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quinta-feira, 31 de março de 2022

A janela

 Diário da demenciação


 

Findo o noticiário da tevê, tomamos banho, nos tentamos à mesa para jantar. Abrimos uma garrafa de vinho, cada um conta as novidades do dia, na maior parte das vezes o papo flui animado interessante alegre construtivo educativo mesmo. É o que sempre chamei simplesmente de conversa, coisa inventada pelos gregos há mais de 2.000 anos, sob o nome de diálogo

            Lá pelas tantas, bate o sono, vamos dormir. Hora de fechar a casa. Há um alarme que precisa ser ligado depois que todas as portas e janelas estejam fechadas, menos aquela do quarto de dormir, que desejamos permaneça aberta, e que é desarmada no quadro do alarme. Mas há uma maldita janela do quarto de televisão, que sempre me esqueço de fechar. Desligo o computador, mas não fecho a janela.

            – Toda noite é a mesma coisa, vou ligar o alarme e janela do quarto da televisão está aberta, então tenho que ir fechar a janela, não adianta falar, toda noite é a mesma ladainha, estou cansada de falar, de nada adianta.

            – Me desculpe. Esqueci.

            De que adianta pedir desculpas? Pior ainda, essa palavrinha estúpida “esqueci” faz sentido para mim, mas não faz sentido para minha mulher. 

      – Como esqueceu, se toda noite repito a falação?!

            Há uma outra teoria sobre o fato em questão e que pode explicar o fenômeno. Aquela janela não existe para mim, à hora de fechar a casa. Se não existe, se em seu lugar há uma impenetrável parede maciça, então não há esquecimento... Não se esquece daquilo que não existe. (Se não me falha a memória (!), a isso Freud denominou ‘alucinação negativa’.)

            Ontem me preparei para o funesto evento: deixei um escandaloso bilhete ao lado da tevê, uma folha de papel A4, com o recado JANELA! À hora habitual ainda olhei para aquele papel estranho e me perguntei:

            – O que isso está fazendo aí?!

      Que merda!




Foto: AVianna, 2020.

 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Razão e emoção a partir do teatro grego

 

 

Das funções mais nobres da leitura, uma é a de provocar o leitor. Ela depende de dois fatores fundamentais: um bom texto, inteligente, de conteúdo instigador e boa forma literária, capaz de atrair aquele que o lê pela força da arte; em segundo lugar, o próprio leitor, se ele se deixa provocar, se preserva a curiosidade infantil e está aberto a novas ideias e especulações, se não se encontra cristalizado e imobilizado pelos ‘pré-conceitos’.

            Das formas mais eficientes de aceitar e elaborar a provocação contida numa boa leitura, uma é a de escrever sobre o que se leu e agora pode analisar, questionar, interrogar, aceitar, rejeitar ou duvidar do que se acaba de ler. Tal exercício, no mínimo, traz em si a capacidade de expandir entendimento, sentimentos e emoções, sobre o tema em questão.

            Adriane da Silva Duarte, professora de língua e literatura gregas na USP, faz a apresentação do livro O melhor do teatro grego (tradução de Mário da Gama Kury, Zahar editores, 2013), que contém as peças Prometeu acorrentadoÉdipo reiMedeia e As nuvens. Reproduzo aqui um parágrafo do belíssimo texto de Duarte:

 

“A emoção está no cerne da experiência dramática dos gregos. Platão e Aristóteles discorreram sobre o papel das emoções no teatro, especialmente no que toca à tragédia. Para Platão, buscar deliberadamente comover os expectadores, como fizeram, os tragediógrafos, é nocivo, pois enfraquece a parte racional da alma, debilitando o cidadão. Daí, entre outras razões, os poetas trágicos estarem excluídos da cidade ideal juntamente com os épicos. Já Aristóteles, embora tenha sido discípulo de Platão, compreende diversamente a questão. Para ele, o prazer da tragédia está em suscitar e purgar certas emoções, processo que ele denomina catarse. No caso da tragédia, essas emoções seriam o terror e a piedade, o que exigiria uma identificação entre o expectador e o herói trágico, de modo que aquele pudesse se colocar no lugar do último e temesse passar pelo que ele passa, apiedando-se dele, que sofre sem merecer. Desse processo, que Aristóteles não se digna a explicar na Poética, derivaria o prazer que sentimos ao contemplar obras de natureza artística.”

 

            “Buscar deliberadamente comover os expectadores” é o que chamei de provocação. A literatura faz isso magistralmente, mas não apenas a literatura; se dermos um salto para os tempos atuais, poderemos enfrentar o mesmo problema diante do cinema, tipo de arte de penetração extraordinária em todas as camadas sociais, e que por isso serve ao propósito deste texto quase ingênuo. 

            Há o filme e há o expectador. Por que existe o aficionado pelos filmes de terror? O que pretende ele ao desafiar o medo que as imagens lhe causam? (Porque se não causam, não faz sentido ver filme de terror...) Deseja apenas provar que é corajoso e valente? Ou se trata de desafiar as próprias emoções, na tentativa de dominá-las? 

            Há quem prefira ‘filme de amor’. Tipo sessão da tarde, daquele romantismo derramado que provoca suspiros e derrama lágrimas. Por que chorar diante da fantasia? Isso causa prazer ou dor? A emoção, represada, precisa transbordar? Para outros, serão lágrimas de enfado.

