terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Quem diria! Jack Kerouac compunha haicais!



Confesso, desde já, minha surpresa ao me deparar com o recém lançado Livro de haicais, de Jack Kerouac (L&PM editores, 2013, tradução de Claudio Willer). Quem diria que o autor de On the Road, capaz de inovar a escrita de forma radical, de modo a influenciar toda uma geração, a Geração Beat, pudesse dedicar-se à composição do haicai. (Utilizo-me da palavra composição de modo intencional: penso que, em analogia à música, o Haicai precisa ser composto.)
            Kerouac (1922-1969) deu-lhes o nome de American haikus, (estranho plural, pois haiku parece ter apenas a forma singular), trazendo para o Ocidente a milenar poesia japonesa com uma visão bastante pessoal:
“Eu proponho que o haicai ocidental simplesmente diga muita coisa em três linhas breves em qualquer língua ocidental. Acima de tudo, um haicai deve ser muito simples, livre de truques poéticos, capaz de evocar algo e ainda assim ser tão delicado e gracioso como uma Pastorella de Vivaldi.”
(Na introdução ao livro, de Regina Weinreich, A poética do haicai de Jack Kerouac.)
E ele cita como exemplo de perfeição uma composição do mestre Bashô (1644-1694):

                        Um dia de quieta satisfação –
                                    O Monte Fuji está velado
                        na chuva nevoenta.
           
O autor registrou seus haicais em pequenos cadernos de notas, de 1956 a 1966, e publicou-os com o título Book of Haikus. A certa altura, afirmou que “O haicai é melhor quando trabalhado e revisado”, logo ele, acusado de uma certa displicência na escrita, exatamente por falta de revisão. Uma indicação de quão a sério ele levava os seus haicais.
            O livro em questão é bilíngue, de modo a permitir o cotejo entre o original e a sempre difícil tarefa de traduzir qualquer coisa, especialmente haicais. Vejamos alguns exemplos.

The little sparrow                                         O pequeno pardal
            on my eave drainpipe                                  na beira da calha
Is looking around                                          Olha ao redor

In the morning frost                                     Na geada do amanhecer
            the cats                                                           os gatos
Stepped slowly                                              Pisam devagar

Frozen                                                   Congelada
            in the birdbath                              no tanquinho dos pássaros
A leaf                                                    Uma folha

            Kerouac comparou o haicai a uma boa pintura, e anotou em seu caderno:  “A sensação que tenho olhando para uma grande pintura de van Gogh está lá & você não pode dizer ou fazer nada a respeito, exceto olhar, consternado diante do poder de olhar”. Talvez este seu haicai possa bem expressar a ideia:

                                                Inútil! Inútil!
                                                            – chuva forte a escorrer
                                                Para o mar

            Para os que apreciamos o haicai, Jack Kerouac talvez não represente o que há de melhor nessa forma de fazer poesia. Há grandes haicaistas entre nós, alguns a dar forma personalíssima ao haicai, abrasileirando-os, como fez Guilherme de Almeida. A antologia organizada por Rodolfo Witzig Guttilla (Companhia das letras, 2009) nos oferece uma boa mostra.
            De qualquer modo, em minha opinião, vale a pena conferir o haicai de Jack Kerouac.

O Justiceiro das faixas.




À moda dos super-heróis, a identidade dele permanece desconhecida. Sabemos que ele existe, não há dúvida quanto a isso, pelos efeitos produzidos por suas ações, expostas publicamente todas as manhãs pelas ruas da cidade. A causa permanece um mistério.
            Trata-se do Justiceiro das faixas!
            Tudo são suposições. Os indicadores são difíceis de serem comprovados. O que há são indícios, fortes indícios.
Ao andarmos de carro pela cidade (onde só se pode “andar” de carro), encontramos uma quantidade enorme de pequenas faixas de pano, sustentadas por duas hastes de madeira, quase sempre de tecido barato, tingido de amarelo, com inscrições em letras pretas, azuis ou vermelhas, anunciando alguma coisa: casas para vender, apartamentos a preços convidativos, garagens para alugar, ou vender, aceitam-se trocas, garage-sales, queima total de estoques, Fiat 73 completo em ótimo estado, serviços de bombeiro, trocam-se telhados, manicures, pedicures e calistas, materiais de construção, aulas particulares de inglês, fotocopiadoras, e o mais triste dos anúncios, procura-se cão da raça Shih-tzu, branco, amarelo e marrom, que atende pelo nome de Picasso (gratifica-se bem), fone tal.
Quando andamos de manhã pela cidade, o que vemos é uma quantidade enorme destas faixas agora mutiladas! De início, apareceram arrancadas do chão e jogadas em local próximo. Depois, encontravam-se apenas cortadas ao meio, as estacas ainda de pé, duas bandeirinhas ilegíveis. Até que o padrão estabeleceu-se: as faixas são mantidas em suas posições originais, são recortadas cuidadosamente, restando um buraco no meio – foi-se o anúncio –, como quem diz, Eu estive aqui!
As tais faixas, dispostas em lugares públicos, geralmente logradouros, não são permitidas pelo governo, mas não há fiscalização. Eis que surge nosso herói, a fazer justiça com as próprias mãos. O clichê, perdoe o leitor, vem a calhar; é com as mãos que ele realiza sua operação, mas, não se discute, ele há de usar um instrumento cortante!
Jack, o Estripador, removia as vísceras de suas vítimas, geralmente prostitutas, com tamanha perícia – as incisões eram precisas e metódicas – que se pensou executadas por exímio cirurgião! Seria este o caso de nosso herói, o Justiceiro das faixas? E de que instrumento ele se utiliza? Bisturi, tesoura afiadíssima, navalha, faca amolada? Mistério!
Sabemos que ele ataca à noite, não sabemos a que horas sai de casa, muito menos onde mora. Há uma suspeita de que se utilize de uma moto, o que lhe daria maior mobilidade, acesso fácil aos canteiros e gramados, onde as faixas estão fincadas. São apenas suspeitas.
Bem, resta-nos perguntar sobre as motivações de nosso herói. Ele apenas faz justiça, estabelece o cumprimento da lei – daí o cognome de Justiceiro? Trata-se de um amante incondicional da cidade onde vive, e a deseja limpa, despoluída, com seus jardins e gramados intocados? Um verdadeiro Herói?!
Se há motivações de ordem moral em seu comportamento, então ele poderá estar mais próximo de Jack the riper do que poderíamos supor... Ou dos cirurgiões, pois há quem afirme que estes não passam de assassinos sanguinários, açougueiros travestidos de benfeitores que conseguiram sublimar seus instintos mais primitivos.
Ou se trata de um aposentado a procura do que fazer?
Sofrerá de crônica insônia?
Um “louco de água e estandarte”, diria Manoel de Barros.
Um notívago bem humorado?
Mistério, mistério, um grande mistério!
Há quem diga que se trata de uma mulher! Uma heroína, portanto! A favor desta hipótese, o possível manejo habilíssimo de uma tesoura. (Houve caso de mulher ciumenta que, com precisa tesourada, seccionou a artéria femoral esquerda do amante, levando-o à morte em poucos minutos, num memorável banho de sangue.)
Não estou certo de que este recente acontecimento nos levará a alguma pista sobre o tal Justiceiro, mas o fato é que outro dia, aqui perto de casa, encontrei intacta intrigante faixa que estampava:
PROIBIDA A COLOCAÇÃO DE FAIXAS.

caminhada

Para Sarah Cianflone Pripas.


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Foto: A.Vianna, Lago Sul, dez 2013.