quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Não-saber


O não saber incomoda tanto o ser humano que, desde a infância, ele inventa, cria teorias (a origem da Fantasia), a partir da onisciência e onipotência infantis, e inicia assim o processo de aprendizado do pensar.
            Só então ele aprende a formular perguntas (a fase dos porquês), para continuar aprimorando o funcionamento do denominado “aparelho de pensar” (W. R. Bion).
            Como as respostas pouco ensinam (porque sempre incompletas), pode-se continuar perguntando vida afora, e consequentemente, aprendendo.
            Ou então pode-se concluir que já se sabe (uma Ilusão) e com isso interromper o processo de aprendizado do pensar, às vezes para o resto da vida. (É possível que os chamados livros de autoajuda, que apresentam soluções prontas e acabadas para o sofrimento psíquico do ser humano, colaborem fortemente para a Ilusão do saber.)
            A enorme dificuldade de se conviver com o não saber deve-se à perseverança da onisciência infantil na vida adulta, e tal desconforto (o não saber) gera agora (e cristaliza) verdades definitivas, aparentemente confortáveis (Eu Sei, Tenho Certeza!), mas que emperram o funcionamento do “aparelho de pensar” (provavelmente uma das causas do fundamentalismo religioso, em oposição ao progresso da Ciência, ancorado no contínuo e disciplinado desejo de saber).
            O processo analítico pode nos ensinar a tolerar o não saber e, mais que isso, propiciar verdadeiro conforto psíquico diante do Não Sei!, preservando assim o saudável e permanente processo de aprendizado do pensar e a consequente expansão psíquica.

Observação

Ao perceber que as trepadeiras subiam céleres pela cerca do jardim, ela resolveu fazer o mesmo. O marido pegou-a em flagrante.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

instantâneo

se não posso reviver
o passado, e o futuro
está por vir, o que resta
(sei que isso não é pouco)
é o presente, a fração
diminuta desta vida
que dura apenas o tempo
da escrita de um poema

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Efeito tardio


O trauma psíquico assemelha-se à mina terrestre, que depois de plantada tem seu potencial explosivo mantido por longo tempo. Até ser desativada.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Escolhas

Desde criança, era louco por carros. Mas nunca gostou de estudar. Foi ser manobrista de estacionamento.

Só de raiva!

Depois de ver seu bar assaltado 18 vezes, tomou providência definitiva:
- A bebida agora é de graça!