            Cinema de violência explícita e incontida faz sucesso mundo afora: são murros, tiros, rajadas de metralhadora, golpes de espada a transfixar o inimigo, jugulares esguichando suco de tomate, cenas horripilantes de tortura, tudo é apreciado a ponto da saliva escorrer pelo canto da boca de certo tipo de expectador. Para que? O que está a extravasar agora? Agressividade? Ódio? Ou é simplesmente a catarse aristotélica! Enquanto isso, “Alguns, achando bárbaro o espetáculo prefeririam (os delicados) morrer”, afirma Drummond em Os ombros suportam o mundo

            Filmes de suspense costumam ser apreciados, exceto pelos que não toleram sustos, seja porque prefiram a calma contemplativa, ou porque talvez vivam permanentemente assustados. As razões de tais preferências e aversões quase sempre nem o expectador conhece, bem guardadas no inconsciente de cada um. 

            O que todos ‘pré-sentem’ é a necessidade de aprender a lidar melhor com os próprios sentimentos e emoções. Para tal, há quem prescreva os clássicos da literatura; outros, a rodriguiana “vida como ela é”; ouvir Mozart ou Beethoven pode vir a ser um santo remédio; o cinema também serve, e muito – terminado o filme, é bom conversar sobre ele. Para os adeptos do bungee jumping, talvez seja necessária mesmo uma terapia.

            Estas são apenas algumas associações que me ocorreram diante das magníficas provocações de Adriane da Silva Duarte. Meu eventual leitor, pensa o quê?

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Estranhas palavras

 

Uma palavra estranha: misocinesia. O radical miso indica raiva, ódio; cinesia se refere a movimento. “Em resumo: os pequenos gestos irritantes dos outros que disparam nossos gatilhos de ódio”. É o que afirma Leandro Karnal, para O Estado de S.Paulo (24 nov 2021), na bela crônica intitulada O diabo das pequenas coisas.

Ao pé da letra, portanto, misocinesia significa “ódio aos movimentos”, uma forte resposta emocional negativa a movimentos pequenos e repetitivos de outras pessoas. Trata-se de condição comum: estudo publicado no periódico Scientific Reports mostrou que um terço da população é misocinésica.

Karnal faz referência a uma segunda palavra igualmente estranha: misofonia. “Sons como o estalar de dedos e outros podem despertar em algumas pessoas um ataque de fúria”, explica ele.

Como surgem, pergunta Karnal.  “Segundo o estudo da UBC, é que nossos neurônios-espelhos seriam ativados com a repetição. São os que impulsionam a seguir o que estamos presenciando. Sumeet M. Jaswal e Todd Handy, pesquisadores do tema, reconhecem que não sabemos exatamente por que a irritação cresce tanto em algumas pessoas.”

Agora a parte mais interessante dessa história. Segundo Karnal, “Santa Teresinha do Menino Jesus, a popular doutora da Igreja, afirmava que sofria de misocinesia. Tinha antipatia por uma religiosa no claustro e o simples fato de a confreira agitar seu rosário a irritava. ... No mesmo texto que ela identifica o horror do simples manejo das contas do rosário, a mística católica indica a solução. Passou a combater a antipatia. Criou reação oposta: todas as vezes que cruzava com a freira que a irritava, Teresinha sorria e manifestava alguma fala simpática e de acolhimento. A religiosa chegou a perguntar a ela sobre o sorriso, desconfiada. Nossa ex-irritada combateu sua disposição de antipatia e a transformou em empatia treinada e eficaz. Uma autossugestão funcional.” 

De fato, reconhecer o problema em si próprio constitui o primeiro passo para a solução. Entretanto, esta mesma solução não vem com facilidade, automática, só porque agora eu sei que que o problema existe. (Talvez isso funcione no caso de uma Santa...) Difícil “domesticar” nossos sentimentos, em especial o ódio profundamente enraizado em nós. 

Nas situações mais graves, quando o distúrbio acarreta intenso sofrimento psíquico, a abordagem psicanalítica pode ajudar. Quando analista e analisando podem trabalhar, quando a dupla analítica funciona, é possível encontrar no Inconsciente as verdadeiras razões para comportamentos estranhos, definidos por palavras estranhas. 

 

 

https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-diabo-das-pequenas-coisas,70003906723

 

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

"A transitoriedade"




 

“Algum tempo atrás, fiz um passeio por uma rica paisagem num dia de verão, em companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem, mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário que nos rodeava, porém não se alegrava com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Tudo o mais que, de outro modo, ele teria amado e admirado, lhe parecia despojado de valor, pela transitoriedade que era o destino de tudo.

            Sabemos que tal preocupação com a fragilidade do que é belo e perfeito pode dar origem a duas diferentes tendências na psique. Uma conduz ao doloroso cansaço do mundo mostrado pelo jovem poeta; a outra, à rebelião contra o fato constatado. Não, não é possível que todas essas maravilhas da natureza e da arte, do nosso mundo de sentimentos e do mundo lá fora, venham realmente a se desfazer em nada. Seria uma insensatez e uma blasfêmia acreditar nisso. Essas coisas têm de poder subsistir de alguma forma, subtraídas as influências destruidoras.

            Ocorre que essa exigência de imortalidade é tão claramente um produto de nossos desejos que não pode reivindicar valor de realidade. Também o que é doloroso pode ser verdadeiro. Eu não pude me decidir a refutar a transitoriedade universal, nem obter uma exceção para o belo e o perfeito. Mas contestei a visão do poeta pessimista, de que a transitoriedade do belo implica sua desvalorização.

