segunda-feira, 21 de setembro de 2015

os interessados


– vão fechar o ministério da pesca.

– o pescado agradece!

Exame de vista



             Todo velho, quando chega perto dos 70, é tomado por preocupação e medo, quando se aproxima a data de renovação da carteira de motorista. Todo velho que passou a vida inteira dirigindo seu próprio automóvel, bem entendido. Deixar de dirigir, para ele, será um atestado de perda de autonomia, o que é um horror. Antes uma boa morte!
            Juscelino era um desses idosos. Dirigia desde os 15 anos de idade, naquela época sem carteira, é claro, porém melhor que muito motorista profissional, gabava-se ele, ao dar suas voltinhas pela cidade do interior no Aero Willys azul claro do pai, para impressionar as meninas.
            Seu primeiro carro foi um Fusca ano 66, com a pintura muito queimada, que só ficava bonito quando molhado! Depois veio um Fuscão azul poderoso, seguido de um Passat cor-de-bosta, mais outro Passat branco, uma Belina a álcool difícil de pegar pela manhã, uma peruinha Marajó muito ruim, um Monza, outro Monza, um Kadett preto lindo mas destruído num acidente por sua mulher, um Vectra cinza, outro ótimo Vectra preto 2.2, um Citroën C4VTR, o melhor carro que Juscelino já teve, e agora ele possui outro Citroën DS4. Ele se lembra de todos eles com muito carinho, as viagens que fez, um ou outro problema técnico, nada de grave, nunca bateu, orgulhava-se, sabia dos detalhes particulares e das manhas de cada um. Carro parece gente, diz ele! E com o tempo pega a cara do dono!
            Quando entramos no ano de 2015 Juscelino sabia que em novembro sua carteira de motorista precisaria ser revalidada, e durante todos aqueles meses ele preocupou-se com o exame médico. Estava com catarata e enxergando muito mal. Às vezes acordava de madrugada com o recorrente pesadelo: estava num consultório e o médico projetava na parede aquelas letrinhas miúdas e ele não via nada, ou via tudo branco, uma névoa ia tomando conta do ambiente, aos poucos recobria o sonho completamente, e Juscelino acordava suando de pavor.
            Chegou o mês de setembro, criou coragem e procurou a clinica especializada em renovações de carteira de motorista. Se não passar, opero essa merda de catarata e refaço o exame, pensou. Juscelino preencheu as formalidades, apresentou fotocópia da carteira que vencia, aguardou a chegada do médico.
            Ao ser chamado, muito nervoso, entrou no consultório e levou um susto: o médico era bem mais velho do que ele, era mesmo muito velho, era velhíssimo, parecia ter uns 90 anos ou mais, aquilo era impressionante! Recuperado, após alguns segundos de hesitação, veio-lhe à mente uma ideia brilhante, caída do céu, só podia ser, um plano que lhe pareceu perfeito!
            A consulta teve início com as preguntas de praxe, Que doenças já teve?, Já foi operado?, Tem pressão alta?, É diabético?, Já precisou de atendimento psiquiátrico?, É HIV positivo?, É epilético?, Que medicações toma? (Juscelino observou a forma em que esta última questão foi formulada: em vez de perguntar se o paciente tomava algum remédio, o doutor foi logo perguntando Que remédios o senhor toma? Velho toma mesmo muito remédio.)
            Paciente, Juscelino respondeu a todas as perguntas e enumerou os onze remédios que ingeria diariamente. Até que chegou o momento crucial, o exame oftalmológico.
– Sente-se aqui e me diga que letras são aquelas, disse o médico em tom desafiador:

ACGHIKMNP3X

Foi aí que Juscelino colocou em prática o plano infalível. Das letras projetadas, ele conseguia identificar apenas umas duas ou três. Mas respondeu ao médico numa velocidade incrível, em voz bem alta, quase gritando:

GKAMNAFCTU3B

            O médico assustou-se, não conseguiu acompanhar a fala de Juscelino e compará-la às letras projetadas. Repita, por favor. Mais uma vez Juscelino disparou uma leitura louca, rapidíssima, aos berros:

CTUVHAWQFOP3R

            O médico aturdiu-se! Pediu que o paciente agora ocluísse o olho direito e lesse as letras com o esquerdo, e a cena repetiu-se, a leitura feita numa velocidade espantosa, as letras todas embaralhadas no ouvido do médico.
Por um átimo, passou pela cabeça do doutor que ele é que estava surdo, ou já não via tão bem, talvez estivesse na hora de se aposentar. Pareceu-lhe que o paciente lia magnificamente bem...
            E deu por encerrada a consulta:
            – O senhor está aprovado! Receberá sua nova carteira de habilitação em casa, em poucos dias, disse o médico, num tom de voz entre a dúvida e o ódio.
            Juscelino ligou para a mulher e deu a boa notícia:

            – Passei!

aldravia n. 3


ipê
branco
deslumbramento
em 
pleno 
cerrado

Foto: Mercêdes Fabiana, set 2015, cerrado.

A nossa Lenda



Lenda era a melhor pessoa do mundo!
Nunca fez mal a ninguém, ao contrário, por ser boa demais com frequência era vítima de agressões por parte das “irmãs” Falena e Juliete. Nunca reagia, permanecia imóvel, sua maneira de se defender. Fechava-se como um caracol gigante.
            A despeito de seu tamanho – era enorme! – Lenda era gentilíssima! Também por causa de seu tamanho, possuía um potente latido, a impor tremendo respeito aos estranhos. Quando latia, assustava: Lenda era um cão de guarda. Mas quando caminhava entre as pessoas, mesmo entre estranhos, era um dama, cão de companhia!
            Há muitos anos meu irmão ganhou uma fêmea da raça pastor alemão e pediu ao nosso avô Breno – homem cultíssimo – que lhe sugerisse um nome. O avo, sem pestanejar, respondeu: Lenda! (Nunca se soube de onde ele tirou aquele nome.)
            Quando nossa labradora chegou, um bebê lindo e muito alegre, café-com-leite, pelo macio, recebeu o nome de Lenda, em dupla homenagem, ao avô e ao irmão.
            Lenda permaneceu entre nós por dez anos. Para nossa tristeza, morreu há três dias, de insuficiência respiratória, no pós-operatório da retirada de um tumor de  mama.

            Ficou a saudade, tornou-se uma lenda.