O louco da aldeia


O que mais surpreendia o menino era a atitude do pai, homem conhecido por sua rigidez, pelos julgamentos rigorosos, e que abria a porta de casa e recebia, até com certa gentileza, Heitor, o louco da aldeia. O pai não abria a porta da casa para qualquer um. Para ser mais preciso, o pai rarissimamente abria a porta da casa para alguém. Fazia-o, às vezes, por obrigação, nunca por gosto, pressionado pela mulher, Deixa de ser bicho do mato, homem. Se não frequentava a casa dos pouquíssimos amigos que tinha, se é que podia chamá-los amigos, colegas talvez, com que direito pensavam eles que podiam importuná-lo em seu próprio lar? Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz, não cansava de repetir.
Mas não era um bronco, o pai. Aquela mania de utilizar-se de ditados, provérbios, adágios, anexins e afins, adquiriu-a com a leitura atenta de Cervantes, da admiração profunda pelo Dom Quixote e seu escudeiro fiel. Possuía edição riquíssima do Engenhoso Fidalgo, em quatro volumes encadernados em couro, gravados com letras douradas e ilustrações de Gustave Doré, um verdadeiro tesouro, o orgulho de sua biblioteca. A torto e direito, sem quê nem porquê, lá vinha o pai com Tantas vezes vai o pote à fonte que um dia ele se quebra, Falar é prata, calar é ouro, Mais vale um pássaro na mão... Tampouco era ingênuo, o pai. Extremamente religioso, a tal rigidez e o isolamento social eram provenientes muito mais de uma austera retidão moral, Este é um mundo de expiações e provas!, resumia.
O menino não dispunha de palavras precisas, sutis, sofisticadas para analisar o pai e definir-lhe a personalidade, mas era dotado de agudo senso de observação, além de um genuíno e precoce poder de reflexão sobre a natureza humana. Intrigava-o, portanto, aquela relação do pai com Heitor, o louco da aldeia. O homem assustava até pelo porte físico, enorme, mais de 140 Kg de peso, pletórico, atarracado, ao andar adernava com pernas e braços abertos, buscando o difícil ponto de equilíbrio, a cabeça enterrada no tronco sem pescoço, o que talvez explicasse a voz cavernosa saída diretamente dos pulmões para a boca e a respiração ofegante e ruidosa a sugerir alguma obstrução respiratória, o cabelo cortado rente à escovinha ressaltando a cabeçorra redonda como uma bola de futebol. Impressionava mais que tudo a cor dos olhos, sempre arregalados, de um azul-água quase transparente. Eram doces os olhos de Heitor.
A fala era rápida, entrecortada por soluços e engasgos, as palavras saiam comidas pela metade, Trouxe uns diamantes da minha fazenda para o senhor, disse Heitor assim que entrou na pequena varanda. O pai agradeceu amável, Muito obrigado, Heitor, são lindos!, e recolheu as quatro pedras roliças, lisas, dessas que se encontram no leito dos rios, cada uma pesando cerca de meio quilo, Vou guardar os diamantes com carinho, São da minha fazenda na Mantiqueira, Ah!, você tem uma fazenda na serra?, Tenho cinco mil e quinhentos alqueires de terra muito boa, tudo plantado de café, estou exportando café, Que interessante!, café plantado nas alturas dizem que é do bom, Além da mina de diamantes, foi de lá que tirei esses aí, Ah!... A exclamação do pai deixava transparecer a maior sinceridade possível.
E a conversa prosseguia animada, o menino assustado entreolhando pela fresta da porta, tão perplexo com as pedras quanto com a solicitude e a aparente credulidade do pai. Serão mesmo diamantes?, chegou a pensar, E se os diamantes estiverem no miolo das pedras, que precisam ser quebradas para revelar o tesouro? O menino começou a duvidar de tudo, de todos, dele próprio, e delirou diante daquela estranha e incompreensível realidade.
Heitor despediu-se, o pai entrou carregando as pedras, sorridente, bem humorado, e percebeu o ar interrogativo do filho, ar de aflição mesmo, e tranquilizou-o, É o Heitor Louco, meu filho, mês que vem ele volta com mais diamantes, e jogou as pedras no fundo do quintal. Mais não disse, nem lhe foi perguntado.
Muitos anos se passaram, o menino tornou-se homem, e aprendeu que não se desmente uma alucinação, pois para quem alucina, aquela é uma verdade inquestionável. O pai, de alguma forma, intuíra o conceito de realidade psíquica, algo que embora não seja concreto, nem por isso deixa de ser real.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Extravagância

Íntegro, conservador, muito religioso, frente a uma insinuação maldosa perdeu a cabeça e soltou um palavrão: Ora bolas!

cheiro de infância

este maldito cheiro
de doce de banana
a inundar a casa
na manhã de sábado

é o cheiro que não passa
da minha infância
pois é doce o cheiro
- hoje sei e sinto -