            Pelo contrário, significa maior valorização!”

 

 

 

Sigmund Freud

A transitoriedade (1916)

Obras completas, volume 12, p 248

Companhia das Letras, 2010

Tradução de Paulo César Lima de Souza

 

 

            O texto prossegue por mais quatro páginas, sempre belo, elegante, claro e profundo. E Freud conclui:

 

“Superado o luto, perceberemos que a nossa elevada estima dos bens culturais não sofreu com a descoberta da sua precariedade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes.” 

 

O pequeno texto mostra um Freud otimista, apesar da guerra, corajoso, a valorizar a arte ao extremo. Um filósofo que escreve com clareza absoluta, acessível a um grande número de leitores que talvez desconheçam essa sua característica. E que elegância!


terça-feira, 27 de julho de 2021

Memórias que enganam


Lugar de Fala é um espaço destinado aos leitores no site da Revista Cult. Os artigos podem ser enviados mensalmente pelos leitores, obedecendo a um tema específico determinado pela revista. O assunto do mês de julho de 2021 é “Memória”.


(Clique para ler o regulamento: https://revistacult.uol.com.br/home/lugar-de-fala-cult/)

 

Este blogueiro contribuiu com o texto Memórias que enganam. Clique para ler: 

https://revistacult.uol.com.br/home/memorias-que-enganam/


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Mentira e verdade

 

Ao comentar as mentiras que são ditas CPI da Covid, Hélio Schwartsman (8 jun 2021) traz informação importante sobre a natureza humana: 

 

“Meu intuito hoje é desmitificar um pouco a carga moral negativa que pesa sobre o engodo. Por mais doloroso que seja reconhecê-lo, a fraude está inscrita em nosso DNA. Mais até, está inscrita na natureza. Camuflagem, mimetismo e tanatose (fingir-se de morto) são alguns dos mecanismos pelos quais seres vivos tentam ludibriar predadores e presas. ”

 

            O que há de mais interessante no comportamento humano com relação à mentira diz respeito aos bebês e crianças:

 

“Como ensina o psicólogo Robert Feldman, bebês com só seis meses já simulam choro para atrair a atenção dos pais. Entre os três e sete anos, crianças submetidas a experimentos em que se comprometem a não espiar às escondidas um objeto que precisam identificar desobedecerão à regra em 82% das ocasiões e mentirão sobre isso em até 95% das vezes.”

 

            É evidente que Schwartsman não faz a apologia da mentira, apenas reconhece o fenômeno, e conclui:

 

“Existem vários tipos de mentira. Há desde as socialmente necessárias — você não deve falar mal da comida de seu anfitrião mesmo que ela esteja intragável— até as assassinas. Não vamos acabar com as mentiras, que são parte do mundo, mas devemos nos esforçar para bani-las ao menos dessas esferas mais estratégicas.”

 

            A Psicanálise trata do tema Verdade e Mentira desde Freud, quando na interpretação dos chistes ele assinala a existência do “mentiroso que fala a verdade”. W.R.Bion destaca em Cogitações(Imago Editora, 2000), em texto intitulado Necessidade de verdade e necessidade de reajustar constantemente os desajustes (1959), aspecto fundamental:

 

“Os procedimentos psicanalíticos pressupõem que haja, para o bem-estar do paciente, um constante suprimento de verdade, tão essencial para sua sobrevivência quanto o alimento é essencial para a sobrevivência física. Além disso, pressupomos que uma das precondições para sermos capazes de descobrir a verdade, ou pelo menos para procurá-la na relação que estabelecemos conosco e com os outros, é descobrirmos a verdade sobre nós mesmos.”

 

            Quão longe dessas ideias estão nossos políticos que mentem descaradamente, em público, em defesa de interesses escusos. Eles não sabem que a Verdade é o alimento do espírito.

 

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/06/mentiras-na-cpi.shtml

 

 

sexta-feira, 14 de maio de 2021

A Negativa

 

Espantosa a lucidez de Fernando Gabeira em sua crônica de hoje para O Estado de S.Paulo (14 mai 2021): Anatomia da política de negação – Urge buscar medidas que possam salvar vidas enquanto transcorre o trabalho da CPI.

 

“Na base de tudo está a negação da pandemia por Bolsonaro. Esse conceito de negação foi lançado por Freud em 1923. E numa carta de 1937, escrita para um colega, ele cita o rei Boabdil, que ao receber a notícia de que a capital de seu reino, Alhambra, estava sitiada mandou queimar a carta e decapitar o mensageiro. 

Bolsonaro não poderia aceitar a pandemia com os problemas econômicos que trazia e, sobretudo, a ameaça de sua reeleição. De certa forma, ele queimou a carta enviada pelos cientistas e decapitou os ministros que insistiam no tema.”

 

            Daí em diante, foi o que temos visto até hoje.

 

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,anatomia-da-politica-de-negacao,70003714359

terça-feira, 6 de abril de 2021

Duas questões sobre a Psicanálise




1 – Terá existido algum outro psicanalista de verdade depois de Freud?

 

2 – A despeito do monumental constructo psicológico por ele elaborado, terá algum dia Freud exercido o que ele mesmo chamou de Psicanálise?

 

Arrisco palpites:

 

1 – Sim, poucos, muito poucos.

