Do livro Paulo e Beatriz
A noite de sexta-feira sempre foi especial para eles, ao longo destes vinte anos de casados. Melhor que as noites de sábado ou domingo, melhor que qualquer feriado, era sem dúvida o momento mais aguardado da semana.
E aquela não
poderia ser uma noite diferente. Beatriz e Paulo foram para a cozinha, abriram
um ótimo Brunello, decantaram o vinho, escolheram os melhores copos para a
degustação, e iniciaram a preparação do jantar.
- Hoje vou fazer
o melhor arroz de bacalhau do mundo pra você, Paulo!
Alguns
segundos de silêncio pairaram pesados no ar da cozinha, antes que ela se
impregnasse com o cheiro da cebola fresca picada, do alho cortado fininho, do
coentro lavado, da pimenta do reino moída na hora, dos pimentões amarelo e vermelho,
sem casca, dos tomates italianos bem maduros, do azeite extra-virgem português.
A conversa ganhou
logo a animação de sempre. Aquele era o momento de comentar os acontecimentos
da semana. Eles falavam com o mesmo entusiasmo de fatos que haviam ocorrido no
trabalho de ambos, do último escândalo político, do rei caçador de elefantes,
de uma palavra nova em francês que haviam descoberto – ambos iniciaram aulas de
francês com professor particular pelo simples prazer de estudarem juntos –, dos
livros que cada um estava lendo.
-
Se tivéssemos lido este ensaio do Sartre sobre a escultura do Giacometti antes
de visitar a exposição teríamos aproveitado mais, lamentou Paulo. É belíssimo!
-
Deixa separado que vou ler, respondeu Beatriz, que havia adorado a mostra sobre
o artista suíço na Pinacoteca do Estado no fim de semana anterior.
O
que interessava a um, certamente interessava ao outro, quando o assunto era
arte, em especial a literatura. Paulo e Beatriz cresciam juntos, e pensavam que
esta era a melhor receita, senão a única, para preservar um casamento feliz.
-
E como foi o almoço com seus amigos?, perguntou Beatriz.
-
Foi bom.
A lacônica resposta de Paulo reproduziu o mesmo silêncio que já havia retumbado na cozinha quando Bia – este o tratamento carinhoso que o marido lhe dispensava não apenas às sextas-feiras – anunciou o prato da noite, O Melhor Arroz De Bacalhau Do Mundo! Só que agora vinha misturado ao perfume celestial da cebola refogada em bom azeite, o que acentuava o próprio silêncio, tornando-o ainda mais pesado.
A lacônica resposta de Paulo reproduziu o mesmo silêncio que já havia retumbado na cozinha quando Bia – este o tratamento carinhoso que o marido lhe dispensava não apenas às sextas-feiras – anunciou o prato da noite, O Melhor Arroz De Bacalhau Do Mundo! Só que agora vinha misturado ao perfume celestial da cebola refogada em bom azeite, o que acentuava o próprio silêncio, tornando-o ainda mais pesado.
- Pronto, ela
vai perguntar..., pensou Paulo, que permaneceu mudo por mais alguns
intermináveis minutos. Se ela perguntar, digo a verdade?, ou devo mentir?, mas mentir
por tão pouco?, e é pouco mesmo?, afinal, hoje é noite de sexta-feira e não
posso correr o risco de estragar o jantar por uma coisa sem importância, portanto,
nem pensar, vou mentir... mas para Beatriz isso pode ser importante, até acho
que é, mas minha mãe dizia que as grandes mentiras servem para as grandes
necessidades, e será esta uma grande necessidade?, em meu ponto de vista, sim,
pois não posso correr o risco, mas há o ponto de vista da Bia, isso é verdade,
e eu costumo considerar o ponto de vista dela. Então, é torcer para que ela não
pergunte...
O conflito
instalara-se definitivamente no espírito de Paulo. Ele não costumava mentir
para sua mulher; fazia-o, às vezes, tão somente para evitar os desentendimentos
inúteis, as discussões estéreis, assim mesmo sobre temas que julgava de menor
ou nenhuma importância. Pensava que a verdade era o melhor caminho para o
entendimento entre eles, quando o assunto era sério.
- Este vinho
está maravilhoso!, exclamou Beatriz. Também pudera, custou-me os olhos da cara!
-
Ela mudou de assunto, pensou Paulo. Acho que não vai perguntar... Mas se não
vai perguntar é porque já sabe. A Bia é foda!
A
conversa continuou ainda mais animada, aquecida agora pelo aveludado potente
Brunello. Voltaram a falar do rei caçador de elefantes, indignados ambos com a
desfaçatez do monarca. Porém, ao exagerarem as manifestações de repúdio ao
cinismo real, Paulo e Beatriz, em nada moralistas, percebiam que tentavam
disfarçar o próprio desconforto, diante daquela pergunta que não queria calar.
Mesmo assim, prosseguiram com a preparação do jantar.
Enfim,
foi servida a iguaria.
-
Não há dúvida, este é o melhor arroz de bacalhau do mundo!, e Paulo foi sincero
em sua afirmação. Era mesmo O Melhor Arroz De Bacalhau Do Mundo. Junto com o
elogio, no entanto, havia a esperança de que Beatriz se esquecesse da pergunta,
felicíssima que estava com seu sucesso culinário.
De
sobremesa, torta de maçãs, especialidade de Bia, regada a um riquíssimo Tokay,
acompanhando o café expresso. Tudo perfeito.
Até
que Beatriz não resistiu – ela não poderia resistir – e perguntou:
-
O que você comeu no almoço com seus amigos?
Paulo,
que havia comido arroz de bacalhau, impassível, respondeu:
-
Filé com molho de pimenta.
-
Ah!
E
encerraram mais uma magnífica noite de sexta-feira, na mais completa harmonia.