da minha infância
que não deixo passar

A bondade de maria


Embora maria tenha lavado minhas fraldas quando nasci, pois não as havia descartáveis naquela época, no mês de janeiro mais chuvoso de que se tem notícia até os dias de hoje na Capital, a primeira lembrança que tenho dela data de nossa mudança para a casa vizinha à casa de meus avós no Interior e eu já era um menino crescidinho, e maria era a empregada de Breno e Ceci, desde sempre, salvo antes de ela chegar à casa de meus avós, e aí residia o mistério!
maria era a cozinheira e a cozinha o seu reino. Lá ela mandava e desmandava, escolhia cuidadosamente os ingredientes no mercado municipal, carnes, verduras, legumes, frutas, os mais variados temperos, incluindo a pimenta malagueta, a indispensável banha de porco que emprestava todo o sabor às comidas, estipulava ela mesma o cardápio, às quartas pastel de queijo, carne, palmito ou frango, sua especialidade, embora não fossem menos apreciados o torresmo, o feijão mulatinho temperadíssimo, o bife acebolado às segundas, o frango ao molho pardo às quintas-feiras, o arroz soltinho todo santo dia. Manjar de coco com ameixas, a sobremesa preferida da avó. No verão, sorvete de abacaxi! As refeições encerravam-se infalivelmente com o cafezinho de coador, forte, perfumado, saboroso, entregue ao avô adoçado e mexido, em xicrinha de porcelana, por Ceci, um doce de mulher.
Não havia quem desconhecesse a infinita bondade de maria. Analfabeta, pobre, meio índia, quase sempre coberta de andrajos, porém boníssima, paradoxalmente boníssima... Chaninho, o seu gato predileto, com tinturas de angorá; havia outros, inúmeros, iam aparecendo e desaparecendo com o tempo, apenas Chaninho permanecia, fiel como um cão, proprietário. maria os alimentava a todos com iscas de carne de primeira, aquela que seria servida no almoço, para desespero de Ceci, econômica ao extremo. Mas quando alguma gata de rua dava cria, maria pegava todos os filhotinhos, enfiava-os num saco com uma pedra, jogava da ponte bem no meio da correnteza do Ribeirão dos Alves.
- Coitadinhos, não terão o que comer, alegava.
Além da bondade, o cigarro de palha de fumo-de-rolo forte, fedorento, grosso, longo, enorme para que durasse todo o dia, que se não estava no canto da boca desdentada repousava atrás da orelha sempre à mão, era a outra indefectível marca de maria. À noite, no silêncio do infecto porão sem janelas onde dormia em um catre imundo, maria acendia o terceiro cigarro do dia; acompanhava o pito a tosse violenta, catarrenta, constante, cansativa, maligna, e que anos mais tarde a levaria à horrorosa morte enfisemática.
Apenas uma vez vi maria derramar lágrimas copiosas, ela uma pessoa boníssima e feliz, alegre e risonha por natureza. Foi quando Otília a repreendeu severamente por não ter impedido que Beatriz, a filha mimada, brincasse de pular sobre um copo de vidro, de-lá-pra-cá-daqui-pra-lá interminavelmente, E se Beatriz caísse sobre o copo e o copo se quebrasse?, gritou Otília, histérica, maria sentidíssima, mas a bondade dela a impedia de compreender essas coisas, essas interdições, tudo aquilo que não fosse o desejo do outro, não o dela, que desejos ela não os tinha, parece que nem sabia o que era desejar.
            Todavia, havia um mistério. Não se falava uma palavra sobre o passado de maria, mais um dos assuntos proibidos em casa dos avós, discretíssimos sempre, também por natureza.
            Muitos anos mais tarde ouvi o comentário vindo de Otília de que maria era filha bastarda de um irmão de meu avô, que então tomou a guarda da menina maria, aquela desvalida de lendária infinita bondade, minha segunda mãe. Hoje sei, sou filho de maria.

(Publicado em 47 cenas de um romance familiar.)

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Autobiografias


À primeira vista, apenas os notáveis deveriam publicar autobiografias, gente que, de fato, tem o que dizer, registrar, revelar, tornar público, considerando a vida que levam, os atos que praticam, e geralmente o fazem ao final da vida. A realidade, no entanto, não tem sido esta: as livrarias estão abarrotadas de autobiografias de pessoas de alguma notoriedade, porém “desimportantes”, digamos assim, e que estão longe do fim da vida, provavelmente. Afora o compreensível e legítimo desejo de ganhar dinheiro, o que buscam tais indivíduos ao exporem suas intimidades? A fama perene? O reconhecimento público? Ou trata-se mesmo tão somente de uma jogada comercial?
Todo homem tem sua importância, e, em princípio, tem uma história a ser contada, a história de sua própria vida. E se o homem comum é capaz de contar com engenho e arte a sua história, então podemos pensar que aí reside a origem do Romance. A partir desta ideia, surge a interrogação, desprovida de qualquer ranço de pedante exibicionismo: todos temos direito a uma autobiografia?
Encontro no último livro de Zygmunt Bauman, Isto não é um diário (Zahar, 2012), a interessantíssima pergunta (a diferença entre filósofos e não filósofos é que os primeiros sabem fazer perguntas!): “Qual é, afinal, a diferença entre viver e contar a vida?” E, em seguida, Bauman cita José Saramago, ao qual rende homenagens por ter se tornado fonte de inspiração recente: “Creio que todas as palavras que vamos pronunciando, todos os movimentos e gestos, concluídos ou somente esboçados, que vamos fazendo, cada um deles e todos juntos, podem ser entendidos como peças soltas de uma autobiografia não intencional que, embora involuntária, ou por isso mesmo, não seria menos sincera e veraz que o mais minucioso dos relatos de uma vida passada à escrita e ao papel.”
Portanto, todo homem tem sua autobiografia não intencional, e se a registra em livro ou não, esta é uma outra questão a ser colocada a partir de motivações de ordem pessoal. Queiramos ou não, e é bom prestarmos atenção nisso, (pois trata-se de nossa responsabilidade perante a vida), estamos permanentemente a viver/contar a nossa história. As palavras que proferimos, os gestos que praticamos, representam a inscrição, o registro, a publicação contínua e indelével de nossa autobiografia.