 

2 – Ele fez o que pôde.

 

O que importa é que desde a criação da Psicanálise muita gente tem se beneficiado do trabalho realizado pela dupla analista/analisando. 

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Giannetti experimenta o anel



 

Ainda no prefácio, o autor adverte: “O corpo vê-se; o coração advinha-se. Silêncios, segredos, manobras, despistes. Que sabem os outros do que nos vai pela alma? O que sabemos, afinal, nós mesmos? Respeito às leis e costumes morais à parte, o que significa ser – não só parecer – ético? Como a certeza da impunidade mexeria com o nosso modo de ser e agir?” O primeiro parágrafo já instiga. Falo de O anel de Giges, de Eduardo Giannetti, Companhia das Letras, 2020.

            Antes de qualquer outro comentário, o livro é tremendamente acessível, a despeito da enorme erudição do autor; a leitura é agradabilíssima, fluente; a escrita, o estilo, são da melhor qualidade literária. Dá gosto ler.

            Bem, o assunto é surpreendente! Giannetti explica ainda no prefácio: “O experimento mental da fábula de Giges permite abordar o comportamento humano e a ética pelo prisma do anel. O que esperar de uma pessoa comum detentora do anel? Como provavelmente reagiria e o que faria com tal poder? Humilde pastor, o Giges da fábula de Gláucon transfigurou-se: foi para a capital do reino, seduziu a rainha, assassinou o rei com a cumplicidade dela, usurpou o trono da Lídia, tentou subornar os deuses e tornou-se fabulosamente rico. A posse do anel atiçou a fera da ambição desmedida e fez visível o sonho de glória e poder adormecido em sua alma. Mas quão representativo ou generalizável é o modelo do Giges-sem-lei?”

            Sugiro que um provável leitor do Anel, antes de iniciar a leitura propriamente dita, se detenha por alguns minutos a estudar o índice do livro, disposto em oito partes, que detalham com minúcia o escopo da obra. Giannetti inicia por Heródoto e Platão e termina por perguntar: “E agora, Giges? Olhemo-nos nos olhos. Sem intermediários. E se o anel que Rousseau preferiu jogar fora viesse parar no dedo de um de nós?”

            O último capítulo, Devaneios do viajante solitário: coração a nu, é mesmo surpreendente! O autor dá um cavalo-de-pau, subverte completamente o estilo, a escrita torna-se fragmentada, são pensamentos esparsos, ideias inacabadas, ousado exercício intelectual sobre os usos e abusos do anel pelo próprio autor.

             Belíssimo livro, em minha modesta opinião.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

A presumível verdade do outro




 

“Para o alfarrabista, a história pessoal dificilmente poderia ser narrada pelo próprio indivíduo, antes pelo vizinho que, embora ausente do drama alheio, tinha o mérito de deformar, de ampliar, de cancelar qualquer aspecto da jornada do outro, de se acercar da sua presumível verdade.”

 

            O trecho acima encontra-se na página 369 de Um dia chegarei a Sagres, de Nélida Piñon (Record, 2020), um livro “difícil” (voltaremos a ele), mas que dá margem a comentários e especulações. O alfarrabista da história representa o sábio, homem que coleciona documentos históricos – dá valor à verdade! –, mentor do personagem central do livro.

            A primeira sentença é categórica: “a história pessoal dificilmente poderia ser narrada pelo próprio indivíduo”. 

            Alguém próximo (vizinho), ou que se aproxima, este sim será capaz de contar a história do outro, embora não a viva propriamente. Por que? Porque será capaz de se utilizar da ficção para contá-la; só a ficção tem a capacidade de deformar a realidade, de aumentá-la ou mesmo suprimi-la. 

            E para quê modificar a realidade vivida pelo outro através da ficção? Simplesmente para poder chegar um pouco mais perto da verdade. Se o sujeito, ele mesmo narra sua história pessoal, haverá de afastar-se cada vez mais da verdade, sem se dar conta disso; a ótica dele se estreita, ao reduzir a visão das coisas e do mundo apenas sob seu próprio olhar e entendimento; onde não haverá ficção, e sim mentira. Mentira inconsciente, não intencional, pois a verdade mais íntima de cada um ninguém revela, distanciando-se assim da verdade.

            E a verdade será sempre presumível, como escreve Nélida Piñon.

 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Por quê tanto sofrimento?



Friedrich Nietzsche (1844-1900)

 


Por quê tanto sofrimento no mundo? Quem pergunta é toda a humanidade, independentemente de raça, cor, religião, posição política, ou qualquer outra diferença entre pessoas, países, continentes.

            Voltemos a Viviane Mosé, em seu livro Nietzsche hoje, já apresentado nesse blog:

 http://loucoporcachorros.blogspot.com/2020/10/nietzsche-hoje.html.

            Vamos ao capítulo Sobre o Sofrimento (p. 100-101):

 

“A dor advém, antes de tudo, do choque que caracteriza a vida como eterna expansão, eterna superação de si mesma. Em outras palavras, a dor é própria da vida, não tem como eliminá-la completamente, especialmente a dor psíquica, a dor de existir, de ter que fazer escolhas, lidar com as perdas, com o erro, com a morte...”

 

            E Viviane complementa:

 

“A dor é uma positividade, possui uma função no organismo; ela é um sinal, um alarme, portanto é preciso aprender a interpretá-la considerando o fluxo da vida, considerando as forças que estão em questão. A dor é sinal de recolhimento, retração, requer cuidados.”

