradecimentos, pelas contribuições ao tema, ao Dr. Paulo Sergio Viana, um médico que lê.