 

            Nos anos 70, era professor em tempo integral e dedicação exclusiva no Hospital de Sobradinho, cidade satélite de Brasília, o então hospital de ensino da Universidade de Brasília, que vinha desenvolvendo interessante projeto de Medicina Integrada. (Um pobre coitado residente no sul do Piauí, com apendicite aguda, tinha acesso ao nosso hospital com mais facilidade do que encontrava atendimento em outra cidade, incluindo a capital de seu estado.) Tínhamos contato com as patologias as mais variadas, e com os respectivos sofrimentos que as acompanhavam.

            

Menina mirrada, perto de 5 anos de idade, chega ao hospital com enorme inchaço em um dos tornozelos, sem outros comemorativos – no jargão médico –, sem febre, sem dor no local da lesão. Ao exame físico, a manipulação do local afetado não ocasiona qualquer sinal de dor. A radiografia revela fratura grave da tíbia e de alguns ossos do tornozelo. Ela nega dor.

Renomado Professor de Pediatria, natural do Chile, atraído a Sobradinho pelo tal projeto de ensino, como tantos outros o fizeram e convidado ver a menina mirrada. Ele a ouve, examina, olha a radiografia, chama a enfermeira e solicita uma agulha hipodérmica, dessas de injeção. Pede gentilmente que a menina desvie o rosto para o outro lado, toma-lhe o fino bracinho, e em frente de todos nós, o transfixa com a agulha. A menina não se mexeu. Com certo tom teatral, anuncia o diagnóstico: 

– Agenesia Congênita da Dor, doença incompatível com a vida.

Complemento eu: uma simples apendicite aguda, uma pneumonia, levam à morte, pois na ausência de dor não se suspeita de que algo esteja errado, não se faz  diagnóstico precoce. (A menina continuava andando, o que agravava ainda mais as lesões, por não sentir dor.)

Inspirada em Nietzsche, Viviane aponta: [a dor] “possui uma função no organismo; ela é um sinal...”

 

Outro conceito que desejo enaltecer nos dois pequenos trechos apresentados por Viviane, sempre inspirada no filósofo alemão, é que “a dor é sinal de recolhimento”. Em se tratando da dor psíquica, penso que o recolhimento significa prudência e ao mesmo tempo terapia. (Talvez por isso tantos procurem o silêncio e a penumbra de uma igreja.)

Diante do sofrimento psíquico alguns gritam, esbravejam, amaldiçoam, praguejam, o que só faz aumentar o desequilíbrio mental. O recolhimento propicia o olhar para dentro, permite sentir a dor – aprendi com a psicanálise que esta dor pode doer muito, mas não mata.

Gosto muito da palavra recolhimento. Penso que escrever é uma forma de recolhimento. 

Segundo Nietzsche, a dor é própria da vida.

 

            

sábado, 12 de setembro de 2020

Ainda estou pensando...

 

Jessie Buckley ouve explicações de Charlie Kaufman

no set de 'Estou Pensando em Acabar com Tudo'.

MARY CYBULSKI/NETFLIX

 

 

Charlie Kaufman  ganhou o Oscar de melhor roteiro original com o filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, e recebeu duas outras indicações ao mesmo Oscar como roteirista com Quero ser John Malkovitch (2000) e Adaptação (2003). Fora isso, que não é pouco, nada que chamasse a atenção do público. Agora, como diretor e roteirista, surge Estou Pensando em Acabar com Tudo, pela Netflix, obra capaz de emocionar alguns e causar profunda irritação em outros.

            Pertenço ao primeiro grupo, penso que o filme é extraordinário mesmo. Por que então irrita a tantos? (Minha mulher deixou a sala de tevê no meio do filme.) A reportagem de Rocío Ayuso, de Los Angeles para El País (11 set 2020), traz o relato de um fato bastante sugestivo, que nos incentiva a perseverar e assistir até o fim:

“Buckley, que interpreta a protagonista, substituiu a atriz Brie Larson poucos dias antes do início das filmagens e, quando recebeu o roteiro, ele veio com um bilhete de Kaufman que dizia: “Não se preocupe. Eu sei exatamente do que se trata”. Kaufman volta a rir com a história. "Às vezes vou longe demais na minha cabeça. Suponho que isso se deva a essa personalidade obsessiva compulsiva que tenho e às minhas ansiedades. Mas gosto de perseverar, de cavar mais fundo, porque é aí que encontro a verdade. " (O grifo é meu.)

 

            Se o expectador acreditar que em algum momento tudo aquilo fará sentido, então ele chega ao fim do filme e há de se surpreender com ele. Acredite no diretor: “Eu sei exatamente do que se trata.” (Terminada a sessão, vale a pena ler alguma crítica, de quem se debruçou sobre a obra, buscou informações que podem nos auxiliar na compreensão da rica mensagem de Kaufman. A Internet está repleta delas.)

            Acrescenta Kaufman:

 

“É disso que mais gosto na física quântica”. ...“É o que me faz sentir emocionalmente equilibrado ao me fazer ver a enormidade do mundo, que é muito mais complicado do que posso entender. Nem tudo é sobre mim, e isso, curiosamente, me tira da minha zona de conforto.”

 

            Charlie Kaufman é um homem corajoso. Foi capaz de retratar a Realidade Psíquica do “protagonista” com maestria.

 

https://brasil.elpais.com/cultura/2020-09-11/charlie-kaufman-a-fisica-quantica-me-faz-sentir-emocionalmente-equilibrado.html

 

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Morre Garcia-Roza

  
Luiz Alfredo Garcia-Roza em 2016, em Copacabana,
bairro onde se passa a maioria de seus livros
Foto: Leo Martins / Agência O Globo


Morre, aos 84 anos, o mestre da literatura policial Luiz Alfredo Garcia-Roza, que popularizou o personagem do detetive Espinosa (O Globo, 16/04/2020).
         Garcia-Roza foi professor de Psicologia e Psicanálise, tendo deixado importantíssima literatura sobre estas especialidades. Um intelectual, humanista, tarde na vida, já com 60 anos de idade, resolveu escrever ficção, gesto de coragem, liberdade de pensamento e independência intelectual, fazendo enorme sucesso. (A certa altura ele afirmou que se cansou da academia.) O silêncio da chuva ganhou o Jabuti, na categoria romance. 
Garcia-Roza escreveu 12 romances, todos pela Companhia das Letras. Alguns dos mais conhecidos são  "Achados e perdidos" (1998), "Uma janela em Copacabana" (2001), "Espinosa sem saída" (2006),  "Céu de origamis" (2009), "Um lugar perigoso" (2014).
Seus romances desencadearam grande popularidade de Espinosa: detetive culto, leitor compulsivo, metódico ao extremo – quem não se lembra dos livros empilhados na parede da sala? – sempre perambulando pelas ruas de Copacabana. 
Eu e minha filha Cecília nos tornamos fãs de Espinosa, e hoje choramos a morte de seu criador. 



sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Criação literária




Acaba de ser lançado pela editora Perspectiva o livro de Michel de M’Uzan, Da arte à morte: itinerário psicanalítico, com tradução de Fabio Landa (2019). São textos esparsos, amparados na clínica e sustentados pela base teórica freudiana, e acima de tudo muitíssimo bem escritos, literatura do mais alto nível. 
            Interessou-me de imediato o primeiro texto, datado de 1964: Visão geral do processo de criação literária. Assinala o autor, a mais de meio século, fato que podemos pensar como fenômeno contemporâneo, aguçado pela mídias sociais; diz ele: “Existe por toda parte, em quase todos os meios, pessoas que escrevem, que entram de uma maneira ou de outra no circuito de produção dita artística e que, além do mais, têm meios de publicar o que fazem.” (Isso não é mesmo atualíssimo?)
            M’Uzan relata que no curso de uma análise pode surgir “o desejo mais ou menos frívolo” de escrever; o desejo de escrever pode transformar-se no fracasso da vocação; e pode surgir até a atividade literária mais genuína e autêntica! Compartilha a opinião de Freud, expressa em carta a Mlle N.N., em 27 de junho de 1934, de que “se o impulso para criar é mais forte do que as resistências interiores, a análise só pode aumentar, jamais  diminuir as faculdades criadoras”.
            Até que o autor chega ao âmago da questão: “A representação, efetivamente, parece-me ser um elemento fundamental da criação artística ou, mais precisamente, da criatividade em geral.”  
            A atividade de representação, porém, sofre influência permanente de elementos internos e externos, brilhantemente expostas pelo autor:

“Considero, efetivamente, que enquanto o narcisismo primário reina sozinho, não há nada a colocar em cena, já que tudo se passa, então, aquém do conflito. Somente no momento em que as pulsões se liberam e procuram os objetos, enquanto o mundo exterior começa a ser reconhecido como tal, é que as tensões nascem, engendrando uma situação traumática que o sujeito deverá afrontar. Essa necessidade vital vai conduzi-lo a elaborar a experiência por meio do que lhe é mais imediatamente acessível: uma representação de sua situação que é uma tentativa de síntese, uma busca de unidade. Para conseguir isso, o sujeito recorre espontaneamente à sua lembrança nostálgica da união narcísica  perdida, e ele terá tanto mais sucesso quanto for capaz de reencontrar o sentimento primitivamente vivido. Na obra que, eventualmente, resulte de tal representação interior, não é necessariamente o traumatismo que aparece, mas, com frequência, pelo contrário, a união, a reconciliação, a comunhão com o mundo expressa diretamente numa forma.”

            Com a mais profunda e sincera humildade, cônscio de minha insignificância  literária – escrevo apenas para mim e pelo prazer de escrever – faço agora referência ao meu segundo livrinho, 47 cenas de um romance familiar (Ed. PerSe, 2011), dedicado ao irmão e às filhas. Nele, o leitor vai encontrar tão somente “união, a reconciliação, a comunhão com o mundo”, embora expressas de forma imperfeita.
            Epígrafe do livro traz citação de Freud:

“Ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso do seu desenvolvimento. Tal liberação é primordial e presume-se que todos que atingiram a normalidade lograram-na pelo menos em parte. Na verdade, todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre as gerações sucessivas.”

Na cena A canequinha, “Pedro chega, entrega o boletim para a mãe [havia tirado a nota 9,5], tenta justificar-se, Esqueci a canequinha, e apanha mesmo assim [promessa antiga feita pela mãe]. E dói muito mais na mãe.” (p.24).  
Ao escrever sobre o meu romance familiar, ao escrever sobre as sucessivas gerações das quais faço parte, permaneço na busca infindável do significado do chamado processo de criação literária. 

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Arrependimento, culpa e castigo


“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.”
                                    
F. Pessoa


O poeta publica em seu blog poema intitulado Castigo, e me causa forte impressão, embora se trate de apenas quatro versos curtos. Reproduzo-o aqui:

“A velhice é um castigo
que vem pelo pensamento:
de se carregar consigo,
sempre, um arrependimento...”

            Pelas limitações físicas e mentais que acarreta, a velhice pode mesmo ser tomada como um castigo. Se há doença então, esta impressão se torna ainda mais forte. Mas não é bem a velhice que o poeta deseja destacar; ele afirma que ela sempre carrega consigo um “arrependimento”. Eis que surge o epicentro do poema!
            O mesmo poeta em outra ocasião (Cinismo), ao afirmar que o Homem desconhece o que há diante de si, escreve:

“...
vai
decide
escolhe
age
às cegas
és livre para não saber
assim o mundo 
assim a vida
resta o cínico consolo do arrependimento”

            Agora, o arrependimento converte-se em consolo, porém cínico consolo.

            Em outra circunstância (Folhas), com dois versos que comovem pela simplicidade, o poeta registra sentimento bem diverso do arrependimento, o da plena consciência, perante a vida, do que é possível:

“...
a vida passou
eu fiz o que pude”

            Faço uso da expressão “outra circunstância” para mostrar que os sentimentos variam com o passar do tempo, podem mudar completamente, e o poeta os exprime em função do momento em que vive e sente e pensa. Nada de errado com isso. O poeta utiliza-se de sua arte para buscar novos significados aos sentimentos e emoções que movem sua poesia. (Além do que, não nos esqueçamos, o poeta é um fingidor...)
            Voltemos pois ao momento da primeira quadra, aquela que me tocou de imediato, e que afirma que a velhice carrega o peso do arrependimento. Não sinto assim. Não penso que isso deva ser necessariamente assim. Especialmente se eu fiz o que pude, levando em conta as circunstâncias, sempre. É preciso exercitar a humildade para admitir o rol de erros cometidos ao longo de uma vida, e que se acumulam tanto mais entramos na velhice. Poderia ser de outra maneira? Pelo menos no meu caso, não. Tais imperfeições são inerentes a minha constituição, primitiva, selvagem, bruta, de besta-fera, que carrega genes de neandertais e de seres ainda mais ancestrais. (Você é um neandertal!, exclama minha mulher, que me conhece bem.) 
            De minha parte, parece arrogância dizer que me arrependo, se tão somente fiz o que pude. Penso que, o que chamei de epicentro do poema está escondido por trás da palavra arrependimento, capciosamente oculto, como é da natureza desse sentimento. CULPA é a palavra certa.
            O poeta reconhece que o arrependimento é apenas um “cínico consolo”, porque a culpa nunca deixa de atormentar. A culpa, no subterrâneo, constrói o calabouço do permanente martírio – alguns chegam mesmo a se flagelar, a aplicar o necessário e indispensável castigo. A dor das feridas do corpo é menor que a dor da alma. A angústia recorrente que ela provoca constitui espécie de flagelo mental que machuca, imobiliza, aprisiona, a vítima anda em círculos e não encontra saída. 
            Se não preciso me arrepender, por outro lado não posso deixar de reconhecer incontáveis erros e delitos por mim cometidos ao longo da vida. Devo procurar não os repetir, incansavelmente, porém certo de que os repetirei: é da minha natureza. Esta posição é bastante desconfortável, ao contrário do que alguns poderiam pensar, ao me tachar de irresponsável, insensível, um psicótico que não sente culpa. Porém, a culpa não redime, os erros já foram cometidos, novos erros serão cometidos, e nada sabemos da memória que restará após nossa passagem por este planeta. O certo é que passaremos.
            Enquanto permaneço vivo, sou grato ao poeta que me faz pensar, mesmo diante de uma simples trova, cheia de mistério.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Triunfo versus Fracasso


A crônica de hoje (1o mai 2018) do escritor português João Pereira Coutinho, com o título Dois impostores - O fracasso e o triunfo não devem depender dos aplausos das bancadas, merece toda a nossa atenção.
Ele começa descrevendo um jantar imaginário, onde pais falam dos filhos, da escola, de todas as atividades fora da escola, do desempenho no esporte, e vão desfilando os sucessos da prole, numa desenfreada competição.
Assinala Coutinho: “Em rigor, eles não falam dos filhos. Falam deles próprios – das suas vaidades e, ponto importante, das suas frustrações.”
Em seguida faz referência ao filme “Borg vs. McEnroe”, de Janus Metz, sobre o famoso duelo em Wimbledon, em 1980, que opôs Björn Borg e John McEnroe, e que desconstrói nossas ideias sobre os ídolos. O que mais interessa no filme é como o talento de ambos respondia à ambição dos respectivos progenitores. 
Afirma Coutinho: “...lembro-me bem das aulas de ginástica, quando as minhas perguntas filosóficas ensandeciam o professor. Ele, como um sargento de filme, gritava para o regimento: “Vamos ver quem chega primeiro!” Os meus colegas iniciavam a corrida como galgos atrás da lebre. Eu, parado na linha da partida, olhava o sargento e questionava: “Mas o que ganho eu com isso?” O sargento, próximo da apoplexia, falava em “respeito por nós próprios” ou qualquer outro clichê. Eu tentava dizer que tinha bastante respeito por mim próprio, sobretudo quando parado. Acontece que a minha desconfiança perante a “alta competição” não é questão pessoal. É, uma vez mais, filosófica. E não se aplica apenas ao desporto; também serve para qualquer atividade humana.”
            Diz o autor: “...existem dois tipos de atividades: as “télicas” e as “atélicas”. As primeiras procuram um fim determinado e são avaliadas pela concretização desse fim. As segundas valem por si, não pelo sucesso ou insucesso do resultado. ... muitas das coisas que fazemos são télicas por definição. Eu, por exemplo, tenho de concluir um livro e entregá-lo no prazo combinado. Mas a minha vida seria insuportável se o ato de escrever estivesse apenas dependente das boas críticas ou dos bons prêmios.”
            Sem o brilhantismo de Coutinho, voltemos à relação entre pais e filhos. O filho, ao entrar na adolescência, deseja estudar Esperanto e ser professor de Português em escola secundária. A mãe, utilitarista por excelência, veta ambas as pretensões: nenhuma delas dá dinheiro! O filho deve estudar inglês e formar-se médico, afirma ela, categórica.
            Que força têm os filhos para lutar contra vaidades e frustrações paternas, se nem mesmo os pais sabem dos sentimentos que estão em jogo? Para eles, só desejam o melhor para seus filhos. Se ao menos o filho conseguisse realizar alguma de suas pretensões originais...
O tema é complexo, extenso, e merece ser revisitado de tempos em tempos. Adultos, agora podemos repensar sobre o significado do triunfo e do fracasso, e se precisamos mesmo dispor as coisas dessa maneira maniqueísta.  
Coutinho conclui o artigo citando dois versos de Rudyard Kipling:  

“Se conseguires enfrentar o Triunfo e o Desastre 
E tratares desses dois impostores da mesma forma”. 
            
Tarefa para uma vida inteira, penso eu.





quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Hábito da leitura



”Pense. Preste atenção na sua vida. Olhe bem para seus problemas. Observe a situação do país. Você acredita mesmo que a grande ameaça para o Brasil – e para você – são os pedófilos? Ou os museus? Quantos pedófilos você conhece? Quantos museus você visitou nos últimos anos para saber o que há lá dentro? Não reaja por reflexo. Reflexo até uma ameba, um indivíduo unicelular, tem. Exija um pouco mais de você. Pense, nem que seja escondido no banheiro.”

            Assim tem início o artigo da excelente jornalista e escritora  Eliane Brum para El País (31/10/17), com o título Como fabricar monstros para garantir o poder em 2018.
Abaixo do título, Brum resume o assunto: Enquanto o país é tomado por assaltantes do dinheiro público, parte dos brasileiros está ocupada caçando pedófilos em museus.”
            O que parece muito simples, a ponto de Eliane Brum quase que ingenuamente transformar em conselho, na realidade é bastante complexo. Pensar dá trabalho.
            O aparelho psíquico começa a funcionar a partir do nascimento (provavelmente até antes dele), e desenvolve-se ao longo da vida. É preciso aprender a pensar. São vários os elementos que fazem parte desse processo a que chamamos pensar, mas desejo destacar aqui apenas um deles (inspirado em conversa recente com meu irmão Paulo), o hábito da leitura.
            O hábito da leitura tem início na infância. Ou não: quando determinadas leituras tornam-se obrigatórias precocemente, quando o menino de dez anos é obrigado a ler Memórias póstumas de Braz Cubas, ou Cartas de Inglaterra, do Eça, e são incontáveis os exemplos de literatura capaz de afastar o pequeno leitor do gosto pelos livros, então o hábito da leitura é bruscamente interrompido ou nem mesmo tem início.
            Se a alfabetização não se processa – calamidade nacional –, incluindo aqui o analfabetismo funcional (talvez 50 % da população brasileira), o hábito não pode se desenvolver. Desnecessário enfatizar a importância da Educação, que esperamos, algum dia, torne-se prioridade nacional.
            Resta um bom número de pessoas, alfabetizadas, inteligentes, bem articuladas, de bom nível sócio-econômico, muitas com educação de nível superior, que lêem muito pouco ou não o fazem de todo. Quando muito, lêem 1 livro por ano; interrogadas sobre o nome do livro e do autor, engasgam-se, não se lembram, o que nos oferece boa ideia de quanto valorizam o ato de ler.
            O que se pretende ao se defender o hábito da leitura, de preferência iniciado na infância? Aquilo que Bion chamou de expansão psíquica. Para Bion, as experiências emocionais são responsáveis, basicamente, pela formação do aparelho mental capaz de pensar. A construção de um mundo interno coerente deve-se à capacidade de pensar.
            A leitura contribui enormemente para este processo, em particular a literatura de ficção, que facilita o sonhar e o pensar. Sonhar é a forma mais primitiva de pensar. Na infância, o brincar, que nada mais é que o exercício da fantasia, é essencial para o desenvolvimento psíquico. (Seria muito bom que as mães não interrompessem uma brincadeira com brusquidão, respeitando assim algo de muito sério, para a criança que brinca.)
            Eliane Brum, quando escreve “Pense. Preste atenção na sua vida. Olhe bem para seus problemas.”, poderia acrescentar: Leia, Leia muito.


O artigo de Eliane Brum segue em direção diversa a desta postagem e vale a pena ser lido: